Regulação de jogos on-line deve ser prioridade
O Globo
Normas para as apostas esportivas são
positivas. Câmara precisa agora restabelecer regras para as demais
As agruras de apostadores iludidos por jogos
de azar na internet demonstram que o mercado de apostas on-line
no Brasil precisa urgentemente de regras claras, para que as empresas dispostas
a segui-las se legalizem, enquanto as aventureiras, interessadas apenas em
lucrar se aproveitando da boa-fé dos apostadores, possam ser punidas na forma
da lei.
Um bom exemplo de como o apostador pode ser ludibriado num mercado desregulado é a plataforma Blaze, responsável pelo popular “jogo do aviãozinho”, tema de reportagem do Fantástico no último domingo. Sem sede nem representação no Brasil, ela ganhou mercado ao ser incensada por anúncios protagonizados por celebridades e influenciadores digitais prometendo dinheiro rápido e fácil. Na prática, o jogo, ilegal no país, é uma cilada. Segundo a reportagem, uma investigação da polícia de São Paulo revelou que os prêmios prometidos não são pagos ou são saldados com valores inferiores.
É preciso reconhecer que o Brasil tem
caminhado na direção certa na regulação. O Senado aprovou Projeto de Lei (PL)
oriundo da Câmara regulamentando as apostas esportivas, oferecidas por empresas
conhecidas como bets. O governo diz ter identificado no Brasil ao menos 300
sites de bets, cujo faturamento anual é avaliado em R$ 100 bilhões.
Regulamentá-las é uma necessidade não apenas porque não recolhem impostos. A
própria credibilidade do futebol já foi posta em dúvida quando o Ministério
Público de Goiás descobriu um esquema em que quadrilhas pagavam propinas a
jogadores para faturar com apostas.
O texto aprovado no Senado prevê tributação
de 12% sobre a renda das bets e de 15% sobre o prêmio das pessoas físicas.
Institui também uma outorga inicial de R$ 30 milhões, paga pelas empresas. Numa
estimativa preliminar, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, prevê arrecadar
pelo menos R$ 2 bilhões em 2024. A tendência é esse montante crescer.
Para coibir fraudes, o PL exige das bets
requisitos técnicos de segurança e infraestrutura certificada, além de
integração com organismos internacionais de monitoramento esportivo. Uma emenda
da senadora Tereza Cristina (PP-MS) proíbe a instalação de equipamentos em
estabelecimentos físicos para evitar a proliferação de máquinas caça-níqueis e
cassinos clandestinos.
Na votação, também foi acatada emenda do
senador Carlos Portinho (PL-RJ) retirando do texto autorização para “cassinos
virtuais”. Na prática, isso deixou um vácuo justamente onde florescem negócios
fraudulentos como a Blaze.
Se o PL for aprovado na Câmara na forma como
saiu do Senado, o mercado de apostas esportivas terá regras sensatas, mas jogos
de azar como os oferecidos pela Blaze continuarão num limbo regulatório. De
nada adianta o esforço para regular as bets se a lei não dispuser de mecanismos
capazes de coibir fraudes com outros tipos de aposta on-line. Por isso a Câmara
deveria devolver o texto à forma anterior. Não se trata de legalizar jogos de
azar, mas de criar instrumentos jurídicos adequados para punir os sites fraudulentos
e uma estrutura robusta de fiscalização. Será preciso garantir que empresas
operando na legalidade recolham os impostos e cumpram as regras. E que as
demais sejam punidas e impedidas de operar no Brasil.
Derrota de texto constitucional em referendo
chileno restaura bom senso
O Globo
País deverá agora apostar em reformas
graduais em vez de tentar reescrever uma Constituição do zero
O presidente Gabriel Boric fez
bem ao acabar com a iniciativa de redigir uma nova Constituição para o Chile. Nenhuma das
tentativas deu certo. As duas propostas levadas aos eleitores foram rechaçadas
por maioria ampla. A primeira, em setembro de 2022, refletia os anseios
ideológicos da esquerda e perdeu por uma diferença de 24 pontos percentuais
(62% a 38%). A segunda, de inclinação mais conservadora, foi derrotada por 11
pontos percentuais em referendo no último domingo (55% a 44%). Com o resultado,
continua em vigor a Constituição que data da ditadura de Augusto Pinochet, mas
depois foi várias vezes alterada por meios democráticos, garantindo seu
sucesso. Melhor assim. Será mais sensato e produtivo reformar uma Carta que tem
dado certo do que reescrever tudo do zero.
O Chile é o maior sucesso econômico na
América Latina nas últimas décadas. A renda per capita chilena era pouco menor
que a brasileira em 1989, ano da redemocratização. Hoje é o dobro. A população
abaixo da linha da pobreza caiu de 11% para 0,7%, sem maior desigualdade. A
abertura comercial incentivou as empresas competitivas e criou um mercado
atraente ao investidor. Apesar dos avanços, as ruas chilenas foram tomadas por
protestos em 2019. Muitos se sentiam excluídos e denunciavam a exaustão do
modelo. Acossado, o então presidente Sebastián Piñera fechou acordo com a
oposição para perguntar em plebiscito se os chilenos gostariam de uma nova
Constituição. Em 2020, 79% responderam que sim.
Na escolha dos constituintes, só 43% dos
eleitores votaram. Com o país sob influência dos protestos, a maioria dos
eleitos pertencia à esquerda, muitos sem experiência política. A Constituinte
chegou a cogitar ideias desvairadas, como nacionalizar os recursos naturais ou
acabar com a independência do Banco Central. No final, o texto saiu repleto de
exageros, nos campos econômico e político (expropriações por valor abaixo do
mercado, cerceamento aos Poderes, extensão do direito a greve além do razoável
e até reconhecimento de sistemas jurídicos indígenas).
A proposta foi derrotada em referendo em
2022, e os chilenos voltaram a escolher constituintes. Desta vez, a direita
levou vantagem, e a nova Carta saiu mais conservadora. O texto previa corte de
impostos sobre propriedades, diminuição da influência do Estado nos currículos
das escolas, expulsão de migrantes sem documentação e a inclusão da expressão
“direito à vida de quem está por nascer”, uma brecha para contestação judicial
ao aborto legal. Foi derrotado no último domingo.
Prevaleceu o bom senso: o Chile deverá
persistir em reformas graduais para corrigir os pontos problemáticos de sua
Constituição, como legislação previdenciária e direitos sociais. Durante 25
anos, o país deu exemplo de equilíbrio ao mundo com alternância de poder em
torno de uma agenda consensual. Agora, a coalizão de esquerda liderada por
Boric é minoritária, e partidos da oposição têm bloqueado suas iniciativas.
Para reformar a Constituição, será primeiro preciso resgatar a capacidade
chilena de obter consensos.
Produtividade cresce no ano, mas é preciso
mais
Valor Econômico
Um dos motivos da melhora da produtividade,
segundo os analistas da FGV, é o aumento do emprego formal neste ano
A aprovação da reforma tributária encheu de
otimismo os que contam com a modernização da economia para melhorar a
produtividade do país. Historicamente muito baixa, a produtividade mostrou
recuperação surpreendente neste ano graças a uma combinação de fatores. Mas
precisa muito mais para manter os ganhos em 2024 e avançar.
O Observatório da Produtividade Regis
Bonelli, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV
Ibre), calcula que, de 1981 a 2022, o crescimento médio da produtividade por
hora trabalhada, uma das métricas mais utilizadas, foi de mero 0,5% ao ano.
Segundo o ranking de produtividade da World Population Review de 2022,
mencionado em artigo no Valor (30/11), o Brasil estava em 57º lugar
entre 62 países, atrás de Argentina, México, Uruguai, Chile, Colômbia, Peru e
Equador. Países desenvolvidos exibiam índices muito superiores, como a Noruega
(sete vezes maior), os EUA (6,2 vezes) e a Alemanha (5,3 vezes).
Desde a década passada, os índices de
produtividade do trabalho oscilam como uma gangorra no Brasil. Houve queda na
recessão de 2015 e 2016, uma recuperação tímida em 2017 e 2018, e novamente
queda em 2019. Quando sobreveio a pandemia, ela surpreendentemente saltou, em
consequência do chamado efeito composição. Em consequência das medidas de
restrição à mobilidade, houve a saída do mercado de trabalhadores menos
produtivos, como os informais, de atividade em serviços presenciais como
alimentação e hospedagem. O mesmo fenômeno aconteceu em outros países.
Nos dois anos seguintes, o processo se
inverteu. Os trabalhadores informais voltaram ao mercado e, aos poucos, houve a
retomada dos serviços presenciais. Com isso, a produtividade do trabalho
retomou a tendência de queda anterior, lembraram os analistas do Observatório
Fernando Veloso e Fernando de Holanda Barbosa Filho, no Seminário Produtividade
e Mercado de Trabalho, realizado na semana passada pelo FGV Ibre e pelo Valor e
transmitido em live.
A novidade mesmo aconteceu neste ano, quando
a produtividade por horas efetivamente trabalhadas cresceu em todos os
trimestres na comparação com o mesmo período de 2022. No terceiro trimestre, o
crescimento foi de 2,3% em relação ao mesmo período do ano passado. Na mesma
base de comparação com iguais períodos de 2022, a produtividade cresceu 1,4% no
primeiro trimestre e 2,7% no segundo. Agora, o índice de produtividade está
2,6% acima do nível pré-pandemia, salientou Veloso, coordenador do
Observatório. No caso da produtividade total dos fatores (PTF), que leva em
conta também o capital, a alta foi de 0,5% na mesma comparação do terceiro
trimestre deste ano e o mesmo de 2022.
Um dos motivos da melhora da produtividade,
segundo os analistas da FGV, é o aumento do emprego formal neste ano. Mais da
metade das pessoas que entraram no mercado de trabalho conseguiu emprego
formal. São geralmente profissionais com maior escolaridade e produtividade.
Segundo dados da Pnad Contínua, calculada pelo IBGE, o número de empregados com
carteira de trabalho no setor privado chegou a 37,6 milhões de trabalhadores, o
maior contingente desde junho de 2014. A taxa de desemprego no trimestre móvel
terminado em outubro ficou em 7,6%, abaixo dos 8,3% do mesmo período de 2022.
Para os especialistas do FGV Ibre, a criação expressiva de empregos formais é
sinal do sucesso da reforma trabalhista.
Outro fator que influiu no aumento da
produtividade foi o desempenho do setor agrícola, que também impulsionou o
Produto Interno Bruto (PIB) neste ano. A produtividade por horas efetivamente
trabalhadas na agropecuária saltou 14,6% no terceiro trimestre em relação a
igual período de 2022. Enquanto isso, a produtividade do trabalho da indústria
aumentou 3,3%, e a dos serviços, 0,8% na mesma base de comparação. Foi o
segundo trimestre seguido de expansão da produtividade nos três setores. Em
detalhes, a indústria extrativa mineral, a intermediação financeira e os
serviços industriais de utilidade pública têm apresentado forte crescimento no
valor adicionado e contribuído para a elevação da produtividade.
Mas é o desempenho do agronegócio (incluído
insumos, máquinas e indústrias de alimentos) que é surpreendente, como foi em
2017, embora insuficiente para causar impacto significativo dado que representa
menos de 25% do PIB. Para mostrar alguma diferença o impulso deveria vir dos
serviços, que significam 70%, segundo os analistas do FGV Ibre.
Para Veloso, as reformas feitas ao longo dos últimos anos podem igualmente estar favorecendo a produtividade. Entre elas, mencionou a PEC da Transição, as reformas trabalhista e da Previdência, os marcos das garantias e o do saneamento e, agora, a reforma tributária. Mas esta entra agora na fase decisiva de regulamentação e definição de produtos e serviços beneficiados por tratamento especial, que vão determinar o resultado final. Como se sabe, o diabo está nos detalhes.
Ajuda de fora
Folha de S. Paulo
Corte de juros pelo Fed favorece Brasil, mas
governo Lula precisa conter gastos
Graças ao progresso surpreendente no controle
da inflação, o Federal Reserve, banco central americano, indicou que pretende
promover um corte de sua taxa básica de juros maior do que
o considerado anteriormente.
A nova projeção aponta três reduções de 0,25
ponto percentual em 2024, o que levaria o custo do dinheiro do intervalo de
5,25% a 5,5% ao ano para um de 4,5% a 4,75%.
O cálculo de variação de preços mais
acompanhado pelo Fed, o núcleo de inflação do consumo das famílias, mostra
melhora notável, de 4,9% em 2022 para esperados 3,2% neste ano. Ademais, se
confirmadas as projeções dos membros do comitê de política monetária, o índice
será de 2,4% em 2024, pouco acima da meta de 2%.
Daí o otimismo cauteloso de Jerome Powell,
presidente do Fed, em sua entrevista coletiva mais recente. Há riscos e o
processo pode não se confirmar, mas o que se obteve até aqui era tido como
tarefa quase impossível há alguns meses.
Já se observa impacto nos mercados
financeiros, com retomada forte das bolsas internacionais nas últimas semanas,
desvalorização do dólar e melhora nas condições financeiras. Fica reduzida
agora a probabilidade de uma recessão, que era temida devido ao aperto
monetário imposto pela instituição nos últimos dois anos.
Para o restante do mundo, que depende dos
ciclos monetários do maior centro financeiro global, há considerável alívio que
facilita o trabalho das autoridades.
No Brasil, portanto, mantém-se a perspectiva
positiva de que o Banco Central poderá continuar a reduzir a taxa Selic nos
próximos meses. Analistas avaliam que o índice voltará a um dígito em breve,
atingindo 9% anuais.
Também há tendência de queda da inflação
aqui, com alívio nas cotações de matérias-primas e, mais importante para a
política monetária, das pressões mais duradouras sobre os preços.
As projeções mais consensuais de mercado
apontam para um IPCA de 3,93% em 2024 e de 3,5% em 2025, níveis ainda acima da
meta de 3%, contudo menos desconfortáveis do que há poucos meses.
O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT)
ganha assim maior margem de manobra, mas persistem os problemas de gestão,
sobretudo em relação ao Orçamento público. O ímpeto gastador do Executivo é um
obstáculo que pode trazer descontrole econômico adiante.
Por isso é necessário que, mesmo diante da
conjuntura externa mais favorável, o
governo implemente um controle robusto das despesas. Contar apenas
com a alta da já exorbitante carga tributária, além de insuficiente,
significará manter o país dependente das oscilações do humor internacional.
Aprendizado chileno
Folha de S. Paulo
País encerra processo de troca da
Constituição, que se mostrou contraproducente
Terminou de maneira anticlimática, mas
instrutiva, a novela da troca da Constituição do Chile.
No domingo (17), o eleitorado chileno rejeitou, por
55,8% a 44,2% dos votos, a proposta de nova Carta elaborada por
um colegiado eleito de maioria direitista, incluindo expressiva parcela de
radicais.
Em setembro do ano passado, outro texto
constitucional, daquela vez elaborado pela esquerda, fora recusado pela
população por uma margem ainda mais ampla, de 61,9% a 38,1%.
O frenesi legiferante, como se sabe, teve
início após a onda de protestos populares, não poucos violentos, que sacudiu o
país em 2019. A resposta das forças políticas às manifestações difusas de
insatisfação foi a substituição da Carta redigida em 1980, sob a sangrenta
ditadura de Augusto Pinochet.
A gangorra ideológica dos últimos anos não
chegou a uma solução satisfatória para os anseios dos eleitores. Primeiro, uma
assembleia esquerdista, com apoio do jovem presidente Gabriel Boric, 37,
produziu um texto que virava do avesso quase todo o ordenamento jurídico do
país.
Contemplava-se ali o pleito, muito presente
nos atos de 2019, de ampliação da previdência pública. A isso se somavam ensino
superior gratuito, liberação do aborto, reformulação do Senado e da estrutura
de governo e previsão de 50% de mulheres em todos os órgãos de Estado, entre
outras mudanças.
Em comparação, a proposta rejeitada no
domingo era bem menos ambiciosa, ao estilo conservador de seus formuladores. De
pior, trazia empecilhos
à interrupção da gravidez e um tom hostil a migrantes irregulares.
Com a segunda resposta negativa dos chilenos,
encerra-se o processo constituinte —e o país, mesmo que por vias tortuosas, não
se deixou seduzir pelo fascínio que a redação de novas Cartas costuma despertar
no continente.
A despeito de ter sido gestado originalmente
por uma ditadura, a Constituição chilena não impediu uma estabilidade
democrática que já dura mais de três décadas. Nesse período, o Chile foi um
exemplo de sucesso econômico na vizinhança, com renda hoje similar à de países
desenvolvidos.
Se há demanda da sociedade por mais ação do Estado e proteção social, nada impede que o texto seja alterado a partir de entendimentos políticos. A ideia de reviravolta completa e redentora é, não raro, ilusória e contraproducente.
Constituinte não é guerra cultural
O Estado de S. Paulo
O processo constitucional chileno, malgrado
ter fracassado depois de cinco eleições, deixou lições valiosas: Constituições
devem refletir um pacto possível, e não utopias ideológicas
A refundação constitucional chilena
fracassou. Em quatro anos, os chilenos promoveram cinco eleições. Primeiro, em
favor de uma nova Constituição. Por duas vezes criaram uma Assembleia
Constituinte e por duas vezes rechaçaram suas propostas. Perdeu a direita, que
recebera um mandato na última Constituinte. Perdeu a esquerda, que deflagrou o
processo em 2019, teve sua chance na primeira Assembleia e agora, ironicamente,
votou pela manutenção da Constituição legada pelo ditador Augusto Pinochet.
Perdeu a classe política, que saiu desmoralizada. Perdeu o povo: desde 2019,
não só os problemas que motivaram o movimento constitucional – como
desigualdades na previdência ou saúde – não foram solucionados, como outros –
como desaceleração econômica, crise migratória e violência – se somaram.
Uma terceira rodada está descartada. Segundo
uma pesquisa da consultoria Cadem, o sentimento predominante em relação à
recriação constitucional é “uma perda de tempo”. Será? Tudo depende de saber se
as lições – importantes não só para o Chile, mas para as democracias – serão
aprendidas.
Uma dessas lições diz respeito à forma e ao
procedimento. Segundo os cientistas políticos americanos Z. Elkins e A. Hudson,
desde 1789 as democracias aprovaram 94% dos 179 referendos constitucionais. Mas
nos sistemas políticos contemporâneos é preciso perguntar até que ponto
plebiscitos e referendos são adequados para decidir questões complexas. No caso
do Chile, a coisa se complicou porque, ao invés de uma proposta de Constituição
clara e sucinta, fixando direitos fundamentais e regras gerais para o funcionamento
do Estado, esquerda e direita tentaram constitucionalizar regras que seriam
mais bem encaminhadas nas disputas políticas ordinárias.
Isso leva à segunda lição, sobre o conteúdo.
A primeira Constituinte foi dominada por políticos radicais e independentes sem
disciplina partidária. O resultado foi uma lista de desejos progressistas
utópica e prolixa. Na segunda Assembleia, correções foram feitas: concordou-se
preliminarmente com 12 princípios a serem mantidos por qualquer carta,
reduziu-se a margem para independentes e foi concertada uma comissão de
juristas de todo o espectro político para redigir um texto preliminar. Mas ele
foi desfigurado pela nova direita, que embutiu regras pró-mercado controversas
e princípios moralistas.
Guerras culturais, revanchismos partidários e
sua arma, a desinformação, intoxicaram o processo. Além do ônus do atraso nas
reformas e políticas públicas, há o risco de que o descrédito no processo
democrático convide a aventuras autoritárias.
E agora? Em primeiro lugar, o anseio por
mudanças constitucionais não desapareceu. Mas elas precisarão ser realizadas
gradualmente. Antes, o Chile precisa enfrentar insatisfações que independem da
Constituição, como segurança, educação e mesmo a crise do sistema privado de
saúde.
Para tanto, governo e oposição precisam
flexibilizar suas atitudes. Os chilenos disseram “não” aos tribalismos de
esquerda e de direita. O Chile possui um capital importante: a seriedade de
suas elites políticas e a capacidade de gerar consensos. Esse capital, o
segredo da Concertación, não era ótimo, mas era bom, e, após ser dilapidado,
precisa ser resgatado e aprimorado com realismo.
Como disse o sociólogo Eugenio Tironi: “Nós
chilenos saímos desta experiência constitucional como se sai muitas vezes da
terapia: aceitando que o processo foi mais amplo do que o previsto, com a
sensação de não ter descoberto a pedra filosofal, mas mais conformados com a
vida que nos cabe viver”.
Há um ponto positivo no processo. A violência
política, que há 50 anos – primeiro com autoritarismo esquerdista, depois com o
direitista – deixou feridas profundas, parecia em 2019 estar sendo de novo
validada. Mas, ao fim, tanto a euforia quanto o fracasso constitucional foram
vivenciados pelos militantes de ambos os lados, se não com o respeito e a
maturidade que o momento exigia, em paz. A paz não é condição suficiente para o
consenso, mas é indispensável, e mantê-la é a primeira tarefa dos chilenos para
que possam viver a vida que lhes cabe viver.
Os ‘humanos direitos’ e os direitos humanos
O Estado de S. Paulo
Aqueles que reivindicam a aplicação desses direitos às pessoas que aguardam julgamento pelo 8 de Janeiro devem estar prontos para reconhecê-los também em relação às demais
Recentes manifestações da militância
bolsonarista, nas ruas e no Parlamento, têm insistido na denúncia de supostas
violações a direitos das pessoas presas pelos atos golpistas do 8 de Janeiro.
No fim de novembro, o deputado Filipe Barros protocolou requerimento para a
criação de uma comissão externa na Câmara, com o objetivo de “acompanhar in
loco a situação carcerária, as prerrogativas dos advogados e os julgamentos dos
presos em decorrência do 8 de janeiro”. Nesse requerimento, o parlamentar cita
como justificativa para instauração da comissão a morte de Cleriston Pereira da
Cunha, que estava preso em decorrência daqueles atos.
A crítica bolsonarista, porém, não se limita
às condições prisionais, mirando também o procedimento instaurado no STF para o
julgamento dos réus. Protesta-se, por exemplo, contra as penas alegadamente
excessivas impostas às pessoas julgadas, assim como a realização de julgamentos
pelo plenário virtual da Corte, o que contrariaria as garantias constitucionais
do devido processo legal e da ampla defesa.
A centralidade desses temas para a militância
é confirmada no vídeo de convocação para os recentes atos de rua. Além da
crítica à indicação de Flávio Dino ao STF, tais atos tinham como mote, nas
palavras de um parlamentar, o “respeito ao direito do cidadão de se defender”.
Como se vê, em suas manifestações hodiernas, o bolsonarismo tem ido além da
defesa de sua peculiar concepção da liberdade de expressão para encampar outros
direitos humanos.
A incorporação dessa temática à pauta de
qualquer movimento político é bem-vinda. Mas, no caso dos partidários do
ex-presidente Jair Bolsonaro, é preciso atentar aos termos e à extensão dessa
incorporação.
Nesse sentido, é curioso observar que os
reclamos humanitários dos bolsonaristas coincidem com o aniversário de 75 anos
da Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembleia-Geral
das Nações Unidas em dezembro de 1948.
Essa Declaração elevou os direitos humanos a
um patamar inédito. Com ela, o reconhecimento desses direitos deixou de ser uma
questão local, dependente da iniciativa de cada Estado, e passou a ser
universal, de modo que seus destinatários não são mais apenas os cidadãos desse
ou daquele Estado, mas todos os seres humanos.
Além dessa universalização, a Declaração de
1948 impulsionou a especificação dos direitos humanos. Com isso, a titularidade
desses direitos deixou de se restringir ao indivíduo singular para alcançar,
por exemplo, minorias étnicas e religiosas. Da mesma forma, aquele indivíduo
deixou de ser visto como um ente genérico e passou a ser considerado em suas
específicas maneiras de ser em sociedade – como mulher, idoso, etc. Vêm daí
documentos como a convenção para a prevenção e repressão do crime de genocídio
(1948) e a convenção sobre os direitos políticos da mulher (1952), entre
outros.
Esse processo de universalização e
especificação dos direitos humanos, inaugurado com a Declaração de 1948, põe à
prova os apelos bolsonaristas pelo reconhecimento desses direitos. Afinal, o
bolsonarismo nunca primou por esse reconhecimento. Pelo contrário: Bolsonaro já
tratou temas relacionados aos direitos humanos como “direitos de bandidos” e
“esterco da vagabundagem”, desvalorizando ou ironizando situações e
reivindicações de grupos desfavorecidos ou em minoria na sociedade.
Não espanta que o ex-mandatário ignore que um
dos fundamentos da nossa República é a dignidade da pessoa humana, o que impõe
ao Estado, suas instituições e representantes valorizar e certificar o
cumprimento dos direitos humanos. Obviamente, isso também se aplica às pessoas
que aguardam julgamento pelos atos golpistas do 8 de Janeiro. No entanto,
aqueles que reivindicam a aplicação desses direitos a tais pessoas devem estar
prontos para reconhecê-los também em relação às demais. Os direitos humanos são
patrimônio de todos os seres humanos, não só dos que arrogantemente se
consideram “humanos direitos” – até porque, quantos “humanos direitos” havia na
invasão e destruição da Praça dos Três Poderes?
A criatividade de Cláudio Castro
O Estado de S. Paulo
O que o governador do Rio quer é autorização para gastar sem qualquer compromisso de redução de despesas
O governador do Rio de Janeiro, Cláudio
Castro, acaba de criar uma tese inovadora para resolver a infindável crise
fiscal de seu Estado. Não quer mais pagar os juros correspondentes aos
empréstimos que o Estado tomou nos últimos anos, todos avalizados pela União. O
argumento? A União não é um banco e, por isso, não pode cobrar juros, apenas
mora. “Um ente público não tem que ganhar dinheiro em cima do outro”, disse.
Há que reconhecer: não falta audácia ao
governador, que promete apresentar essa proposta indecorosa ao Supremo Tribunal
Federal (STF). “Isso praticamente zera nossa dívida, já que ela é basicamente
juros”, afirmou. “Já conversei com cinco ministros do Supremo e todos
concordaram”, acrescentou.
Espera-se que o STF não dê guarida à mais
nova investida de Castro. A tese, além de infantil, não esconde a má-fé. O Rio
de Janeiro, afinal, sempre foi um dos maiores beneficiários do programa. Foi o
primeiro Estado a aderir ao regime, em 2017. Obteve o alongamento de suas
dívidas, mas nunca cumpriu as condicionantes à risca, que incluíam contenção de
despesas, redução de benefícios fiscais e privatização de estatais, entre
outras.
No caso mais escandaloso, o Rio de Janeiro
chegou a tomar um empréstimo para pagar salários atrasados e deu como garantia
os recursos da venda da privatização da Cedae. Não pagou a dívida e,
naturalmente, coube à União quitá-la.
Ainda assim, em 2022, à revelia da orientação
dos técnicos do Ministério da Economia, Castro conseguiu aval do governo de
Jair Bolsonaro para renegociar seu plano de recuperação fiscal. Já se sabia que
as receitas do Estado iriam minguar – e não crescer, como o plano prometia –
com a mudança na lei de ICMS sobre combustíveis, mas o governador era aliado do
ex-presidente. De forma oportunista, ele só se insurgiu contra a legislação
depois de reeleito, sem apontar culpados ou reconhecer o custo de sua própria
omissão.
Por mais ridícula que a investida de Castro
seja, não é prudente ignorá-la. Embora foque nos juros, seu verdadeiro alvo são
as contrapartidas do Regime de Recuperação Fiscal (RRF), que cobram dos Estados
uma atuação mínima que os conduza ao reequilíbrio fiscal. O programa, por
óbvio, sempre pode ser melhorado, mas aprimorá-lo passa longe das intenções do
governador.
O que Castro quer é autorização para gastar
sem qualquer compromisso de redução de despesas. São as mesmas contrapartidas
que o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, tem sido incapaz de cumprir por
resistências políticas, e que têm impedido o Estado de entrar no programa.
Ora, se estar no RRF fosse realmente tão ruim, o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, não teria pedido ao Ministério da Fazenda para continuar nele, a despeito da melhoria de seus indicadores fiscais. Certo é que a União não pode compactuar com essas atitudes, não apenas por uma questão moral, mas, sobretudo, porque é ela, a União, quem arca com o custo da imprudência alheia.
Empregos verdes, um potencial para o Brasil
Correio Braziliense
Desafiante, a mudança esbarra em problemas
como falta de treinamento profissional, leis ambientais controversas, mudança
de cultura empresarial e até mesmo o risco de perpetuação das injustiças
socioeconômicas
Os líderes das nações titubeiam em dar a
largada para a transição energética a fim de evitar as fontes fósseis, como
petróleo e carvão, emissoras de gases de efeito estufa. Em contrapartida,
diferentes segmentos da indústria avançam na produção de matrizes limpas, como
energia eólica, solar, entre outras, ajustadas às exigências para preservar a
vida no planeta.Desafiante, a mudança esbarra em problemas como falta de
treinamento profissional, leis ambientais controversas, mudança de cultura
empresarial e até mesmo o risco de perpetuação das injustiças socioeconômicas.
O engajamento das empresas, pautadas em uma
economia compatível com o conceito de sustentabilidade ambiental, empregou, em
outubro, 2,34 milhões de profissionais com carteira assinada no Brasil — 5,2%
do total de contratações ocorridas no país. Os chamados empregos verdes, com
oferta de vagas formais, somaram 2,26 milhões em igual período do ano passado,
segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged).
A Organização Internacional do Trabalho (OIT)
prevê a abertura de 15 milhões de novos empregos na América Latina até 2030.
Pelo menos metade dessas vagas estaria no Brasil. Na avaliação de
especialistas, esse número poderá ser maior no país, considerando o potencial
do patrimônio natural brasileiro, farto em água e vegetação. A Agência
Internacional para as Energias Renováveis (Irena), instituição criada com a
finalidade de promover o uso de energias renováveis, estima que 38,2 milhões de
vagas surgiram no planeta.
Além do patrimônio natural, o Brasil conta
com as recicladoras de materiais reaproveitáveis, desde o papel até o alumínio,
entre outros metais, passando pela indústria têxtil, relacionada à economia
criativa. Trata-se de segmentos e iniciativas que evitam a poluição ambiental,
a exploração do meio ambiente, como extração de metais, com geração de renda
aos profissionais e artistas.
Embora haja reconhecimento da importância
dessas atividades que mitigam os impactos antrópicos na natureza, o rendimento
médio da maioria dos profissionais fica abaixo de um salário mínimo. Há,
portanto, possibilidades de valorizar esses trabalhadores, criando meios que
elevem o ganho mensal deles pela contribuição que dão à economia sustentável.
Há um enorme leque de soluções compatível com
a preservação ambiental e o desenvolvimento social e econômico. No Brasil,
recentes decisões do Congresso Nacional favorecendo o desmatamento, a mineração
sem controle em áreas de povos originários e tradicionais e de preservação
ambiental estabelecem insegurança e sugerem ser falso o compromisso do país com
os acordos internacionais em relação à questão ambiental.
Não basta reduzir o desmatamento na Amazônia e destruir o Cerrado. Como é insuficiente avançar na criação de mecanismos que reduzem a emissão de gases de efeito estufa quando a falta de saneamento básico provoca a poluição dos corpos hídricos que compromete a qualidade de vida da população.
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