domingo, 10 de março de 2024

Paulo Fábio Dantas Neto* - Educação e atitude política

Falar de atitude política é falar de uma disposição permanente que condiciona a relação que um sujeito (individual ou grupal) estabelece com um fenômeno político. Duas atitudes polares: uma, a de sempre ver, num fenômeno conflitivo, uma oportunidade para exacerbá-lo a ponto de deixar (ou de provocar) vir à tona uma contradição “essencial” (que, a depender do caso, pode ser econômica, social, cultural, religiosa, racial, de gênero, de valores, etc...), a qual esse sujeito político julga insanável pelos caminhos da política. Atitude oposta é a de sujeitos que, perante um conflito de qualquer das naturezas citadas acima, antepõem-se a responsabilidade de evitá-lo, apelando à integridade da tradição ou a de bem compreendê-lo, reconhecendo a situação conflitiva, mas buscando carreá-la para um certo nível de entendimento e negociação que faça o novo nascer com menos dor. Partos “naturais”, em lugar de “cesarianas”, ou fórceps. Uma aposta em possibilidades da política, não na sua impotência. 

No interior de cada uma dessas atitudes políticas polares há gradações várias, assim como há variadas inclinações ideológicas, às vezes díspares entre si. É comum flagrar-se adversários aparentemente difíceis de conviver agindo de modo a jogarem água para um mesmo moinho, seja o da confrontação ou o da conciliação. Reacionários de direita e revolucionários de esquerda podem plantar a mesma semente agonística em seus solos ideológicos distantes, assim como conservadores e reformistas de centro ou de esquerda podem convergir na disposição comum de recusar os extremos. Os dois últimos preocupam-se – para usar jargão conhecido – com a criança que está na bacia, enquanto os primeiros prestam atenção, antes e ao fim de tudo, na água que julgam suja ou benta, conforme suas convicções. 

É dessa natureza a distinção que tentei fazer, em artigo anterior nesta coluna (Prudência, voluntarismo e a “questão” militar, de 18.02.2024), para comentar o duelo que prudência e vontade travam para orientar o agir de sujeitos políticos. Hoje o mesmo comentário de fundo será aplicado ao tema da educação, que prudentes de boa-fé tratam com atenção e zelo e voluntaristas idem veem como última tábua de salvação para um país-criança.

O ministro da Educação, Camilo Santana, comprometeu-se, durante reunião com a direção da Andifes (Associação Nacional de Dirigentes de Instituições de Ensino Superior), intermediada pela FPME (Frente Parlamentar Mista da Educação) e realizada no dia 07 de março, com uma complementação de R$ 250 milhões ao orçamento das universidades federais, neste ano. A medida foi posta como um primeiro passo, pequeno - mas cuja justificativa, financeira e política, não se deve desprezar -   em direção a uma recomposição de perdas orçamentárias acumuladas, cujo montante a Andifes estima ser dez vezes maior. Certamente segue irresolvida uma extensa e penosa pauta voltada à obtenção, pelas instituições federais do ensino superior, de condições razoáveis de funcionamento e de cumprimento da missão que as autodefine, de promover ensino, pesquisa e extensão de qualidade. 

O resultado da reunião do dia 7 tem também significado político, tanto pelo método de sua construção, como pelo contexto em que se deu. A intermediação de atores do Legislativo condiz com a conduta positiva da Andifes, que empreende gestões por soluções sem as restringir ao Executivo. Essa última é a tradição de relações corporativas herdadas da chamada “Era Vargas”, quando se reconhecia no Executivo poder quase monopólico de decisão política nesta e em muitas outras áreas da administração pública. Com a atuação nas duas frentes, a Andifes sinaliza uma leitura correta da nova realidade institucional do país. Justifica-se uma moderada expectativa de que esse padrão de conduta possa ser adotado ao menos por uma parte das organizações sindicais tensamente envolvidas na discussão do tema, pelas conexões que ele tem com questões salariais e de carreira de docentes e técnicos das IFES.

Nesse ponto ressalta a possibilidade de influência do compromisso assumido pelo MEC na dissuasão, ou ao menos adiamento, de um movimento grevista que vem sendo preparado tanto por entidades docentes como de servidores técnico-administrativos, tendo esses últimos avançado na aprovação de um indicativo de greve a partir da próxima segunda-feira, 11 de março. Essa preparação do sindicalismo das IFES para um embate com o governo articula-se, em vários pontos e momentos, com as das entidades sindicais dos servidores públicos em geral, mas tem, como é da tradição, dinâmica própria. O compromisso do MEC com a Andifes na direção da recomposição orçamentaria começa a dar encaminhamento a um dos pontos que servem de eixo à articulação sindical em curso. Mas além desse e das pautas salariais e de planos de carreira, há uma evidente politização da pauta sindical para abarcar também a reforma do Ensino Médio, cuja votação no Congresso está prevista para os próximos dias.

Isso leva a que uma análise responsável sobre uma eventual greve deva considerar ângulos tão variados como as próprias pautas. Escolho três: implicações pedagógicas e de sociabilidade de uma greve sobre o ar que se respira atualmente em qualquer campus no Brasil; limites de êxito de uma campanha salarial de docentes e técnicos de universidades e institutos de ensino superior nas atuais condições orçamentária e fiscal do governo federal; por fim, prioridades no setor educacional neste momento de retomada de políticas públicas em que a ação do MEC vem sendo alvo de pressões de várias naturezas. 

O que se pode chamar de condições ambientais adversas para o trabalho acadêmico de qualidade em qualquer campus federal é de grande relevância nesse momento em que se está longe da cura de sequelas da pandemia e retrocessos que causou, assim como do esvaziamento, deterioração e descontinuidade de políticas públicas e da desestruturação institucional, ocorridos de 2019 a 2022. Uma greve num ambiente assim tende a ter duplo efeito tóxico. Primeiro o da paralização de atividades que sequer chegaram a ser normalizadas plenamente. Isso é nefasto em si, implicando em retomar, no pós-greve, o processo de reconstrução em ponto aquém desse a que se chegou até aqui.  Em segundo lugar o efeito de acirramento subjetivo de ânimos de embate num espaço que já vem sendo tragado, fortemente, por importação de lógicas de intolerância e de polarização extrema, emanadas de redes sociais, ao tempo em que a Universidade tem se tornado, ela mesma, na contramão de sua vocação e razão de ser, usina de fabricação ideológica de premissas e condutas alimentadoras desses fenômenos. O oxigênio de que as universidades precisam não virá da ética da “luta”, mas da livre circulação de ideias, da crítica e, de modo muito especial, da autocrítica. Inversamente, uma greve seria/será um fator a cristalizar e potencializar a rarefação do ar que ali se respira.

Além dessa implicação interna, tal movimento padece de ineficácia externa. A sociedade brasileira enxerga com cada vez mais reservas a extensão do pleno direito de greve a servidores públicos. E não se trata de coisa recente. A dificuldade de obter apoio social a paralisações de serviços públicos já se mostrava em longas greves havidas nas universidades na última década do século passado e nas duas primeiras do atual. A insistência do sindicalismo nesse tipo de recurso é sintoma e causa de seu relativo anacronismo. No campo da educação, a ausência de rejeição social ativa não deve ser confundida com apoio tácito.  É que, para o bem e para o mal, não há, nesse campo, o sentimento de urgência que há na saúde e segurança pública. Mas a sociedade é cada vez mais cética quanto à legitimidade intrínseca de greves em todos esses setores. O metro da avaliação pública são os calos que lhe doem mais. 

Chego ao segundo ângulo, o do poder de persuasão (mais do que de pressão) que pode advir de uma exequibilidade que torne suficientemente realista uma efetiva pauta salarial. Logicamente, durante um processo de negociação, ela terá que ser mais modesta e precisa do que a reivindicação de recompor as perdas. Se essa recomposição, vista de per si e isolada do contexto é, em tese, defensável, pela defasagem salarial realmente existente, deixa de sê-lo se considerada na perspectiva do lugar negativo que os gastos com a manutenção do serviço público ocupam na equação socialmente aceita do necessário equilíbrio fiscal. Nunca é demais alertar que o governo assimilou politicamente a premissa da contenção. Essa aceitação é evidente na manutenção da meta do déficit zero, por mais que Lula, vez por outra, cuide de pô-la em dúvida para não perder sintonia com faixas do eleitorado que lhe são fiéis. O autocontrole fiscal é um dos parâmetros principais da política da área econômica, liderada pelo ministro Fernando Haddad. Um dar-de-ombros da representação sindical em relação a essa realidade objetiva tende a lhe sair politicamente caro, por haver potencial capacidade do governo de justificar, caso queira, o não atendimento da reivindicação com argumentos assimiláveis pela opinião pública. 

Claro que sempre se poderá alegar, também com boas chances de convencimento externo, que as categorias que trabalham nas IFES – a docente e mais ainda a dos técnicos – estão muito distantes dos grupos que podem ser apontados como altamente privilegiados, a exemplo dos servidores do Judiciário e da burocracia do Banco Central. O próprio governo atual tem consciência disso e é sensato supor sua simpatia e boa vontade, se se considera os contingentes tradicionais do tipo de base social que o apoia. Porém, enveredar por tais comparações seria erro. Se a coisa adquirir feição de luta entre corporações do Estado pelo escasso fundo público, as universitárias dificilmente jogarão a série A. Melhor é o jogo aberto, nos dois poderes, rente à política econômica, buscando, através da persuasão e da exploração de afinidades de discurso público, brechas que não a comprometam no todo. Poder de pressão, na base da queda de braço, é ilusão. Ameaçar com ele, bravata.  Até porque não há sinais de que o ministro Camilo Santana, apesar de petista, tenha caído nas graças do palácio. Muito ao contrário é o que parece. 

Chego ao terceiro ângulo. Foi de Lula, ainda em 2022, a afirmação de que a educação básica teria prioridade em seu terceiro mandato. Considerava que nos anteriores já promovera uma revolução na educação superior e que o novo foco se relacionava aos estragos da pandemia sobre a vida escolar de crianças e adolescentes. Por isso foi considerada bastante razoável a reserva da pasta da educação ao PT cearense, que ampliara e dirigira, a nível estadual, uma exitosa política educacional originada nas gestões municipais de Sobral, o berço político dos Ferreira Gomes.  Os números e os relatos qualitativos daquele sucesso são impressionantes e justificaram plenamente essa escolha política para uma pasta de inegável peso social, uma das desejadas por Simone Tebet, a mais notória e relevante aliada de Lula naquele momento. Todos os indícios são de que um movimento grevista nas universidades e institutos federais teria que enfrentar uma parede maciça cuja argamassa é uma mistura de argumentos da política fiscal com os de uma consistente política educacional progressista, de inegável relevância social.

Nesse contexto, o saber prático da prudência política teria, a princípio, boas chances de persuadir ao menos alguns dirigentes mais moderados dos movimentos das IFES. Mas outros aspectos da complexa esgrima política palaciana que atualmente se processa no Brasil talvez possam estar animando o proverbial voluntarismo de boa parte de tais lideranças sindicais.  Pode acontecer um enésimo caso de afinidades eletivas entre diferentes voluntarismos, o do petismo de aparelho dissimulando seu governismo e o dos coletivos ativistas onde a esquerda mais radical nada melhor, de braços dados com movimentos identitários. Com uma mão lavando a outra podemos ter greves institucionalmente amparadas no campus, gastando nessa coalizão a água que pudesse vir a apagar um incêndio ameaçador da política educacional, da equipe do ministério ou da estabilidade do próprio ministro.  

Como antecedente, temos que o PT não só reivindicou legitimamente a pasta. Pretendeu que lhe fosse dada partidariamente, de porteira fechada e não para ampliar para o país uma política pública testada. A tentativa de instrumentalização foi abortada não só porque o trabalho do grupo da transição para a educação apresentou resultados consistentes que respaldaram a entrega do comando do ministério a pessoas artífices da experiência cearense. Também porque, diante do veto petista, aceito por Lula, ao nome de Isolda Cela – plena encarnação de tal política, mas não detentora de trajetória partidária – teria entrado em campo Fernando Haddad. Consta que, usando seu prestígio de ex-ministro perante quadros correligionários da área, ajudou o futuro ministro Camilo a ser, de fato, solução política positiva. Para tranquilizar o partido, não precisou desmontar a equipe com a qual tivera tanto êxito em seu Estado. Cela tornou-se secretária executiva do ministério e a coisa ficou, a princípio, em paz.  

Mas como o princípio não leva automaticamente ao meio e ao fim, até agora o fio da meada da política educacional eleita como prioritária não assumiu o centro da cena. Fricções não tardaram e o ministro enfrenta dificuldades em algumas frentes, obrigando-se a dispersar energias, o que nubla a mensagem central. Afora uma escaramuça lateral, em torno de uma prova do ENEM, que levou, meses atrás, parte   da bancada ruralista a encenar o script de “pedir sua cabeça”, há problemas mais sérios, como controvérsias, no meio empresarial, em torno de uma ambiciosa política de inclusão digital de populações longínquas da Amazônia para ensino à distância (parte importante do compromisso prioritário com a Educação básica) e com a regulamentação e implementação da reforma do Ensino Médio, iniciativa do governo Temer, contestada por movimentos de docentes e discentes num grau de enfrentamento politizado que levou à interrupção do processo, já em curso quando o governo começou. 

De um lado, interesses empresariais afetados e ao que parece não devidamente e tempestivamente inseridos na articulação da política de educação à distância; de outro, resistências ideológicas e corporativas à reforma do Ensino Médio, potencializadas por um ânimo de retaliação política ao passado recente por parte da militância de esquerda e, também, por problemas concretos de implementação da reforma em vários estados durante o desastre federativo do governo Bolsonaro. 

Os dois vetores de pressão desaguam no Congresso Nacional, onde não se percebe uma articulação política governamental efetiva e assertiva em favor das posições do MEC. Com um manto de suspeição empresarial sobre um dos seus mais acalentados projetos e com a iminente votação da reforma em clima adverso, sob fogo cruzado de adversários e amigos, o ministro Camilo Santana está sendo testado em sua habilidade política. O desafio diante de si parece ser desmontar uma virtual coalizão de veto a aspectos importantes da política educacional. É a esse cenário de risco que pode se somar uma eventual greve nas instituições de ensino superior, uma greve que pode começar sem prazo algum para acabar.

O presidente Lula não parece preocupado com agruras do seu ministro. Esbanjou autoconfiança, humor de blague e ironia quando discursou numa reunião do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia sobre inteligência artificial, na mesma quinta-feira, 07.03, em que Camilo Santana se reunia com a direção da Andifes e parlamentares da FPME. Disse ele, a respeito de cogitações de greve em institutos federais: “Só o fato de os caras quererem fazer greve já é bom, porque no governo passado ninguém se metia a fazer greve. Então só o fato do cara falar (...) O Lula está no governo então posso fazer uma grevezinha’ é ótimo! Que bom que ele está exercitando o direito de reclamar, o direito de reivindicar e a gente pode exercitar o direito de dar ou o de não dar (...) quando a gente não pode dar a gente sempre joga a culpa na Fazenda”. (https://valor.globo.com/google/amp/brasil/noticia/2024/03/07/lula-defende-greve-de-servidores-e-brinca-que-nao-pode-mais-culpar-o-fmi.ghtml).

Natural ou artificial, essa inteligência política acha-se capaz de traçar uma diagonal sobre conflitos periféricos às suas prioridades e saltar por cima deles. Aparenta não se submeter ao dilema de atores políticos mortais, em geral acossados por pressões opostas da prudência e da vontade. Parece querer que sempre haja dúvida sobre se aposta nas possibilidades ou na impotência da política. Gosta de repetir que não há saída fora dela. Mas o que significa essa frase na sua gramática? Que tudo é política?

*Cientista político e professor da UFBa

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