domingo, 10 de março de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Crimes contra mulher exigem julgamento célere

O Globo

Enquanto feminicídios estão em alta, condenações por estupro e assédio sexual demoram anos

violência contra a mulher continua a exigir mais atenção das instituições. Apenas no ano passado, foram registrados 1.463 feminicídios, um aumento de 1,6% em relação ao ano anterior, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Foi o número mais alto desde 2015, ano em que o crime foi tipificado em lei.

Desde então, foram registrados 10.655 feminicídios. Em 18 estados, a taxa de feminicídio ficou acima da média nacional, de 1,4 morte por 100 mil habitantes. A mais alta (2,5) foi registrada em Mato Grosso. A mais baixa (0,9), no Ceará, embora haja uma suspeita fundamentada de subnotificação, já que apenas 28 das 264 mulheres assassinadas no estado foram classificadas como vítimas de feminicídio (crime em que a vítima se torna alvo pela condição de mulher).

É verdade que governo e sociedade têm agido para combater a violência contra as mulheres. A legislação se tornou mais rígida, com canais oficiais para denúncias, campanhas educativas e pressão sobre as autoridades. Mais mulheres têm procurado o Judiciário para se blindar contra seus agressores. Mesmo assim, apesar do aumento nas Medidas Protetivas concedidas pela Justiça, mais mulheres têm sido vítimas de agressão, numa espiral que, nos casos mais extremos, culmina no feminicídio.

Condenações em primeira instância por estupro e assédio sexual também têm crescido. As por estupro aumentaram 57% entre 2020 e 2023 (de 7.532 para 11.801). Nas denúncias de assédio, as condenações aumentaram 240% no mesmo período (de 345 para 1.175). Embora os processos por estupro tenham caído 12%, as ações por assédio aumentaram 39%. Ainda havia, no final do ano passado, 56.226 casos de estupro e 6.154 de assédio à espera de julgamento, a maioria com os agressores à solta.

É lamentável o aumento no tempo para que esses processos sejam julgados. Em 2020, casos de estupro tinham de esperar 807 dias. A demora aumentou para 983 dias em 2023, salto de 22%. É mais de dois anos e meio. A mesma tendência afeta os processos por assédio: de 547 dias em 2020, os julgamentos passaram a demorar 668 dias em 2023, quase dois anos.

Por trás dessas estatísticas há vítimas e familiares angustiados à espera do desfecho judicial, sem falar nos traumas e danos psicológicos. A rapidez com que a Justiça espanhola condenou em primeira instância, por estupro, o jogador brasileiro Daniel Alves deveria ser um parâmetro seguido no Brasil. Do registro da denúncia à condenação em primeira instância, transcorreu pouco mais de um ano.

Cabe ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) debruçar-se sobre a questão. Segundo o promotor Paulo Fortes, do Ministério Público de São Paulo, a Justiça não consegue atender à demanda de processos por falta de recursos humanos — nas delegacias, no MP e nos tribunais. Mas Fortes reconhece que há espaço para melhorar e acelerar os procedimentos, para que processos de feminicídios e agressões de todo tipo a mulheres tenham tramitação mais rápida. Quanto mais eficiente for a Justiça, menor será o incentivo aos crimes. A punição célere é um eficaz instrumento de prevenção.

Veto a romance premiado revela moralismo contra arte que incomoda

O Globo

Em vez de barrar ‘O avesso da pele’ nas escolas, autoridades deveriam cuidar da qualidade do ensino

É injustificável o veto imposto ao livro “O avesso da pele”, de Jeferson Tenório, vencedor do Prêmio Jabuti em 2021, por parte de gestores educacionais de pelo menos três estados brasileiros (Paraná, Mato Grosso do Sul e Goiás). Num efeito dominó, a Secretaria de Educação dos três estados mandou recolher o romance das bibliotecas escolares, sob alegações sem nexo de que apresenta vocabulário chulo e conteúdo sexual. Ora, as autoridades deveriam se preocupar com a qualidade do ensino, não em cancelar obras consagradas pela crítica.

O capítulo inicial desse desvario foi o vídeo da diretora de uma escola de Santa Cruz do Sul (RS) pedindo que exemplares do romance fossem retirados das escolas. Ela criticou o MEC por enviar um livro “com vocabulários de tão baixo nível para estudantes do ensino médio”. Depois da repercussão, o vídeo foi apagado. Mas cumpriu seu objetivo de disseminar desinformação.

Não demorou para que outros estados se engajassem na cruzada contra a obra, traduzida em 16 idiomas. O secretário de Educação do Paraná, Roni Miranda, alegou que o problema “não é o conteúdo de combate ao racismo, mas a exposição do estudante ao vocabulário de sexo explícito, de baixo teor (sic)”. Em Mato Grosso do Sul, o caso mobilizou o governador Eduardo Riedel (PSDB), que mandou recolher os exemplares. A Secretaria de Educação alegou que a obra contém “expressões impróprias” para a maioria dos alunos da rede estadual (abaixo de 18 anos).

O romance, que aborda o racismo, foi selecionado por um edital de 2019 e incluído no Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), do Ministério da Educação, por uma portaria de 2022, ainda no governo Jair Bolsonaro. Nas redes sociais, o autor reagiu ao cerco. “O mais curioso é que as palavras de ‘baixo calão’ e os atos sexuais do livro causam mais incômodo do que o racismo, a violência policial e a morte de pessoas negras”, disse Tenório.

A perseguição à arte motivada pelo moralismo não é exclusividade da direita brasileira. Foram vítimas desse tipo de histeria alguns dos maiores escritores da literatura, como Gustave Flaubert (por “Madame Bovary”), James Joyce (por “Ulysses”) ou Vladimir Nabokov (por “Lolita”). Por aqui, em novembro passado, o governo de Jorginho Mello (PL) em Santa Catarina determinou a retirada de nove obras das bibliotecas escolares. Entre elas, “Laranja mecânica”, de Anthony Burgess, e “It: a coisa”, de Stephen King. O deputado Gustavo Gayer (PL-GO) promoveu uma campanha difamatória que tachou de pornográfico o romance “Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios”, de Marçal Aquino, retirado de um vestibular em Goiás.

Escolas deveriam ser espaços propícios ao livre pensar, à diversidade de ideias e ao senso crítico, não foco de censura. Em que mundo vivem educadores que se chocam com vocabulário chulo e cenas de sexo? O papel da literatura ou de qualquer arte não é atender a caprichos moralistas, mas desafiar os limites da alma humana. Educar pressupõe explicar, debater, ponderar — o avesso de proibir.

Reeleição no Executivo deveria ser mantida

Folha de S. Paulo

Instituto é ferramenta para responsabilizar governantes; democracias se beneficiam da estabilidade das regras políticas

Recrudesce a movimentação parlamentar para dar cabo da reeleição de prefeitos, governadores e do presidente da República.

O Senado Federal prepara-se para avaliar propostas que proíbem a recondução a um segundo mandato consecutivo. A duração dos governos, em contrapartida, seria estendida de quatro para cinco anos.

Como ocorreu em outras ocasiões, a onda reformista atual se baseia em impressionismos mal assentados e apetites circunstanciais. Alguns políticos gostariam de fazer a roda dos eleitos girar mais depressa, por meio da supressão do bônus conferido a quem, no cargo, concorre pela segunda vez.

O desejo desses parlamentares coincidiria com o interesse público caso houvesse prova de que a regra bloqueie o objetivo democrático da alternância de poder. Mas a reeleição acaba de dar um exemplo nacional de que nem sempre o candidato governante sai vitorioso.

Quem abusar da irresponsabilidade no exercício do cargo, ainda que seja no comando da poderosa máquina administrativa federal, corre o risco de ser rejeitado na urna. Jair Bolsonaro (PL) que o diga.

Derrotas do incumbente são comuns nos pleitos municipais e estaduais, mostra a extensa coleção de casos desde que a reeleição foi permitida no país, na votação de 1998.

Em 2016, menos da metade dos prefeitos que tentaram se reeleger foi bem-sucedida. Quatro anos depois, mais de 60% obtiveram o segundo mandato.

Quando o eleitor quer mudar, não é a reeleição que o impede. Quando deseja premiar um bom governante, a reeleição lhe propicia essa opção. A regra faculta ao cidadão deliberar diretamente sobre o desempenho dos mandatários.

Alterar de tempos em tempos e sem justificativa contundente as balizas do jogo eleitoral ajuda a minar um valor central do regime democrático. A estabilidade e a previsibilidade das condições de disputa do poder político distinguem crianças de adultos nesse terreno.

A melhor abordagem para reformas do sistema político em nações maduras é adotar mudanças pontuais e paulatinas, no sentido de aperfeiçoar os regramentos, não no de virá-los de ponta-cabeça.

Uma opção de melhoria do instituto da reeleição seria proibir que uma pessoa seja eleita mais que duas vezes para o mesmo cargo no Executivo, independentemente de a recondução ocorrer para um mandato consecutivo ou alternado.

Essa regra, vigente para o presidente dos Estados Unidos, estimularia a circulação de lideranças sem retirar do eleitor o direito de premiar um bom gestor. Tal restrição, como reza a boa prática, não deveria atingir os atuais mandatários. Afetaria apenas os que vierem a ser empossados a partir de 2027.

Petrobras mais incerta

Folha de S. Paulo

Mudança na política de dividendos é sinal de ingerência do Planalto na empresa

Com a decisão de pagar menos dividendos, a Petrobras amargou uma perda de valor de mercado na casa de R$ 55 bilhões em apenas um dia, com queda de 10,6% das ações no pregão de sexta (8).

A estatal lucrou R$ 124,6 bilhões no ano passado, cerca de um terço a menos que em 2023. A queda da rentabilidade já era esperada e não difere do padrão de outras grandes petroleiras mundiais, que também foram impactadas pelos menores preços do petróleo no mercado global.

O que surpreendeu foi a conduta a respeito da distribuição dos lucros aos acionistas, que se resumiu aos pagamentos ordinários previstos no estatuto da empresa. Não houve desta vez o desembolso dos chamados dividendos extraordinários, acima do mínimo.

A posição do conselho da companhia segue a preferência do governo, que quer mais recursos para investimentos —em descompasso com a recomendação da diretoria, que era a favor de pagamento maior aos investidores.

Não é novidade que o Planalto tem pretensões de reviver um ciclo de obras e projetos liderados pela estatal em outras áreas além da exploração e produção de petróleo.

Nesses planos há um pouco de tudo, de mais refinarias a energia renovável, passando por fertilizantes e distribuição de combustíveis, áreas que no passado levaram a perdas bilionárias e a um estratosférico endividamento.

É fato que a melhoria na governança da empresa, os olhos atentos da sociedade e o maior escrutínio de órgãos de controle tornam improvável uma repetição dos desmandos e da corrupção na escala do último período de euforia.

Mesmo assim, há risco considerável de mau uso dos recursos retidos. Em 2023, a nova direção da Petrobras foi cautelosa e promoveu mudanças graduais, não raro sob protestos e ensaios de intervenção não pouco sutis de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Temas como os preços dos combustíveis, a política de investimentos e até mesmo a distribuição de dividendos foram tratados com cautela. Mas acumulam-se pressões políticas capazes de degradar a gestão da gigante estatal.

Pesquisas refletem mediocridade de Lula

O Estado de S. Paulo

Cresce sensação de que governo entrega pouco, enquanto Lula aprofunda divisões

É natural que haja sinais de desgaste de material no segundo ano de mandato, mas Lula da Silva deve estar um tanto aflito com as mais recentes pesquisas de opinião sobre seu governo, realizadas pela Genial/Quaest, Atlas Intel e Ipec. Para resumir, embora a aprovação a seu trabalho na Presidência tenha se mantido num patamar relativamente satisfatório, sobretudo quando comparado a seu antecessor, Jair Bolsonaro, os números mostram uma corrosão visível de sua popularidade.

Numa das pesquisas (Atlas), o número de brasileiros que reprovam o governo é maior do que aqueles que o aprovam. Em outra (Quaest), a diferença entre a aprovação e a desaprovação é a menor da série histórica. Na terceira (Ipec), a curva de desaprovação é ascendente, inversa à da aprovação, no pior resultado radiografado pelo instituto desde o início do governo. Na Quaest, o esmaecimento da popularidade ocorre inclusive na parte do eleitorado que em 2022 provavelmente votou no petista por convicção.

Ou seja, ao mesmo tempo que tem enorme dificuldade de conquistar os eleitores que o rejeitaram em 2022, Lula começa a enfrentar problemas também para satisfazer os eleitores que em geral o apoiam – e isso numa conjuntura econômica supostamente favorável. Não se sabe se os efeitos do crescimento da economia, do recuo da inflação e do desemprego baixo ainda estão por se fazer sentir na popularidade do presidente num futuro próximo, mas o quadro hoje é de malaise – e recorde-se que nenhum presidente com popularidade líquida (aprovação menos desaprovação) de 1 ponto porcentual, caso de Lula hoje segundo a Quaest, conseguiu se reeleger. Bolsonaro, por exemplo, chegou ao fim do seu mandato com popularidade líquida de -2 pontos porcentuais.

A polarização ajuda a tornar mais aguda a rejeição ao trabalho do presidente, mas o sinal amarelo acende para ele quando se vê a avaliação positiva cair inclusive em suas faixas preferenciais do eleitorado, isto é, mulheres, jovens e pessoas de baixa escolaridade, conforme mostraram Quaest e Ipec. A pesquisa Atlas Intel,por sua vez, identifica saldo negativo entre avaliações positivas e negativas em todas as áreas – numa faixa que vai de -5 pontos na agricultura a -42 pontos na segurança pública.

Pode-se especular que o encolhimento lulista seja fruto em parte da ausência de grandes marcas deste terceiro mandato. Mesmo não exuberante, o País vai relativamente bem na economia – com crescimento razoável, inflação sob controle e emprego num bom nível –, mas o governo carece de uma identidade clara e está longe de apresentar bons resultados em áreas-chave como segurança pública, educação e saúde. Em uma palavra: é medíocre.

Ademais, num país bastante polarizado, a principal pauta com a qual Lula foi eleito – a defesa da democracia e da união nacional – tem cada vez menos apelo, sobretudo por culpa do próprio petista, cuja natureza é essencialmente autoritária. Bastou um minuto de governo para Lula esquecer o espírito de frente ampla que ancorou sua vitória, concentrando suas atenções sobretudo nos devotos de sua seita, que vibra toda vez que ele hostiliza o Ocidente e os EUA e elogia as ditaduras de esquerda da América Latina.

À medida que o País se afasta do tenebroso governo de Jair Bolsonaro, mais e mais Lula passa a ser avaliado por seus próprios defeitos, e não com base num inimigo evidente a comparar e combater, como gostam os líderes populistas. É isso o que as pesquisas mostram de maneira cristalina.

O risco é Lula, em apuros, recorrer aos seus habituais métodos eleitoreiros para tentar recuperar o apoio perdido. O mau presságio veio esta semana, quando, ao exaltar dados econômicos, o presidente pediu mais “liberdade” para gastar “em benefício do povo”. Eis aí a fórmula clássica dos demagogos – especialmente aqueles que sentem a popularidade escorrer por entre os dedos.

Quem manda nas prisões

O Estado de S. Paulo

Mais de 70 facções atuam no interior das prisões País afora, como mostra um mapeamento do Ministério da Justiça. Só falta o Estado entregar as chaves do cárcere aos prisioneiros

O Ministério da Justiça e da Segurança Pública identificou que 72 facções criminosas atuam no interior das prisões País afora. Por escandalosa omissão do Estado, membros dessas facções exercem poder de vida e morte sobre outros detentos e servidores públicos que são treinados e armados para vigiá-los. Como se isso não bastasse, usando as prisões como “escritórios do crime”, como se convencionou chamá-las, os presos seguem gerenciando suas atividades delitivas nas ruas como se jamais tivessem sido alcançados pelo braço forte do Estado – que, convém lembrar, é o detentor do monopólio da violência. Uma humilhação para o poder público.

A rigor, o dado novo apresentado por esse mapeamento sigiloso, ao qual o Estadão teve acesso, é o grau de fragmentação das quadrilhas. Do total, 57 delas têm atuação meramente local, enquanto 13 são facções regionais. Outras duas, as mais poderosas, têm presença nacional: o Comando Vermelho (CV), com origem no Rio no fim dos anos 1970, e o Primeiro Comando da Capital (PCC), criado há mais de 30 anos em Taubaté (SP).

É público e notório que, há muitas décadas, o Estado só tem poder, quando muito, de determinar quem entra e quem sai das celas, e em quais horários. O que acontece no interior das instituições penitenciárias está quase totalmente submetido à dinâmica de poder estabelecida entre as próprias facções – além, é claro, da propensão à corrupção que move alguns agentes de segurança.

Ao ingressar numa prisão brasileira, todo prisioneiro, seja um condenado pela Justiça ou um preso provisório, recebe do Estado um uniforme, um par de chinelos, um kit de higiene pessoal e uma imposição da realidade local para “escolher” a que bando vai pertencer no cárcere. Muitos, naturalmente, já entram no sistema penitenciário como membros de alguma facção criminosa, e são logo segregados em alas reservadas para ela – o que basta, por si só, para atestar a incapacidade do Estado para controlar o que acontece dentro dos presídios, a despeito de a medida ser vista como uma necessidade com vistas ao resguardo da integridade física dos próprios detentos.

Todas as facções criminosas mapeadas pela pasta da Justiça e da Segurança Pública exercem poder dentro dos presídios, mas 21 delas são consideradas de “alto impacto” no dia a dia prisional. “Os presos passam a se autogovernar nos presídios”, disse ao Estadão Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP. “O fenômeno das facções e o modelo de negócio do PCC, que até 1990 era mais restrito a Rio e São Paulo, começa a se espalhar pelo Brasil, porque é um modelo bem-sucedido.”

Sucessivas décadas de leniência da administração pública para tornar o sistema penitenciário menos bárbaro e mais humanizado, além de eficiente, resultou nesse “estado de coisas inconstitucional”, como bem o declarou o Supremo Tribunal Federal em outubro do ano passado. É notória a falência do Estado no cumprimento de seu dever inalienável de ressocializar os criminosos que mantém sob custódia. No Brasil, como em outros países civilizados, a pena de restrição da liberdade tem uma dimensão punitiva, mas também se presta, essencialmente, à ressocialização. Afinal, a Constituição veda a imposição das penas de morte, salvo em caso de guerra declarada, e de prisão perpétua (art. 5o, XLVII, alíneas a e b). Trata-se de cláusula pétrea. De modo que, mais cedo ou mais tarde, os apenados voltarão às ruas. Em que condições, depende fundamentalmente de como o Estado exercerá seu poder de prisão.

Não é preciso conhecimento avançado de teoria política e sociologia para compreender que o Estado detém o monopólio da violência, com poder para cassar a liberdade dos que infringem as leis, por uma concessão dos cidadãos. Para triunfo da civilização sobre a barbárie, os indivíduos abrem mão de certas liberdades para que o Estado proteja a todos dos que se desviam das leis, mantendo a ordem pública e a paz social. Mais bem dito: ao descuidar de suas prisões, o Estado trai a sua razão de existir.

Austeridade fiscal de mentirinha

O Estado de S. Paulo

Superávit de janeiro posterga discussão sobre meta fiscal cada vez menos viável

O déficit fiscal zero, meta perseguida para este ano pela equipe econômica, é considerado uma abstração pelo mercado financeiro e pelo próprio governo, como já deixou claro, em diversas ocasiões, o presidente Lula da Silva. É praticamente consenso sua alteração, mais cedo ou mais tarde, mas o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, mantém-se obstinado na saga de zerar as contas públicas em 2024.

Se acredita realmente na viabilidade do compromisso firmado, só o ministro sabe. O fato é que continuará a cortar um dobrado para manter-se agarrado às rédeas de pretensa austeridade diante de um governo adepto do preceito de que qualquer gasto público é investimento – nem que seja apenas em popularidade – e de um Congresso ávido pela distribuição de mais recursos aos parlamentares.

O superávit fiscal primário de R$ 102,146 bilhões de janeiro, divulgado pelo Banco Central – consequência, principalmente, de uma arrecadação recorde para o mês – apenas empurra para o segundo semestre uma revisão esperada pelo mercado para abril. Mas fica cada vez mais evidente que a busca pelo equilíbrio fiscal não pode ser sustentada somente pelo aumento de receita. Sem corte de despesas, o esforço da equipe econômica será ineficaz.

Como mostrou reportagem do Estadão, um cálculo da Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados prevê a necessidade de bloqueio orçamentário de R$ 41 bilhões na revisão das contas públicas que ocorrerá este mês. Em dezembro do ano passado, a consultoria já havia previsto bloqueio de R$ 53 bilhões. Resultados que ultrapassam em muito as contas da Fazenda, que oscilam entre R$ 23 bi e R$ 25 bi. O cálculo dos consultores, nas duas vezes, foi pedido pelo deputado Pedro Paulo (PSD-RJ) um dos vice-líderes do governo na Câmara.

No centro da celeuma, a preocupação do Planalto em evitar contingenciamentos orçamentários que possam ameaçar os gastos ou, como prefere Lula da Silva, os investimentos públicos. Principalmente em relação às grandes obras do novo PAC, programa considerado imprescindível mais pelos dividendos eleitorais do que por avanços socioeconômicos.

A obsessão de Haddad e sua equipe não parece derivar da crença real de zerar o déficit em 2024. Os movimentos feitos desde o fim do ano passado indicam, apenas, empenho em postergar o contingenciamento, e o exemplo mais recente foi o ministro ter aceitado trocar a extinção do Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse) pela fixação do limite de R$ 8 bilhões para a renúncia fiscal com o programa. Pressionado por parlamentares, recuou do fim da isenção tributária do Perse, mas negociou com Arthur Lira a manutenção da MP para garantir seu efeito contábil nos dois primeiros meses do ano.

Enquanto a discussão das contas públicas não deixarem o terreno da contabilidade da carochinha e seus efeitos fantasiosos e passarem a se concentrar nos resultados práticos de uma política fiscal responsável, não haverá uma forma segura de financiar políticas públicas sem afundar o País em dívidas impagáveis.

Eleições pelo mundo ampliam incertezas

Correio Braziliense

Essa onda da direita tende a provocar sérias turbulências nas relações entre a maior economia do planeta, os EUA, e a China

As boas relações históricas entre Brasil e Portugal passarão pelo teste das urnas neste domingo. O país europeu terá eleições para definir a nova composição da Assembleia da República, e tudo indica que haverá uma forte guinada à direita, depois de oito anos de um governo socialista. Não por acaso há uma grande atenção por parte do Palácio do Planalto quanto ao resultado do pleito, que deve definir maior ou menor proximidade entre os dois países. Caso a opção dos votantes seja por uma direita moderada, representada pela Aliança Democrática (AD), pouco mudará, ante o diálogo aberto entre o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o possível primeiro-ministro Luís Montenegro.

Brasil e Portugal têm agendado para este ano uma reunião de cúpula. A princípio, o encontro aconteceria em abril, em Brasília. Contudo, diante das incertezas eleitorais, optou-se por não bater o martelo sobre a data efetiva do evento. Os dois lados terão de digerir o que sair das urnas. Pelas pesquisas de intenção de votos, a Aliança Democrática não fará maioria no Parlamento. Se confirmado esse quadro, Montenegro terá de buscar apoios para garantir o comando do governo. O Palácio do Planalto teme que o político português acabe se unindo ao partido de ultradireita Chega, de André Ventura. Até agora, o líder da AD nega tal intenção.

Não é apenas o resultado das eleições portuguesas que tem atraído a atenção do governo brasileiro. Em junho, o Parlamento europeu será renovado. E a direita mais radical vem conseguindo mobilizar parte importante dos votantes. Uma Europa mais conservadora tende a se distanciar de países com governos de esquerda, como o Brasil. É preciso lembrar que a ultradireita europeia está por trás das manifestações crescentes de representantes do agronegócio, que são contra o acordo entre o Mercosul e a União Europeia e críticos ferozes de medidas voltadas para o enfrentamento das mudanças climáticas.

Nos Estados Unidos, também são reais as chances de a direita radical voltar ao poder com Donald Trump, praticamente confirmado como representante do Partido Republicano na disputa eleitoral marcada para novembro. Ele aparece com quatro pontos percentuais à frente do democrata Joe Biden, que buscará a reeleição. Essa onda da direita tende a provocar sérias turbulências nas relações entre a maior economia do planeta e a China, com repercussão geral no Sul global. O mundo já não vive seu melhor momento, com duas guerras a perturbar o sono de governantes. Rússia e Ucrânia estão em conflito há dois anos e Israel e o grupo terrorista Hamas se enfrentam numa batalha que já custou mais de 30 mil vidas em cinco meses.

O Brasil, sabe-se, tem muitos problemas internos a resolver, inclusive, o de garantir um crescimento maior da economia. As estimativas caminham para uma expansão de 2% do Produto Interno Bruto (PIB), ainda insuficiente para convencer a população de que o país está no rumo certo. Com um mundo mais conturbado, os desafios brasileiros se agigantam, pois os reflexos das tensões serão sentidos em todo o globo. Países emergentes como o Brasil costumam ser mais castigados por crises internacionais. Não será diferente desta vez, se as disputas entre Estados Unidos e China, por exemplo, se acentuarem.

Resta ao governo brasileiro, em meio a esse quadro de grande incerteza, controlar os ânimos, com medidas que garantam a previsibilidade e deem a máxima confiança possível para que os investimentos produtivos deslanchem e a população em geral se sinta confortável para satisfazer suas necessidades de consumo. Não há espaço para aventuras neste momento. Quanto mais calmaria interna a economia tiver, menor será o contágio perante possíveis crises externas. O Brasil surpreendeu o mundo no ano passado com um crescimento de 2,9%, quando as projeções iniciais apontavam para um avanço de 0,8%. Há chance de uma nova surpresa positiva. Porém, é preciso muita cautela a sangue-frio.

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