terça-feira, 19 de dezembro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Regulação de jogos on-line deve ser prioridade

O Globo

Normas para as apostas esportivas são positivas. Câmara precisa agora restabelecer regras para as demais

As agruras de apostadores iludidos por jogos de azar na internet demonstram que o mercado de apostas on-line no Brasil precisa urgentemente de regras claras, para que as empresas dispostas a segui-las se legalizem, enquanto as aventureiras, interessadas apenas em lucrar se aproveitando da boa-fé dos apostadores, possam ser punidas na forma da lei.

Um bom exemplo de como o apostador pode ser ludibriado num mercado desregulado é a plataforma Blaze, responsável pelo popular “jogo do aviãozinho”, tema de reportagem do Fantástico no último domingo. Sem sede nem representação no Brasil, ela ganhou mercado ao ser incensada por anúncios protagonizados por celebridades e influenciadores digitais prometendo dinheiro rápido e fácil. Na prática, o jogo, ilegal no país, é uma cilada. Segundo a reportagem, uma investigação da polícia de São Paulo revelou que os prêmios prometidos não são pagos ou são saldados com valores inferiores.

É preciso reconhecer que o Brasil tem caminhado na direção certa na regulação. O Senado aprovou Projeto de Lei (PL) oriundo da Câmara regulamentando as apostas esportivas, oferecidas por empresas conhecidas como bets. O governo diz ter identificado no Brasil ao menos 300 sites de bets, cujo faturamento anual é avaliado em R$ 100 bilhões. Regulamentá-las é uma necessidade não apenas porque não recolhem impostos. A própria credibilidade do futebol já foi posta em dúvida quando o Ministério Público de Goiás descobriu um esquema em que quadrilhas pagavam propinas a jogadores para faturar com apostas.

O texto aprovado no Senado prevê tributação de 12% sobre a renda das bets e de 15% sobre o prêmio das pessoas físicas. Institui também uma outorga inicial de R$ 30 milhões, paga pelas empresas. Numa estimativa preliminar, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, prevê arrecadar pelo menos R$ 2 bilhões em 2024. A tendência é esse montante crescer.

Para coibir fraudes, o PL exige das bets requisitos técnicos de segurança e infraestrutura certificada, além de integração com organismos internacionais de monitoramento esportivo. Uma emenda da senadora Tereza Cristina (PP-MS) proíbe a instalação de equipamentos em estabelecimentos físicos para evitar a proliferação de máquinas caça-níqueis e cassinos clandestinos.

Na votação, também foi acatada emenda do senador Carlos Portinho (PL-RJ) retirando do texto autorização para “cassinos virtuais”. Na prática, isso deixou um vácuo justamente onde florescem negócios fraudulentos como a Blaze.

Se o PL for aprovado na Câmara na forma como saiu do Senado, o mercado de apostas esportivas terá regras sensatas, mas jogos de azar como os oferecidos pela Blaze continuarão num limbo regulatório. De nada adianta o esforço para regular as bets se a lei não dispuser de mecanismos capazes de coibir fraudes com outros tipos de aposta on-line. Por isso a Câmara deveria devolver o texto à forma anterior. Não se trata de legalizar jogos de azar, mas de criar instrumentos jurídicos adequados para punir os sites fraudulentos e uma estrutura robusta de fiscalização. Será preciso garantir que empresas operando na legalidade recolham os impostos e cumpram as regras. E que as demais sejam punidas e impedidas de operar no Brasil.

Derrota de texto constitucional em referendo chileno restaura bom senso

O Globo

País deverá agora apostar em reformas graduais em vez de tentar reescrever uma Constituição do zero

O presidente Gabriel Boric fez bem ao acabar com a iniciativa de redigir uma nova Constituição para o Chile. Nenhuma das tentativas deu certo. As duas propostas levadas aos eleitores foram rechaçadas por maioria ampla. A primeira, em setembro de 2022, refletia os anseios ideológicos da esquerda e perdeu por uma diferença de 24 pontos percentuais (62% a 38%). A segunda, de inclinação mais conservadora, foi derrotada por 11 pontos percentuais em referendo no último domingo (55% a 44%). Com o resultado, continua em vigor a Constituição que data da ditadura de Augusto Pinochet, mas depois foi várias vezes alterada por meios democráticos, garantindo seu sucesso. Melhor assim. Será mais sensato e produtivo reformar uma Carta que tem dado certo do que reescrever tudo do zero.

O Chile é o maior sucesso econômico na América Latina nas últimas décadas. A renda per capita chilena era pouco menor que a brasileira em 1989, ano da redemocratização. Hoje é o dobro. A população abaixo da linha da pobreza caiu de 11% para 0,7%, sem maior desigualdade. A abertura comercial incentivou as empresas competitivas e criou um mercado atraente ao investidor. Apesar dos avanços, as ruas chilenas foram tomadas por protestos em 2019. Muitos se sentiam excluídos e denunciavam a exaustão do modelo. Acossado, o então presidente Sebastián Piñera fechou acordo com a oposição para perguntar em plebiscito se os chilenos gostariam de uma nova Constituição. Em 2020, 79% responderam que sim.

Na escolha dos constituintes, só 43% dos eleitores votaram. Com o país sob influência dos protestos, a maioria dos eleitos pertencia à esquerda, muitos sem experiência política. A Constituinte chegou a cogitar ideias desvairadas, como nacionalizar os recursos naturais ou acabar com a independência do Banco Central. No final, o texto saiu repleto de exageros, nos campos econômico e político (expropriações por valor abaixo do mercado, cerceamento aos Poderes, extensão do direito a greve além do razoável e até reconhecimento de sistemas jurídicos indígenas).

A proposta foi derrotada em referendo em 2022, e os chilenos voltaram a escolher constituintes. Desta vez, a direita levou vantagem, e a nova Carta saiu mais conservadora. O texto previa corte de impostos sobre propriedades, diminuição da influência do Estado nos currículos das escolas, expulsão de migrantes sem documentação e a inclusão da expressão “direito à vida de quem está por nascer”, uma brecha para contestação judicial ao aborto legal. Foi derrotado no último domingo.

Prevaleceu o bom senso: o Chile deverá persistir em reformas graduais para corrigir os pontos problemáticos de sua Constituição, como legislação previdenciária e direitos sociais. Durante 25 anos, o país deu exemplo de equilíbrio ao mundo com alternância de poder em torno de uma agenda consensual. Agora, a coalizão de esquerda liderada por Boric é minoritária, e partidos da oposição têm bloqueado suas iniciativas. Para reformar a Constituição, será primeiro preciso resgatar a capacidade chilena de obter consensos.

Produtividade cresce no ano, mas é preciso mais

Valor Econômico

Um dos motivos da melhora da produtividade, segundo os analistas da FGV, é o aumento do emprego formal neste ano

A aprovação da reforma tributária encheu de otimismo os que contam com a modernização da economia para melhorar a produtividade do país. Historicamente muito baixa, a produtividade mostrou recuperação surpreendente neste ano graças a uma combinação de fatores. Mas precisa muito mais para manter os ganhos em 2024 e avançar.

O Observatório da Produtividade Regis Bonelli, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), calcula que, de 1981 a 2022, o crescimento médio da produtividade por hora trabalhada, uma das métricas mais utilizadas, foi de mero 0,5% ao ano. Segundo o ranking de produtividade da World Population Review de 2022, mencionado em artigo no Valor (30/11), o Brasil estava em 57º lugar entre 62 países, atrás de Argentina, México, Uruguai, Chile, Colômbia, Peru e Equador. Países desenvolvidos exibiam índices muito superiores, como a Noruega (sete vezes maior), os EUA (6,2 vezes) e a Alemanha (5,3 vezes).

Desde a década passada, os índices de produtividade do trabalho oscilam como uma gangorra no Brasil. Houve queda na recessão de 2015 e 2016, uma recuperação tímida em 2017 e 2018, e novamente queda em 2019. Quando sobreveio a pandemia, ela surpreendentemente saltou, em consequência do chamado efeito composição. Em consequência das medidas de restrição à mobilidade, houve a saída do mercado de trabalhadores menos produtivos, como os informais, de atividade em serviços presenciais como alimentação e hospedagem. O mesmo fenômeno aconteceu em outros países.

Nos dois anos seguintes, o processo se inverteu. Os trabalhadores informais voltaram ao mercado e, aos poucos, houve a retomada dos serviços presenciais. Com isso, a produtividade do trabalho retomou a tendência de queda anterior, lembraram os analistas do Observatório Fernando Veloso e Fernando de Holanda Barbosa Filho, no Seminário Produtividade e Mercado de Trabalho, realizado na semana passada pelo FGV Ibre e pelo Valor e transmitido em live.

A novidade mesmo aconteceu neste ano, quando a produtividade por horas efetivamente trabalhadas cresceu em todos os trimestres na comparação com o mesmo período de 2022. No terceiro trimestre, o crescimento foi de 2,3% em relação ao mesmo período do ano passado. Na mesma base de comparação com iguais períodos de 2022, a produtividade cresceu 1,4% no primeiro trimestre e 2,7% no segundo. Agora, o índice de produtividade está 2,6% acima do nível pré-pandemia, salientou Veloso, coordenador do Observatório. No caso da produtividade total dos fatores (PTF), que leva em conta também o capital, a alta foi de 0,5% na mesma comparação do terceiro trimestre deste ano e o mesmo de 2022.

Um dos motivos da melhora da produtividade, segundo os analistas da FGV, é o aumento do emprego formal neste ano. Mais da metade das pessoas que entraram no mercado de trabalho conseguiu emprego formal. São geralmente profissionais com maior escolaridade e produtividade. Segundo dados da Pnad Contínua, calculada pelo IBGE, o número de empregados com carteira de trabalho no setor privado chegou a 37,6 milhões de trabalhadores, o maior contingente desde junho de 2014. A taxa de desemprego no trimestre móvel terminado em outubro ficou em 7,6%, abaixo dos 8,3% do mesmo período de 2022. Para os especialistas do FGV Ibre, a criação expressiva de empregos formais é sinal do sucesso da reforma trabalhista.

Outro fator que influiu no aumento da produtividade foi o desempenho do setor agrícola, que também impulsionou o Produto Interno Bruto (PIB) neste ano. A produtividade por horas efetivamente trabalhadas na agropecuária saltou 14,6% no terceiro trimestre em relação a igual período de 2022. Enquanto isso, a produtividade do trabalho da indústria aumentou 3,3%, e a dos serviços, 0,8% na mesma base de comparação. Foi o segundo trimestre seguido de expansão da produtividade nos três setores. Em detalhes, a indústria extrativa mineral, a intermediação financeira e os serviços industriais de utilidade pública têm apresentado forte crescimento no valor adicionado e contribuído para a elevação da produtividade.

Mas é o desempenho do agronegócio (incluído insumos, máquinas e indústrias de alimentos) que é surpreendente, como foi em 2017, embora insuficiente para causar impacto significativo dado que representa menos de 25% do PIB. Para mostrar alguma diferença o impulso deveria vir dos serviços, que significam 70%, segundo os analistas do FGV Ibre.

Para Veloso, as reformas feitas ao longo dos últimos anos podem igualmente estar favorecendo a produtividade. Entre elas, mencionou a PEC da Transição, as reformas trabalhista e da Previdência, os marcos das garantias e o do saneamento e, agora, a reforma tributária. Mas esta entra agora na fase decisiva de regulamentação e definição de produtos e serviços beneficiados por tratamento especial, que vão determinar o resultado final. Como se sabe, o diabo está nos detalhes.

Ajuda de fora

Folha de S. Paulo

Corte de juros pelo Fed favorece Brasil, mas governo Lula precisa conter gastos

Graças ao progresso surpreendente no controle da inflação, o Federal Reserve, banco central americano, indicou que pretende promover um corte de sua taxa básica de juros maior do que o considerado anteriormente.

A nova projeção aponta três reduções de 0,25 ponto percentual em 2024, o que levaria o custo do dinheiro do intervalo de 5,25% a 5,5% ao ano para um de 4,5% a 4,75%.

O cálculo de variação de preços mais acompanhado pelo Fed, o núcleo de inflação do consumo das famílias, mostra melhora notável, de 4,9% em 2022 para esperados 3,2% neste ano. Ademais, se confirmadas as projeções dos membros do comitê de política monetária, o índice será de 2,4% em 2024, pouco acima da meta de 2%.

Daí o otimismo cauteloso de Jerome Powell, presidente do Fed, em sua entrevista coletiva mais recente. Há riscos e o processo pode não se confirmar, mas o que se obteve até aqui era tido como tarefa quase impossível há alguns meses.

Já se observa impacto nos mercados financeiros, com retomada forte das bolsas internacionais nas últimas semanas, desvalorização do dólar e melhora nas condições financeiras. Fica reduzida agora a probabilidade de uma recessão, que era temida devido ao aperto monetário imposto pela instituição nos últimos dois anos.

Para o restante do mundo, que depende dos ciclos monetários do maior centro financeiro global, há considerável alívio que facilita o trabalho das autoridades.

No Brasil, portanto, mantém-se a perspectiva positiva de que o Banco Central poderá continuar a reduzir a taxa Selic nos próximos meses. Analistas avaliam que o índice voltará a um dígito em breve, atingindo 9% anuais.

Também há tendência de queda da inflação aqui, com alívio nas cotações de matérias-primas e, mais importante para a política monetária, das pressões mais duradouras sobre os preços.

As projeções mais consensuais de mercado apontam para um IPCA de 3,93% em 2024 e de 3,5% em 2025, níveis ainda acima da meta de 3%, contudo menos desconfortáveis do que há poucos meses.

O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ganha assim maior margem de manobra, mas persistem os problemas de gestão, sobretudo em relação ao Orçamento público. O ímpeto gastador do Executivo é um obstáculo que pode trazer descontrole econômico adiante.

Por isso é necessário que, mesmo diante da conjuntura externa mais favorável, o governo implemente um controle robusto das despesas. Contar apenas com a alta da já exorbitante carga tributária, além de insuficiente, significará manter o país dependente das oscilações do humor internacional.

Aprendizado chileno

Folha de S. Paulo

País encerra processo de troca da Constituição, que se mostrou contraproducente

Terminou de maneira anticlimática, mas instrutiva, a novela da troca da Constituição do Chile.

No domingo (17), o eleitorado chileno rejeitou, por 55,8% a 44,2% dos votos, a proposta de nova Carta elaborada por um colegiado eleito de maioria direitista, incluindo expressiva parcela de radicais.

Em setembro do ano passado, outro texto constitucional, daquela vez elaborado pela esquerda, fora recusado pela população por uma margem ainda mais ampla, de 61,9% a 38,1%.

O frenesi legiferante, como se sabe, teve início após a onda de protestos populares, não poucos violentos, que sacudiu o país em 2019. A resposta das forças políticas às manifestações difusas de insatisfação foi a substituição da Carta redigida em 1980, sob a sangrenta ditadura de Augusto Pinochet.

A gangorra ideológica dos últimos anos não chegou a uma solução satisfatória para os anseios dos eleitores. Primeiro, uma assembleia esquerdista, com apoio do jovem presidente Gabriel Boric, 37, produziu um texto que virava do avesso quase todo o ordenamento jurídico do país.

Contemplava-se ali o pleito, muito presente nos atos de 2019, de ampliação da previdência pública. A isso se somavam ensino superior gratuito, liberação do aborto, reformulação do Senado e da estrutura de governo e previsão de 50% de mulheres em todos os órgãos de Estado, entre outras mudanças.

Em comparação, a proposta rejeitada no domingo era bem menos ambiciosa, ao estilo conservador de seus formuladores. De pior, trazia empecilhos à interrupção da gravidez e um tom hostil a migrantes irregulares.

Com a segunda resposta negativa dos chilenos, encerra-se o processo constituinte —e o país, mesmo que por vias tortuosas, não se deixou seduzir pelo fascínio que a redação de novas Cartas costuma despertar no continente.

A despeito de ter sido gestado originalmente por uma ditadura, a Constituição chilena não impediu uma estabilidade democrática que já dura mais de três décadas. Nesse período, o Chile foi um exemplo de sucesso econômico na vizinhança, com renda hoje similar à de países desenvolvidos.

Se há demanda da sociedade por mais ação do Estado e proteção social, nada impede que o texto seja alterado a partir de entendimentos políticos. A ideia de reviravolta completa e redentora é, não raro, ilusória e contraproducente.

Constituinte não é guerra cultural

O Estado de S. Paulo

O processo constitucional chileno, malgrado ter fracassado depois de cinco eleições, deixou lições valiosas: Constituições devem refletir um pacto possível, e não utopias ideológicas

A refundação constitucional chilena fracassou. Em quatro anos, os chilenos promoveram cinco eleições. Primeiro, em favor de uma nova Constituição. Por duas vezes criaram uma Assembleia Constituinte e por duas vezes rechaçaram suas propostas. Perdeu a direita, que recebera um mandato na última Constituinte. Perdeu a esquerda, que deflagrou o processo em 2019, teve sua chance na primeira Assembleia e agora, ironicamente, votou pela manutenção da Constituição legada pelo ditador Augusto Pinochet. Perdeu a classe política, que saiu desmoralizada. Perdeu o povo: desde 2019, não só os problemas que motivaram o movimento constitucional – como desigualdades na previdência ou saúde – não foram solucionados, como outros – como desaceleração econômica, crise migratória e violência – se somaram.

Uma terceira rodada está descartada. Segundo uma pesquisa da consultoria Cadem, o sentimento predominante em relação à recriação constitucional é “uma perda de tempo”. Será? Tudo depende de saber se as lições – importantes não só para o Chile, mas para as democracias – serão aprendidas.

Uma dessas lições diz respeito à forma e ao procedimento. Segundo os cientistas políticos americanos Z. Elkins e A. Hudson, desde 1789 as democracias aprovaram 94% dos 179 referendos constitucionais. Mas nos sistemas políticos contemporâneos é preciso perguntar até que ponto plebiscitos e referendos são adequados para decidir questões complexas. No caso do Chile, a coisa se complicou porque, ao invés de uma proposta de Constituição clara e sucinta, fixando direitos fundamentais e regras gerais para o funcionamento do Estado, esquerda e direita tentaram constitucionalizar regras que seriam mais bem encaminhadas nas disputas políticas ordinárias.

Isso leva à segunda lição, sobre o conteúdo. A primeira Constituinte foi dominada por políticos radicais e independentes sem disciplina partidária. O resultado foi uma lista de desejos progressistas utópica e prolixa. Na segunda Assembleia, correções foram feitas: concordou-se preliminarmente com 12 princípios a serem mantidos por qualquer carta, reduziu-se a margem para independentes e foi concertada uma comissão de juristas de todo o espectro político para redigir um texto preliminar. Mas ele foi desfigurado pela nova direita, que embutiu regras pró-mercado controversas e princípios moralistas.

Guerras culturais, revanchismos partidários e sua arma, a desinformação, intoxicaram o processo. Além do ônus do atraso nas reformas e políticas públicas, há o risco de que o descrédito no processo democrático convide a aventuras autoritárias.

E agora? Em primeiro lugar, o anseio por mudanças constitucionais não desapareceu. Mas elas precisarão ser realizadas gradualmente. Antes, o Chile precisa enfrentar insatisfações que independem da Constituição, como segurança, educação e mesmo a crise do sistema privado de saúde.

Para tanto, governo e oposição precisam flexibilizar suas atitudes. Os chilenos disseram “não” aos tribalismos de esquerda e de direita. O Chile possui um capital importante: a seriedade de suas elites políticas e a capacidade de gerar consensos. Esse capital, o segredo da Concertación, não era ótimo, mas era bom, e, após ser dilapidado, precisa ser resgatado e aprimorado com realismo.

Como disse o sociólogo Eugenio Tironi: “Nós chilenos saímos desta experiência constitucional como se sai muitas vezes da terapia: aceitando que o processo foi mais amplo do que o previsto, com a sensação de não ter descoberto a pedra filosofal, mas mais conformados com a vida que nos cabe viver”.

Há um ponto positivo no processo. A violência política, que há 50 anos – primeiro com autoritarismo esquerdista, depois com o direitista – deixou feridas profundas, parecia em 2019 estar sendo de novo validada. Mas, ao fim, tanto a euforia quanto o fracasso constitucional foram vivenciados pelos militantes de ambos os lados, se não com o respeito e a maturidade que o momento exigia, em paz. A paz não é condição suficiente para o consenso, mas é indispensável, e mantê-la é a primeira tarefa dos chilenos para que possam viver a vida que lhes cabe viver.

Os ‘humanos direitos’ e os direitos humanos

O Estado de S. Paulo

Aqueles que reivindicam a aplicação desses direitos às pessoas que aguardam julgamento pelo 8 de Janeiro devem estar prontos para reconhecê-los também em relação às demais

Recentes manifestações da militância bolsonarista, nas ruas e no Parlamento, têm insistido na denúncia de supostas violações a direitos das pessoas presas pelos atos golpistas do 8 de Janeiro. No fim de novembro, o deputado Filipe Barros protocolou requerimento para a criação de uma comissão externa na Câmara, com o objetivo de “acompanhar in loco a situação carcerária, as prerrogativas dos advogados e os julgamentos dos presos em decorrência do 8 de janeiro”. Nesse requerimento, o parlamentar cita como justificativa para instauração da comissão a morte de Cleriston Pereira da Cunha, que estava preso em decorrência daqueles atos.

A crítica bolsonarista, porém, não se limita às condições prisionais, mirando também o procedimento instaurado no STF para o julgamento dos réus. Protesta-se, por exemplo, contra as penas alegadamente excessivas impostas às pessoas julgadas, assim como a realização de julgamentos pelo plenário virtual da Corte, o que contrariaria as garantias constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa.

A centralidade desses temas para a militância é confirmada no vídeo de convocação para os recentes atos de rua. Além da crítica à indicação de Flávio Dino ao STF, tais atos tinham como mote, nas palavras de um parlamentar, o “respeito ao direito do cidadão de se defender”. Como se vê, em suas manifestações hodiernas, o bolsonarismo tem ido além da defesa de sua peculiar concepção da liberdade de expressão para encampar outros direitos humanos.

A incorporação dessa temática à pauta de qualquer movimento político é bem-vinda. Mas, no caso dos partidários do ex-presidente Jair Bolsonaro, é preciso atentar aos termos e à extensão dessa incorporação.

Nesse sentido, é curioso observar que os reclamos humanitários dos bolsonaristas coincidem com o aniversário de 75 anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas em dezembro de 1948.

Essa Declaração elevou os direitos humanos a um patamar inédito. Com ela, o reconhecimento desses direitos deixou de ser uma questão local, dependente da iniciativa de cada Estado, e passou a ser universal, de modo que seus destinatários não são mais apenas os cidadãos desse ou daquele Estado, mas todos os seres humanos.

Além dessa universalização, a Declaração de 1948 impulsionou a especificação dos direitos humanos. Com isso, a titularidade desses direitos deixou de se restringir ao indivíduo singular para alcançar, por exemplo, minorias étnicas e religiosas. Da mesma forma, aquele indivíduo deixou de ser visto como um ente genérico e passou a ser considerado em suas específicas maneiras de ser em sociedade – como mulher, idoso, etc. Vêm daí documentos como a convenção para a prevenção e repressão do crime de genocídio (1948) e a convenção sobre os direitos políticos da mulher (1952), entre outros.

Esse processo de universalização e especificação dos direitos humanos, inaugurado com a Declaração de 1948, põe à prova os apelos bolsonaristas pelo reconhecimento desses direitos. Afinal, o bolsonarismo nunca primou por esse reconhecimento. Pelo contrário: Bolsonaro já tratou temas relacionados aos direitos humanos como “direitos de bandidos” e “esterco da vagabundagem”, desvalorizando ou ironizando situações e reivindicações de grupos desfavorecidos ou em minoria na sociedade.

Não espanta que o ex-mandatário ignore que um dos fundamentos da nossa República é a dignidade da pessoa humana, o que impõe ao Estado, suas instituições e representantes valorizar e certificar o cumprimento dos direitos humanos. Obviamente, isso também se aplica às pessoas que aguardam julgamento pelos atos golpistas do 8 de Janeiro. No entanto, aqueles que reivindicam a aplicação desses direitos a tais pessoas devem estar prontos para reconhecê-los também em relação às demais. Os direitos humanos são patrimônio de todos os seres humanos, não só dos que arrogantemente se consideram “humanos direitos” – até porque, quantos “humanos direitos” havia na invasão e destruição da Praça dos Três Poderes?

A criatividade de Cláudio Castro

O Estado de S. Paulo

O que o governador do Rio quer é autorização para gastar sem qualquer compromisso de redução de despesas

O governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, acaba de criar uma tese inovadora para resolver a infindável crise fiscal de seu Estado. Não quer mais pagar os juros correspondentes aos empréstimos que o Estado tomou nos últimos anos, todos avalizados pela União. O argumento? A União não é um banco e, por isso, não pode cobrar juros, apenas mora. “Um ente público não tem que ganhar dinheiro em cima do outro”, disse.

Há que reconhecer: não falta audácia ao governador, que promete apresentar essa proposta indecorosa ao Supremo Tribunal Federal (STF). “Isso praticamente zera nossa dívida, já que ela é basicamente juros”, afirmou. “Já conversei com cinco ministros do Supremo e todos concordaram”, acrescentou.

Espera-se que o STF não dê guarida à mais nova investida de Castro. A tese, além de infantil, não esconde a má-fé. O Rio de Janeiro, afinal, sempre foi um dos maiores beneficiários do programa. Foi o primeiro Estado a aderir ao regime, em 2017. Obteve o alongamento de suas dívidas, mas nunca cumpriu as condicionantes à risca, que incluíam contenção de despesas, redução de benefícios fiscais e privatização de estatais, entre outras.

No caso mais escandaloso, o Rio de Janeiro chegou a tomar um empréstimo para pagar salários atrasados e deu como garantia os recursos da venda da privatização da Cedae. Não pagou a dívida e, naturalmente, coube à União quitá-la.

Ainda assim, em 2022, à revelia da orientação dos técnicos do Ministério da Economia, Castro conseguiu aval do governo de Jair Bolsonaro para renegociar seu plano de recuperação fiscal. Já se sabia que as receitas do Estado iriam minguar – e não crescer, como o plano prometia – com a mudança na lei de ICMS sobre combustíveis, mas o governador era aliado do ex-presidente. De forma oportunista, ele só se insurgiu contra a legislação depois de reeleito, sem apontar culpados ou reconhecer o custo de sua própria omissão.

Por mais ridícula que a investida de Castro seja, não é prudente ignorá-la. Embora foque nos juros, seu verdadeiro alvo são as contrapartidas do Regime de Recuperação Fiscal (RRF), que cobram dos Estados uma atuação mínima que os conduza ao reequilíbrio fiscal. O programa, por óbvio, sempre pode ser melhorado, mas aprimorá-lo passa longe das intenções do governador.

O que Castro quer é autorização para gastar sem qualquer compromisso de redução de despesas. São as mesmas contrapartidas que o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, tem sido incapaz de cumprir por resistências políticas, e que têm impedido o Estado de entrar no programa.

Ora, se estar no RRF fosse realmente tão ruim, o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, não teria pedido ao Ministério da Fazenda para continuar nele, a despeito da melhoria de seus indicadores fiscais. Certo é que a União não pode compactuar com essas atitudes, não apenas por uma questão moral, mas, sobretudo, porque é ela, a União, quem arca com o custo da imprudência alheia.

Empregos verdes, um potencial para o Brasil

Correio Braziliense

Desafiante, a mudança esbarra em problemas como falta de treinamento profissional, leis ambientais controversas, mudança de cultura empresarial e até mesmo o risco de perpetuação das injustiças socioeconômicas

Os líderes das nações titubeiam em dar a largada para a transição energética a fim de evitar as fontes fósseis, como petróleo e carvão, emissoras de gases de efeito estufa. Em contrapartida, diferentes segmentos da indústria avançam na produção de matrizes limpas, como energia eólica, solar, entre outras, ajustadas às exigências para preservar a vida no planeta.Desafiante, a mudança esbarra em problemas como falta de treinamento profissional, leis ambientais controversas, mudança de cultura empresarial e até mesmo o risco de perpetuação das injustiças socioeconômicas.

O engajamento das empresas, pautadas em uma economia compatível com o conceito de sustentabilidade ambiental, empregou, em outubro, 2,34 milhões de profissionais com carteira assinada no Brasil — 5,2% do total de contratações ocorridas no país. Os chamados empregos verdes, com oferta de vagas formais, somaram 2,26 milhões em igual período do ano passado, segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged).

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) prevê a abertura de 15 milhões de novos empregos na América Latina até 2030. Pelo menos metade dessas vagas estaria no Brasil. Na avaliação de especialistas, esse número poderá ser maior no país, considerando o potencial do patrimônio natural brasileiro, farto em água e vegetação. A Agência Internacional para as Energias Renováveis (Irena), instituição criada com a finalidade de promover o uso de energias renováveis, estima que 38,2 milhões de vagas surgiram no planeta.

Além do patrimônio natural, o Brasil conta com as recicladoras de materiais reaproveitáveis, desde o papel até o alumínio, entre outros metais, passando pela indústria têxtil, relacionada à economia criativa. Trata-se de segmentos e iniciativas que evitam a poluição ambiental, a exploração do meio ambiente, como extração de metais, com geração de renda aos profissionais e artistas.

Embora haja reconhecimento da importância dessas atividades que mitigam os impactos antrópicos na natureza, o rendimento médio da maioria dos profissionais fica abaixo de um salário mínimo. Há, portanto, possibilidades de valorizar esses trabalhadores, criando meios que elevem o ganho mensal deles pela contribuição que dão à economia sustentável.

Há um enorme leque de soluções compatível com a preservação ambiental e o desenvolvimento social e econômico. No Brasil, recentes decisões do Congresso Nacional favorecendo o desmatamento, a mineração sem controle em áreas de povos originários e tradicionais e de preservação ambiental estabelecem insegurança e sugerem ser falso o compromisso do país com os acordos internacionais em relação à questão ambiental.

Não basta reduzir o desmatamento na Amazônia e destruir o Cerrado. Como é insuficiente avançar na criação de mecanismos que reduzem a emissão de gases de efeito estufa quando a falta de saneamento básico provoca a poluição dos corpos hídricos que compromete a qualidade de vida da população.

 

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