No interior de cada uma dessas atitudes políticas polares há gradações várias, assim como há variadas inclinações ideológicas, às vezes díspares entre si. É comum flagrar-se adversários aparentemente difíceis de conviver agindo de modo a jogarem água para um mesmo moinho, seja o da confrontação ou o da conciliação. Reacionários de direita e revolucionários de esquerda podem plantar a mesma semente agonística em seus solos ideológicos distantes, assim como conservadores e reformistas de centro ou de esquerda podem convergir na disposição comum de recusar os extremos. Os dois últimos preocupam-se – para usar jargão conhecido – com a criança que está na bacia, enquanto os primeiros prestam atenção, antes e ao fim de tudo, na água que julgam suja ou benta, conforme suas convicções.
É dessa natureza a distinção que tentei
fazer, em artigo anterior nesta coluna (Prudência, voluntarismo e a “questão”
militar, de 18.02.2024), para comentar o duelo que prudência e vontade travam
para orientar o agir de sujeitos políticos. Hoje o mesmo comentário de fundo
será aplicado ao tema da educação, que prudentes de boa-fé tratam com atenção e
zelo e voluntaristas idem veem como última tábua de salvação para um
país-criança.
O ministro da Educação, Camilo Santana,
comprometeu-se, durante reunião com a direção da Andifes (Associação Nacional
de Dirigentes de Instituições de Ensino Superior), intermediada pela FPME
(Frente Parlamentar Mista da Educação) e realizada no dia 07 de março, com uma
complementação de R$ 250 milhões ao orçamento das universidades federais, neste
ano. A medida foi posta como um primeiro passo, pequeno - mas cuja
justificativa, financeira e política, não se deve desprezar - em direção
a uma recomposição de perdas orçamentárias acumuladas, cujo montante a Andifes
estima ser dez vezes maior. Certamente segue irresolvida uma extensa e penosa
pauta voltada à obtenção, pelas instituições federais do ensino superior, de
condições razoáveis de funcionamento e de cumprimento da missão que as
autodefine, de promover ensino, pesquisa e extensão de qualidade.
O resultado da reunião do dia 7 tem também
significado político, tanto pelo método de sua construção, como pelo contexto
em que se deu. A intermediação de atores do Legislativo condiz com a conduta
positiva da Andifes, que empreende gestões por soluções sem as restringir ao
Executivo. Essa última é a tradição de relações corporativas herdadas da
chamada “Era Vargas”, quando se reconhecia no Executivo poder quase monopólico
de decisão política nesta e em muitas outras áreas da administração pública.
Com a atuação nas duas frentes, a Andifes sinaliza uma leitura correta da nova
realidade institucional do país. Justifica-se uma moderada expectativa de que
esse padrão de conduta possa ser adotado ao menos por uma parte das
organizações sindicais tensamente envolvidas na discussão do tema, pelas
conexões que ele tem com questões salariais e de carreira de docentes e
técnicos das IFES.
Nesse ponto ressalta a possibilidade de
influência do compromisso assumido pelo MEC na dissuasão, ou ao menos
adiamento, de um movimento grevista que vem sendo preparado tanto por entidades
docentes como de servidores técnico-administrativos, tendo esses últimos
avançado na aprovação de um indicativo de greve a partir da próxima
segunda-feira, 11 de março. Essa preparação do sindicalismo das IFES para um
embate com o governo articula-se, em vários pontos e momentos, com as das
entidades sindicais dos servidores públicos em geral, mas tem, como é da
tradição, dinâmica própria. O compromisso do MEC com a Andifes na direção da
recomposição orçamentaria começa a dar encaminhamento a um dos pontos que
servem de eixo à articulação sindical em curso. Mas além desse e das pautas
salariais e de planos de carreira, há uma evidente politização da pauta
sindical para abarcar também a reforma do Ensino Médio, cuja votação no
Congresso está prevista para os próximos dias.
Isso leva a que uma análise responsável sobre
uma eventual greve deva considerar ângulos tão variados como as próprias
pautas. Escolho três: implicações pedagógicas e de sociabilidade de uma greve
sobre o ar que se respira atualmente em qualquer campus no Brasil; limites de
êxito de uma campanha salarial de docentes e técnicos de universidades e
institutos de ensino superior nas atuais condições orçamentária e fiscal do
governo federal; por fim, prioridades no setor educacional neste momento de
retomada de políticas públicas em que a ação do MEC vem sendo alvo de pressões
de várias naturezas.
O que se pode chamar de condições ambientais
adversas para o trabalho acadêmico de qualidade em qualquer campus federal é de
grande relevância nesse momento em que se está longe da cura de sequelas da
pandemia e retrocessos que causou, assim como do esvaziamento, deterioração e
descontinuidade de políticas públicas e da desestruturação institucional,
ocorridos de 2019 a 2022. Uma greve num ambiente assim tende a ter duplo efeito
tóxico. Primeiro o da paralização de atividades que sequer chegaram a ser normalizadas
plenamente. Isso é nefasto em si, implicando em retomar, no pós-greve, o
processo de reconstrução em ponto aquém desse a que se chegou até aqui.
Em segundo lugar o efeito de acirramento subjetivo de ânimos de embate num
espaço que já vem sendo tragado, fortemente, por importação de lógicas de
intolerância e de polarização extrema, emanadas de redes sociais, ao tempo em
que a Universidade tem se tornado, ela mesma, na contramão de sua vocação e
razão de ser, usina de fabricação ideológica de premissas e condutas
alimentadoras desses fenômenos. O oxigênio de que as universidades precisam não
virá da ética da “luta”, mas da livre circulação de ideias, da crítica e, de
modo muito especial, da autocrítica. Inversamente, uma greve seria/será um
fator a cristalizar e potencializar a rarefação do ar que ali se respira.
Além dessa implicação interna, tal movimento
padece de ineficácia externa. A sociedade brasileira enxerga com cada vez mais
reservas a extensão do pleno direito de greve a servidores públicos. E não se
trata de coisa recente. A dificuldade de obter apoio social a paralisações de
serviços públicos já se mostrava em longas greves havidas nas universidades na
última década do século passado e nas duas primeiras do atual. A insistência do
sindicalismo nesse tipo de recurso é sintoma e causa de seu relativo anacronismo.
No campo da educação, a ausência de rejeição social ativa não deve ser
confundida com apoio tácito. É que, para o bem e para o mal, não há,
nesse campo, o sentimento de urgência que há na saúde e segurança pública. Mas
a sociedade é cada vez mais cética quanto à legitimidade intrínseca de greves
em todos esses setores. O metro da avaliação pública são os calos que lhe doem
mais.
Chego ao segundo ângulo, o do poder de
persuasão (mais do que de pressão) que pode advir de uma exequibilidade que
torne suficientemente realista uma efetiva pauta salarial. Logicamente, durante
um processo de negociação, ela terá que ser mais modesta e precisa do que a
reivindicação de recompor as perdas. Se essa recomposição, vista de per si e
isolada do contexto é, em tese, defensável, pela defasagem salarial realmente
existente, deixa de sê-lo se considerada na perspectiva do lugar negativo que
os gastos com a manutenção do serviço público ocupam na equação socialmente
aceita do necessário equilíbrio fiscal. Nunca é demais alertar que o governo
assimilou politicamente a premissa da contenção. Essa aceitação é evidente na
manutenção da meta do déficit zero, por mais que Lula, vez por outra, cuide de
pô-la em dúvida para não perder sintonia com faixas do eleitorado que lhe são
fiéis. O autocontrole fiscal é um dos parâmetros principais da política da área
econômica, liderada pelo ministro Fernando Haddad. Um dar-de-ombros da
representação sindical em relação a essa realidade objetiva tende a lhe sair
politicamente caro, por haver potencial capacidade do governo de justificar,
caso queira, o não atendimento da reivindicação com argumentos assimiláveis
pela opinião pública.
Claro que sempre se poderá alegar, também com
boas chances de convencimento externo, que as categorias que trabalham nas IFES
– a docente e mais ainda a dos técnicos – estão muito distantes dos grupos que
podem ser apontados como altamente privilegiados, a exemplo dos servidores do
Judiciário e da burocracia do Banco Central. O próprio governo atual tem
consciência disso e é sensato supor sua simpatia e boa vontade, se se considera
os contingentes tradicionais do tipo de base social que o apoia. Porém, enveredar
por tais comparações seria erro. Se a coisa adquirir feição de luta entre
corporações do Estado pelo escasso fundo público, as universitárias
dificilmente jogarão a série A. Melhor é o jogo aberto, nos dois poderes, rente
à política econômica, buscando, através da persuasão e da exploração de
afinidades de discurso público, brechas que não a comprometam no todo. Poder de
pressão, na base da queda de braço, é ilusão. Ameaçar com ele, bravata.
Até porque não há sinais de que o ministro Camilo Santana, apesar de petista,
tenha caído nas graças do palácio. Muito ao contrário é o que parece.
Chego ao terceiro ângulo. Foi de Lula, ainda
em 2022, a afirmação de que a educação básica teria prioridade em seu terceiro
mandato. Considerava que nos anteriores já promovera uma revolução na educação
superior e que o novo foco se relacionava aos estragos da pandemia sobre a vida
escolar de crianças e adolescentes. Por isso foi considerada bastante razoável
a reserva da pasta da educação ao PT cearense, que ampliara e dirigira, a nível
estadual, uma exitosa política educacional originada nas gestões municipais de
Sobral, o berço político dos Ferreira Gomes. Os números e os relatos
qualitativos daquele sucesso são impressionantes e justificaram plenamente essa
escolha política para uma pasta de inegável peso social, uma das desejadas por
Simone Tebet, a mais notória e relevante aliada de Lula naquele momento. Todos
os indícios são de que um movimento grevista nas universidades e institutos
federais teria que enfrentar uma parede maciça cuja argamassa é uma mistura de
argumentos da política fiscal com os de uma consistente política educacional
progressista, de inegável relevância social.
Nesse contexto, o saber prático da prudência
política teria, a princípio, boas chances de persuadir ao menos alguns
dirigentes mais moderados dos movimentos das IFES. Mas outros aspectos da
complexa esgrima política palaciana que atualmente se processa no Brasil talvez
possam estar animando o proverbial voluntarismo de boa parte de tais lideranças
sindicais. Pode acontecer um enésimo caso de afinidades eletivas entre
diferentes voluntarismos, o do petismo de aparelho dissimulando seu governismo
e o dos coletivos ativistas onde a esquerda mais radical nada melhor, de braços
dados com movimentos identitários. Com uma mão lavando a outra podemos ter
greves institucionalmente amparadas no campus, gastando nessa coalizão a água
que pudesse vir a apagar um incêndio ameaçador da política educacional, da
equipe do ministério ou da estabilidade do próprio ministro.
Como antecedente, temos que o PT não só
reivindicou legitimamente a pasta. Pretendeu que lhe fosse dada
partidariamente, de porteira fechada e não para ampliar para o país uma
política pública testada. A tentativa de instrumentalização foi abortada não só
porque o trabalho do grupo da transição para a educação apresentou resultados
consistentes que respaldaram a entrega do comando do ministério a pessoas
artífices da experiência cearense. Também porque, diante do veto petista,
aceito por Lula, ao nome de Isolda Cela – plena encarnação de tal política, mas
não detentora de trajetória partidária – teria entrado em campo Fernando
Haddad. Consta que, usando seu prestígio de ex-ministro perante quadros
correligionários da área, ajudou o futuro ministro Camilo a ser, de fato,
solução política positiva. Para tranquilizar o partido, não precisou desmontar
a equipe com a qual tivera tanto êxito em seu Estado. Cela tornou-se secretária
executiva do ministério e a coisa ficou, a princípio, em paz.
Mas como o princípio não leva automaticamente
ao meio e ao fim, até agora o fio da meada da política educacional eleita como
prioritária não assumiu o centro da cena. Fricções não tardaram e o ministro
enfrenta dificuldades em algumas frentes, obrigando-se a dispersar energias, o
que nubla a mensagem central. Afora uma escaramuça lateral, em torno de uma
prova do ENEM, que levou, meses atrás, parte da bancada ruralista a
encenar o script de “pedir sua cabeça”, há problemas mais sérios, como
controvérsias, no meio empresarial, em torno de uma ambiciosa política de
inclusão digital de populações longínquas da Amazônia para ensino à distância
(parte importante do compromisso prioritário com a Educação básica) e com a
regulamentação e implementação da reforma do Ensino Médio, iniciativa do
governo Temer, contestada por movimentos de docentes e discentes num grau de
enfrentamento politizado que levou à interrupção do processo, já em curso
quando o governo começou.
De um lado, interesses empresariais afetados
e ao que parece não devidamente e tempestivamente inseridos na articulação da
política de educação à distância; de outro, resistências ideológicas e
corporativas à reforma do Ensino Médio, potencializadas por um ânimo de
retaliação política ao passado recente por parte da militância de esquerda e,
também, por problemas concretos de implementação da reforma em vários estados
durante o desastre federativo do governo Bolsonaro.
Os dois vetores de pressão desaguam no
Congresso Nacional, onde não se percebe uma articulação política governamental
efetiva e assertiva em favor das posições do MEC. Com um manto de suspeição
empresarial sobre um dos seus mais acalentados projetos e com a iminente
votação da reforma em clima adverso, sob fogo cruzado de adversários e amigos,
o ministro Camilo Santana está sendo testado em sua habilidade política. O
desafio diante de si parece ser desmontar uma virtual coalizão de veto a
aspectos importantes da política educacional. É a esse cenário de risco que
pode se somar uma eventual greve nas instituições de ensino superior, uma greve
que pode começar sem prazo algum para acabar.
O presidente Lula não parece preocupado com
agruras do seu ministro. Esbanjou autoconfiança, humor de blague e ironia
quando discursou numa reunião do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia
sobre inteligência artificial, na mesma quinta-feira, 07.03, em que Camilo
Santana se reunia com a direção da Andifes e parlamentares da FPME. Disse ele,
a respeito de cogitações de greve em institutos federais: “Só o fato de os
caras quererem fazer greve já é bom, porque no governo passado ninguém se metia
a fazer greve. Então só o fato do cara falar (...) O Lula está no governo então
posso fazer uma grevezinha’ é ótimo! Que bom que ele está exercitando o direito
de reclamar, o direito de reivindicar e a gente pode exercitar o direito de dar
ou o de não dar (...) quando a gente não pode dar a gente sempre joga a culpa
na Fazenda”. (https://valor.globo.com/google/amp/brasil/noticia/2024/03/07/lula-defende-greve-de-servidores-e-brinca-que-nao-pode-mais-culpar-o-fmi.ghtml).
Natural ou artificial, essa inteligência
política acha-se capaz de traçar uma diagonal sobre conflitos periféricos às
suas prioridades e saltar por cima deles. Aparenta não se submeter ao dilema de
atores políticos mortais, em geral acossados por pressões opostas da prudência
e da vontade. Parece querer que sempre haja dúvida sobre se aposta nas
possibilidades ou na impotência da política. Gosta de repetir que não há saída
fora dela. Mas o que significa essa frase na sua gramática? Que tudo é
política?
*Cientista político e professor da UFBa
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