Cláusula de barreira melhora qualidade da democracia
O Globo
Desde que foi adotada, já houve dez uniões
partidárias. Movimento de consolidação deverá se intensificar
As eleições municipais do ano que vem tornarão perceptíveis os benefícios da redução no número de partidos, forçada pela cláusula de barreira, ou desempenho, que garante acesso a recursos dos fundos eleitoral e partidário apenas às legendas que alcançarem um percentual mínimo de votos. Adotada progressivamente desde 2018, ela já propiciou dez uniões partidárias, uma a cada seis meses, segundo revelou reportagem do GLOBO. Na última, aprovada na semana passada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), PTB e Patriota se fundiram para criar o Partido Renovação Democrática (PRD).
Conjugada ao fim das coligações nas eleições
proporcionais, a cláusula de barreira tem promovido um saudável movimento de
consolidação partidária. Desde 2019 houve duas fusões, cinco incorporações de
partidos menores por maiores e três federações (situações em que os partidos se
associam para disputar eleições e atuam como bancada única no Congresso). Além
da fusão PTB-Patriota, PSL e DEM se uniram para formar o União Brasil. O
próprio Patriota incorporara o PRP. O PCdoB, o PPL. O Podemos absorveu PHS e
PSC, e o Solidariedade o PROS. Entre as federações, há duas de esquerda
(PT/PCdoB/PV e PSOL/Rede) e outra de centro-direita (PSDB/Cidadania).
Com isso, embora ainda haja 30 legendas
registradas na Justiça Eleitoral, apenas 12 bancadas atuam no Congresso (em
2018 eram 30), patamar mais próximo do que os cientistas políticos costumam
apontar como razoável numa democracia plural (ao redor de oito). Ainda é
provável que tal número caia, tendo em vista as negociações em curso — as
principais envolvendo o Progressistas com União Brasil e Republicanos.
Ao reduzir a fragmentação partidária, a
cláusula de barreira contribui para a qualidade da democracia. Durante muito
tempo, os partidos nanicos atuaram como legendas de aluguel, sem nenhum tipo de
coerência programática ou ideológica. Eram apenas investimento rentável para
quem desejava ter acesso ao Congresso para vender ao governo apoio em votações
parlamentares difíceis. O mensalão, esquema por meio do qual o PT obteve
maioria no primeiro governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi o
maior exemplo das negociações obscuras favorecidas pela fragmentação. Com a
profusão de legendas, a democracia adquire caráter mais patrimonialista,
fisiológico e clientelista.
Depois que o Supremo Tribunal Federal
derrubou uma cláusula de desempenho em 2006, a Corte reviu sua posição. Ao se
tornar evidente que a própria democracia era a principal vítima da proliferação
partidária, o Congresso aprovou — e passou a vigorar nas eleições de 2018 — a
regra que vetava acesso a horário eleitoral gratuito, fundos partidário,
eleitoral e demais benefícios a partidos com menos de 1,5% dos votos válidos
para deputados federais (com pelo menos 1% dos votos, ou nove deputados, em
nove estados da Federação). A barreira subiu para 2% no ano passado, será de
2,5% em 2026 e chegará a 3% na eleição de 2030. A exigência de distribuição
nacional dos votos também aumentará, contribuindo para uma democracia de fato
representativa.
Ganham os eleitores, que decidem em quem
votar diante de candidatos vinculados a plataformas mais consistentes. Ganha a
democracia com a melhora da representatividade política.
É preciso rever aumento salarial disfarçado a
juízes e procuradores
O Globo
Decisões do CNJ e do CNMP distribuem nova
benesse a categorias da elite do funcionalismo
Uma decisão de outubro do Conselho Nacional
de Justiça (CNJ)
abriu brecha para juízes reivindicarem benesses comparáveis às que procuradores
obtiveram no início do ano. As duas categorias integram a elite do
funcionalismo público, onde se concentram privilégios que deveriam ser extintos
(mais de 1.500 juízes federais receberam vencimentos acima do teto
constitucional no primeiro semestre). Em vez reduzi-los, porém, ambas têm
procurado ampliá-los. Confirmada a previsão de efeito cascata, haverá explosão
de gastos num momento de grave pressão fiscal.
No final de janeiro, uma resolução do
Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) estabeleceu critérios para
acúmulo de trabalho que permitem aos procuradores tirar até dez folgas por mês
ou convertê-las em remuneração, obtendo com isso aumento salarial disfarçado.
Em 20 de outubro, na primeira sessão comandada pelo presidente do Supremo
Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, o CNJ decidiu que “os direitos e
deveres validamente atribuídos aos membros da magistratura ou do Ministério
Público aplicam-se aos integrantes de ambas as carreiras, no que couber”.
As consequências foram imediatas. Quatro dias
depois, a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e outras entidades
entraram com requerimento junto ao Conselho da Justiça Federal (CJF) pleiteando
até dez dias de licença por mês ou aumento proporcional de remuneração para
juízes federais de primeiro ou segundo grau que acumulem funções
administrativas e processuais. Passados meros dez dias úteis, o colegiado do
CJF aprovou o pedido que poderá engordar o contracheque dos beneficiados em
30%. No mesmo dia, decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ)
concedeu as vantagens a seus ministros que também exerçam diferentes funções. É
esperado que outras entidades representativas reclamem a benesse. Como o texto
do CNJ é vago, juízes também poderão requerer outros benefícios do Ministério
Público. É difícil até prever o tamanho do rombo.
No setor privado, o acúmulo de funções em
cargos de chefia é regra, sem que isso represente ganho extra. Se a remuneração
de juízes e procuradores fosse baixa, até se poderiam examinar situações
específicas. Ocorre o contrário. As duas carreiras dividem o topo da pirâmide
do funcionalismo público. No ano
passado, a despesa média mensal por magistrado foi de R$ 69.800,
incluindo remunerações, indenizações, despesas com viagens e diárias, encargos
sociais e previdenciários. Ao todo, o Judiciário consumiu R$ 116 bilhões, ou
1,2% do PIB, segundo o relatório Justiça em Números 2023 — 11 vezes o gasto
espanhol e nove o americano.
Barroso tem demonstrado preocupação genuína
com a eficiência e a imagem pública do Judiciário. A decisão do CNJ fere ambas.
O mesmo vale para a resolução do CNMP. Ambas precisam ser revistas.
Ondas de calor e enchentes tendem a se
agravar
Valor Econômico
Estudo do histórico de eventos climáticos
extremos no Brasil mostra que eles aumentaram frequência, intensidade e vão
piorar
Manaus ficou coberta por cinco dias a fio por
fumaça de queimadas e, o que é igualmente preocupante, por tempestades da
poeira proveniente dos leitos de rios secos na maior bacia fluvial do mundo. A
capital amazonense não escapou da onda de calor que engolfou o país, propícia à
difusão de incêndios que consomem a Floresta Amazônica e, novamente, o
Pantanal. O Sul vive sob chuvas torrenciais, enquanto as capitais do Sudeste e
do Centro-Oeste quebram recordes sucessivos de temperatura alta. O estudo do histórico
de eventos climáticos extremos mostra que eles vêm crescendo e vão piorar. O
calor abrasador e persistente é um sinal de que os efeitos das mudanças
climáticas podem estar mudando de patamar, e é vital se preparar para
enfrentá-los.
A conjunção do El Niño, que aquece as águas
do Pacífico, com temperaturas mais altas no Atlântico Norte, acima do Equador,
agravou uma situação ambiental frágil, marcada pela devastação na Amazônia e no
Cerrado. Não se trata apenas de um fenômeno sazonal e previsível, o que também
é, mas da progressão de condições climáticas adversas que vêm se agravando com
o aquecimento global.
Um levantamento do Instituto Nacional de
Pesquisas Ambientais (Inpe) mostra que, entre 1960 e 2020, as ondas de calor -
pelo menos seis dias consecutivos com temperaturas mais altas que a média do
período comparativo anterior - são mais frequentes e mais intensas. Hoje, os
brasileiros passam quase dois meses do ano sob calor sufocante (53 dias),
quando em 1990 viviam nessa condição por apenas uma semana por ano (Valor, 14
de novembro).
As altas temperaturas aumentam custos e
prejuízos pelo país. A agropecuária teve perdas de R$ 33,7 bilhões neste ano,
uma parcela dos R$ 300 bilhões dilapidados entre 2013 e 2022, segundo a
Confederação Nacional dos Municípios. Já os consumidores devem sentir no bolso
mais à frente a conta de energia mais alta provocada pela onda de calor. Na
segunda-feira, a demanda instantânea de carga no Sistema Interligados Nacional
bateu recorde, com 100.955 MW - foi a primeira vez que a marca dos 100 mil MW
foi ultrapassada. Pelo menos 10,5% da energia que atendeu a demanda veio das
usinas térmicas, mais caras e poluentes. Sinal de avanço, as energias solar e
eólica forneceram 28,4% da carga distribuída. A duração da onda quente,
estimada em uma semana, no entanto, continuará testando o sistema elétrico,
submetendo-o a risco maior de apagões.
O tempo extremamente seco torna-se propício à
disseminação do fogo das queimadas, que deixaram Manaus, cidade de dois milhões
de habitantes, com qualidade do ar péssima por vários dias. Apesar de entre
janeiro e outubro o desmatamento na Amazônia ter caído 21% em relação ao mesmo
período de 2022, a floresta registrou 3.360 focos de fogo em outubro, um
recorde para o mês. A maior parte deles situava-se no Pará (65%), e o restante
estava distribuído entre Amazonas, Mato Grosso e Rondônia.
As chamas não pouparam o Pantanal, que, após
terem queimado em 2020 cerca de 3,7 milhões de hectares do bioma, voltaram a se
espalhar em mais de 2,25 mil focos. Nas queimadas atuais, já foram destruídos
mais 852 mil hectares (Folha de S. Paulo, 14 de novembro). A baixa umidade do
ar (menos de 20%) e altas temperaturas devem prosseguir, e o governo do Mato
Grosso do Sul pode decretar estado de emergência em Corumbá e 14 municípios. A
devastação da Amazônia, que agora tenta ser contida por ações tempestivas do
Ministério do Meio Ambiente, piora as condições de enfrentamento do aquecimento
global, assim como a insuficiência das medidas de quase duas centenas de países
que voltarão a se reunir na COP28, a conferência do clima, na próxima semana.
As perspectivas, segundo a ONU, não são
auspiciosas. As emissões de gases de efeito estufa deveriam cair 45% até 2030
para evitar que a temperatura do planeta se eleve acima de 1,5°, mas, ao
contrário, elas subiram 9%, de acordo com estudo do Painel Intergovernamental
de Mudança Climática (IPCC) para a COP em Dubai (FT, 14-11). Os países deveriam
melhorar suas metas, mas não o estão fazendo. O esforço delineado em metas
nacionais é compatível com aumento muito maior, entre 2,3 e 2,7°, no qual
haverá catástrofes climáticas em série e ameaças constantes à sobrevivência
humana.
A adaptação a um cenário climático hostil exige planejamento de longo prazo e continuidade de ações, características que não são o forte do Estado brasileiro. O Ministério de Meio Ambiente tem um plano de ação contra eventos extremos que precisa sair do papel. Seu diagnóstico dá alguma dimensão do problema a ser enfrentado - 1.028 municípios e 40 mil áreas vulneráveis, nas quais vivem 10 milhões de pessoas. O MME começou a agir com bons resultados na Amazônia, mas um plano dessa escala exigirá a coordenação nacional de governos estaduais e municípios. Um primeiro passo, modesto, seria dotar os órgãos ambientais com recursos, pessoal e infraestrutura necessários para uma missão que tende a se tornar mais complexa e mais difícil se os objetivos do Acordo de Paris não forem alcançados.
Falsa equivalência
Folha de S. Paulo
Lula agride mortos ao comparar ação de
Israel, passível de críticas, a do Hamas
A cena era de celebração justa,
descontando-se o oportunismo que qualquer político abraçaria. Trinta e dois
brasileiros retirados do risco de morte na Faixa de Gaza foram recebidos em
Brasília por Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a quem trataram como salvador.
Na ação de repatriação ordenada pelo
presidente, 1.410 brasileiros foram removidos de Israel e 32, da Cisjordânia.
Faltava o grupo de Gaza, que viveu um calvário.
O motivo era o intrincado sistema de
liberação de estrangeiros na região, acordado por Israel, que não quer ver
terroristas fugindo disfarçados, pelo Egito, que não aceita imigração de
palestinos, e pelos mediadores EUA e Qatar.
Depois de muito vaivém, enfim o grupo
brasileiro conseguiu chegar a Brasília na segunda (13).
Mas aí Lula resolveu abrir a boca. Como de costume nos improvisos que faz,
falou um misto de mistificação e impropriedades, incompatíveis com o cargo que
ocupa.
Ele já havia sugerido que Israel era
responsável pela retenção dos brasileiros, ecoando tese da esquerda segundo a
qual Tel Aviv quis retaliar a condução da discussão da crise no Conselho de
Segurança da ONU, presidido por acaso pelo Brasil quando a guerra estourou.
Não há evidência disso. O Brasil apenas não é
ator prioritário: os EUA, além de seu peso, tinham 1.600 pessoas para resgatar.
Na pista, ao lado de um repatriado que havia
pedido a explosão de ônibus israelenses em rede social, comparou a campanha
militar aos ataques do Hamas. Nas suas
palavras, ambos são terroristas.
Antes, Lula havia acusado com a ligeireza
usual os israelenses de genocídio. A proporcionalidade da reação de Israel é
passível de críticas, por óbvio —tanto que o país as sofre até de aliados e vê
uma onda de antissemitismo mundial crescer na esteira da guerra. As políticas
opressivas de Tel Aviv para os palestinos, idem.
Mas o Hamas atacou brutalmente inocentes. O
grupo comandava Gaza como uma teocracia autoritária e violenta, sem
reconhecimento internacional ou apoio consensual entre os palestinos.
Israel é uma democracia, imperfeita como
todas e marcada por contradições —mas uma democracia.
Seus eventuais erros ou crimes na guerra
podem e devem ser objeto de escrutínio, e a conta de 11,2 mil palestinos mortos
evidentemente é chocante.
O petista encontrou tempo posteriormente até
para passar vergonha científica, associando o
uso de bombas à mudança climática.
A falsa equivalência de Lula, que agora pode
prejudicar eventuais novas repatriações, não se sustenta. Em nome de sua
vaidosa busca por destaque global e exalando o DNA do PT, ele agrediu não só
Israel, mas a memória dos 1.200 mortos e 240 reféns vítimas do Hamas.
Leitura censurada
Folha de S. Paulo
SC retira livros de bibliotecas; ofensiva à
direita ignora problemas do ensino
Jair Bolsonaro (PL) deixou o Palácio do
Planalto, mas a estratégia de ideologização de temas culturais pela qual se
elegeu e com a qual construiu o seu governo se mantém viva nas mentes de
apoiadores do ex-presidente e de representantes da direita populista.
A educação é uma das áreas mais afetadas por
essa lógica nefasta. Em vez de ser tratada como política pública de Estado,
acaba sendo manipulada por interesses políticos que pouco ou nada contribuem
para a melhoria do ensino.
O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), por
exemplo, há anos tem sido acusado, sem
bases sólidas, de doutrinação ideológica. Por mais que o fenômeno
possa ser observável pontualmente, setores radicais da direita exageram seu
alcance para criar uma pauta conservadora que lhes renda votos.
No caso mais recente, o governo de Jorginho
Mello (PL) em Santa Catarina mandou recolher nove
obras literárias das bibliotecas escolares do estado. No ofício, não
há justificativa para o ato autoritário, e a Secretaria de Educação se recusou
a informar para esta Folha os critérios utilizados para a seleção.
Alega-se que os livros serão redistribuídos
de acordo com a faixa etária dos alunos, mas note-se que os títulos não eram
usados em sala de aula, apenas faziam parte de um acervo literário.
Na lista, estão obras de terror, de ficção
científica, sobre bullying e até mesmo sobre neurociência e a história do
nazismo.
Antes de censurar livros, o poder público
deveria se preocupar com os estudantes que nem sequer conseguem lê-los ou
entendê-los.
No Brasil, são muitos. Tivemos desempenho
pífio no Pirls, prova internacional que avalia a alfabetização de alunos do 4º
ou do 5º ano do ensino fundamental. Entre 65
países, ficamos na 60ª posição.
Pesquisa da ONG Interdisciplinaridade e
Evidências no Debate Educacional, com base nos dados do Sistema de Avaliação da
Educação Básica de 2021, revelou que apenas 31,3% dos estudantes concluem o
ensino médio com aprendizado adequado em língua portuguesa.
Em vez de manipular a educação pelo viés ideológico em busca de resultados nas urnas ou alaridos nas redes sociais, políticos deveriam se preocupar em alocar de forma sensata os recursos do setor, melhorar a formação de professores, incrementar a infraestrutura das escolas.
O crime organizado se infiltra na política
O Estado de S. Paulo
Participação da ‘dama do tráfico’ em reunião
no Ministério da Justiça borra limites entre crime e Estado. Facções criminosas
atacam não só a população, mas também as instituições
A política sempre teve um pé no crime,
especialmente em algumas regiões do País.
Revelada pelo Estadão, a presença da “dama do
tráfico amazonense”, Luciane Barbosa Farias, mulher de um dos líderes do
Comando Vermelho, em reuniões no Ministério da Justiça e Segurança Pública
explicita não apenas um sério descuido na triagem de quem tem acesso à
administração federal, mas desvela uma realidade ainda mais grave e perigosa:
os esforços do crime organizado em se aproximar da política e interferir nela;
numa palavra, em fazer política.
Condenada em segunda instância a 10 anos de
prisão – e recorrendo em liberdade –, Luciane Barbosa Farias apresentou-se em
Brasília como presidente de uma associação, criada no ano passado, para
defender os direitos dos presos. Segundo a Polícia Civil do Amazonas, a
entidade é financiada com dinheiro do tráfico de drogas, atuando em benefício
de detentos ligados ao Comando Vermelho.
O Estadão apurou que Luciane Barbosa Farias
costumava circular em Brasília com Janira Rocha, ex-deputada estadual do
PSOL-RJ condenada em 2021 sob a acusação de “rachadinha” e que também teria
relações com o Comando Vermelho. Segundo a polícia, foram encontrados recibos
de transferências financeiras da facção para Janira Rocha, realizadas dias
antes da primeira reunião no Ministério da Justiça.
Tudo isso suscita especial preocupação. O
atrevimento do crime organizado tem produzido não apenas ações cada vez mais
aterrorizantes, como as ocorridas no Rio de Janeiro no mês passado, com a
queima de 35 ônibus. À luz do dia, os criminosos estão agindo para se aproximar
do poder estatal e, assim, interferirem em políticas públicas.
Trata-se de um patamar inédito de risco para
a população e as instituições. Não é mais apenas o desafio de o poder público
combater a criminalidade, com cada um – Estado e bandido – atuando a partir de
seus respectivos papéis. Está em curso uma tentativa de inversão de funções. Os
grupos criminosos querem participar de reuniões no Ministério da Justiça. Ou
seja, não é “apenas” a população que é atacada e se vê exposta aos riscos da
ação dos criminosos. Eles querem minar e subverter as próprias instituições que
têm o dever de enfrentá-los.
Talvez nada disso seja completamente novo. A
política sempre teve um pé no crime, especialmente em algumas regiões do País.
No entanto, o que assusta no fenômeno atual são os novos patamares de ousadia
das facções criminosas e de tolerância das autoridades. Está ficando cada vez
mais difícil distinguir quem está do lado da lei e da população e quem é
bandido. No governo passado, por exemplo, eram notórias as ligações de alguns
de seus integrantes com milicianos.
Nesse cenário, há um dado que merece especial
atenção. As facções criminosas vêm atuando politicamente sob o nome de
entidades civis de fachada, em suposta defesa de causas sociais. Isso é um
grave risco para o regime democrático. Sem saber, o poder público, que é o
responsável por combater a criminalidade, pode estar contribuindo com os
interesses de criminosos – o que seria inconstitucional e ilegal, além de
evidente contrassenso. É necessário impedir que grupos criminosos se utilizem
do Estado para suas ações.
Ao mesmo tempo, essa atuação das facções por
meio de supostas ONGs pode colocar muitas entidades sérias sob uma nuvem de
suspeita, levando a uma injusta criminalização de suas atividades. É preciso
diferenciar o que é a necessária participação da sociedade na política civil e
o que é atuação criminosa disfarçada de interesse social.
O problema, portanto, é muito mais sério do
que eventual conivência de alguns integrantes do governo Lula com organizações
criminosas, o que já seria extremamente grave e demanda investigação. As
instituições republicanas estão sob ataque do poder do crime. Não só com bombas
e explosivos, mas com uma arma ainda mais deletéria: as facções criminosas
utilizam-se enganosamente dos caminhos democráticos de representação e de
participação popular para impor suas pretensões. Não cabe tolerância com
tamanha e descarada afronta à paz e à cidadania.
A responsabilidade do jornalismo
O Estado de S. Paulo
Pesquisa nos EUA mostra queda no consumo de
notícias produzidas pela imprensa profissional e perda de credibilidade.
Jornalismo apegado aos fatos é necessário
A crise de confiança por que passa o
jornalismo profissional é global. Nos Estados Unidos, uma recente pesquisa
realizada pelo Pew Research Center revelou dados alarmantes. Quando
questionados sobre a frequência com que acompanhavam o noticiário, apenas 38%
dos americanos adultos – a partir de uma base de 12.147 pessoas ouvidas pelo
instituto em agosto do ano passado – responderam que se informavam “o tempo
todo ou quase o tempo todo”. Em 2016, mais da metade dos americanos adultos
(51%) dizia prestar atenção ao noticiário com essa frequência.
Outro dado chocante trazido pelo Pew diz
respeito diretamente à credibilidade dos meios de comunicação ditos
tradicionais. Em 2022, apenas 15% dos americanos adultos disseram acreditar
“muito” que os veículos jornalísticos nacionais publicam notícias de forma
justa e precisa. A confiança nos jornais locais é um pouco maior (17%), mas
ainda sofrível. Em 2016, esses porcentuais de confiança absoluta eram de 18% e
22%, respectivamente. No ano passado, ainda de acordo com a pesquisa, 46% dos
entrevistados disseram confiar “um pouco” nos veículos de alcance nacional,
ante 54% que disseram o mesmo sobre a mídia local.
A análise do Pew Research Center, com base em
dados coletados entre 2016 e 2022, abrange todo o tormentoso mandato
presidencial de Donald Trump, um inimigo declarado do jornalismo profissional
e, pior, da verdade factual. Porém, por mais tentador que seja fazê-lo, é um
erro atribuir o declínio da confiança nos meios de comunicação aos ataques
desferidos por Trump contra os jornalistas e contra os fatos. Antes, a ascensão
política de uma liderança disruptiva como o ex-presidente americano é um
sintoma, não causa, desse processo de erosão do reconhecimento da verdade
factual sobre a qual o jornalismo profissional, para defender sua própria razão
de ser, não pode se eximir de responsabilidade.
Além de um certo “estresse noticioso”,
chamemos assim, cada vez mais pessoas têm procurado consumir apenas as
“notícias” que vêm de fontes que confirmam suas crenças e vieses
político-ideológicos, proporcionando-lhes o conforto emocional que só informações
tendenciosas podem dar. Os veículos de imprensa, por sua vez, não raro têm
cometido o erro de confundir aumento da presença no universo digital com a
genuflexão à lógica das redes sociais, espaço em que as emoções e as percepções
pessoais da realidade valem muito mais do que os fatos.
Como diria Mark Twain, no entanto, as
notícias sobre a morte do jornalismo profissional são bastante exageradas. Os
desafios são imensos, é claro, sobretudo a partir da massificação das redes
sociais digitais, graças às quais os meios de comunicação ditos tradicionais
deixaram de ser os únicos mediadores do debate público. Seja por
desconhecimento dos rigores da profissão, seja por má-fé, não faltaram vozes
nos últimos anos a pontificar que, da noite para o dia, qualquer indivíduo com
um smartphone na mão virou jornalista. Porém, para desgosto de seus detratores,
o jornalismo profissional não só está vivo, como se mostra hoje mais essencial
do que nunca. Em meio ao vertiginoso fluxo de informações que exasperam bilhões
de pessoas mundo afora, uma curadoria responsável é artigo de primeiríssima
necessidade.
Precisamente por sua extrema relevância
nesses tempos em que as noções de “verdade” e “mentira” não se distinguem mais
pelo reconhecimento comum da realidade factual, mas sim por crenças e vieses
individuais, é que o jornalismo profissional tem o dever de olhar para dentro,
refletir sobre seus erros e tratar de corrigi-los o mais rápido possível. Disso
depende a solidez da democracia nas sociedades livres, como a brasileira. Nada
menos. “A credibilidade do jornalismo”, dissemos nesta página há poucos dias,
“será tanto maior quanto maior for a sua humildade” (ver O bom combate do
jornalismo, 29/10/2023).
Curiosamente, o jornalismo profissional está passando por uma crise para a qual a solução há muito é conhecida: apego aos fatos e respeito ao público. E respeitar o público não raro significa incomodá-lo, pondo à prova suas crenças mais enraizadas.
Eletrificação do transporte coletivo
O Estado de S. Paulo
Para ganhar escala, transporte público
precisa de regras e infraestrutura padronizadas
Município mais rico do País, São Paulo
ingressará em 2024 sob a perspectiva de colocar 2,6 mil ônibus elétricos em
circulação na cidade. Até agora, é o maior projeto de descarbonização do
transporte coletivo nacional, mas o Brasil ainda está distante do ganho de
escala necessário para alcançar metas sustentáveis de mobilidade urbana. O
objetivo carece de política pública nacional que incentive a substituição das
frotas municipais por veículos que ainda custam, em média, o triplo dos ônibus
movidos a diesel.
A liderança de São Paulo entre os municípios
brasileiros na busca pela transição energética é natural. Afinal, a cidade já
foi apontada pelas Nações Unidas como o quarto maior aglomerado urbano do mundo
e figura entre os maiores mercados de transporte por aplicativo, por exemplo.
São fatores que elevam o setor de transportes à categoria de maior poluidor do
Município, responsável por 51% das emissões, de acordo com o Sistema de
Estimativas de Emissões e Remoções de Gases do Efeito Estufa, em contraste com
a média nacional, que não chega a 10%.
Como mostrou reportagem do Estadão, a decisão
de elevar para 20% a participação de veículos elétricos na frota de 11,9 mil
ônibus na cidade de São Paulo desperta o interesse de montadoras por novos
investimentos. Mas, para um efetivo ganho de escala nacional, é imprescindível
que haja padronização de políticas de infraestrutura, como a de eletropostos,
além de regras e metas estabelecidas para todo o território nacional.
Desde setembro tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 4516/23, também batizado de Combustível do Futuro, que prevê programas para o diesel verde, combustível sustentável de aviação e o marco legal da captura e estocagem de CO2. A mobilidade sustentável também passa pela emissão zero do transporte eletrificado. E este segmento só irá em frente no Brasil por meio de incentivos que tornem mais em conta a produção e aquisição dos veículos.
A transformação do transporte público no
pilar da transição energética veicular brasileira é a alternativa possível
diante da substituição mais difícil, lenta e onerosa da frota de carros de
passeio. Atualmente, um carro elétrico não sai por menos de R$ 130 mil,
enquanto seu equivalente a gasolina custa pouco mais do que a metade. Sem
contar que a própria essência da mobilidade sustentável passa pela adoção do
transporte compartilhado.
Dados reunidos pela publicação Desafio –
Mobilidade Urbana e Mudanças Climáticas, parceria entre o Cebrap e a Fundação
Itaú, mostram que, com seus 4,4 milhões de veículos, São Paulo queima
combustível com tal intensidade que levou o Município a figurar entre os cinco
maiores emissores de gases poluentes do País. Os outros quatro ficam na Região
Amazônica onde, como se sabe, queimadas e desmatamento são as principais causas
de emissão de CO2.
A corrida pela transição energética no transporte das cidades brasileiras pede uma mudança de cultura da sociedade e políticas mais eficientes e coordenadas de União, Estados e municípios.
Racismo se combate com educação
Correio Braziliense
Até mesmo os negros foram prejudicados e não
se reconhecem como afrodescendentes em razão de uma educação truncada que não
lhes permitiu conhecer a sua origem ancestral
Vinte de novembro é Dia de Zumbi e da
Consciência Negra (Lei n° 12.519/2011). A data em homenagem ao líder do
Quilombo dos Palmares (morto em 1695) é comemorada por uma parcela da população
preta e parda, mas não reconhecida por todas as unidades da Federação (estados
e municípios), inclusive o Distrito Federal, onde é ponto facultativo. O 20 de
novembro é feriado em seis dos 27 estados e em 1.260 dos 5.570 municípios. Os
dados da Fundação Palmares são forte indicativo do preconceito e do racismo,
que se manifestam de diferentes formas de violência e de opressão praticadas
contra o povo negro tanto pelo poder público quanto pelos não negros.
A indiferença do poder público aos negros não
é restrita à comemoração de uma data específica. É padrão de comportamento e
das decisões. Falta paridade nos espaços relevantes do poder. Quando um negro,
seja homem ou mulher, é guindado a um cargo importante na estrutura de poder,
ele se torna notícia em todos os meios de comunicação por ser um fato raro,
embora componha 56% da população brasileira.
Historicamente, os estudos do Fórum
Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) revelam que os negros são a maioria das
vítimas de assassinato. Durante 2021, em cada 100 homicídios, 78 pessoas eram
negras, e 84,1% dos mortos pelas polícias eram afro-brasileiros. No mesmo ano,
foram registrados 13.830 casos de injúria racial e 6.003 de racismo, crimes
inafiançáveis e imprescritíveis. O enrijecimento da legislação penal não inibe
a violência contra os pretos, sobretudo quando ela é praticada pelos agentes
públicos.
A ministra da Igualdade Racial, Anielle
Franco, admitiu, meses atrás, em entrevista à equipe do Correio, que falta
letramento racial dentro e fora do poder público. Em parceria com o Ministério
da Educação, ela anunciou que ambas as pastas trabalhavam no sentido de tornar
real o cumprimento da Lei n° 10.639/2003, que inclui no currículo oficial da
rede de ensino a obrigatoriedade da temática história e cultura
afro-brasileira.
Esta mudança começaria por meio dos livros
didáticos, cujo conteúdo, na maioria das vezes, não tem espaço para o
protagonismo negro. Uma década atrás, quando a lei entrou em vigor, os
fundamentalistas rechaçaram a sua aplicação. Preconceito, racismo, intolerância
religiosa e entendimentos equivocados da cultura afro-brasileira impediram a
aplicação do marco legal. Adiou-se a oportunidade de tornar a educação um
instrumento dos esforços contra o racismo, desmistificando conceitos e práticas
inexistentes no universo dos afrodescendentes. Até mesmo os negros foram
prejudicados e não se reconhecem como afrodescendentes em razão de uma educação
truncada que não lhes permitiram conhecer a sua origem ancestral. Perderam,
portanto, a possibilidade de se impor diante de realidades e estatísticas tão
desfavoráveis.
As distorções ainda hoje são cultivadas e,
muitas vezes, estimuladas por fundamentalistas e supremacistas brancos. Rever a
grade curricular e cumprir a legislação não significa uma deferência especial
aos negros. Trata-se de um reconhecimento do expressivo papel que desempenham
na sociedade brasileira, desde o início do século 16, quando aportaram no
Brasil, como escravos, para garantir o desenvolvimento econômico do país. Ainda
hoje, os pretos e pardos somam 61,3% da força de trabalho do país. Injustamente,
são os que recebem os menores salários, ainda que tenham a mesma formação e
capacidade de um não preto.
Educar a sociedade para a equidade étnica-racial é papel que se impõe ao Estado Democrático de Direito, uma real afronta à Constituição Cidadã de 1988. Essa educação começa desde a primeira infância até os níveis superiores, para que todos se reconheçam como iguais perante as leis, as políticas públicas e as oportunidades de trabalho. O racismo dominante torna a sociedade brasileira doente e desumana e apequena o Brasil plural e diverso, sua principal marca entre a concertação das nações do mundo.
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