O Estado de S. Paulo
Ato na Avenida Paulista evidenciou mais uma
vez os vínculos – vigorosamente afirmados pela ex-primeira-dama – entre a fé
religiosa e o jogo do poder
A mistura tóxica de religião e política, uma aberração num Estado leigo, é hoje parte do dia a dia dos brasileiros, como indica pesquisa da consultoria Quaest. Segundo o relatório, 42% dos cidadãos identificados como católicos avaliaram positivamente o atual governo e 28%, de forma negativa. Entre os evangélicos, a avaliação positiva ficou em 22% e a negativa, em 48%. O vínculo entre filiação religiosa e opinião política parece claro. Além disso, remete à fala da ex-primeira dama Michelle Bolsonaro no comício de 25 de fevereiro na Avenida Paulista. “Por um bom tempo, fomos negligentes a ponto de dizer que não poderíamos misturar política com religião. E o mal tomou e o mal ocupou o espaço. Chegou o momento, agora, da libertação”, disse a oradora, antes de chamar Deus para estabelecer seu reino no Brasil.
Não está claro se o Todo-Poderoso deu alguma
resposta ao apelo da ex-primeira-dama nem se está disposto a aliviar a situação
legal de seu marido, o ex-presidente Jair Bolsonaro. Já inelegível por abuso do
aparelho estatal, ele é apontado como envolvido em outras lambanças, como
tentativa de venda de joias presenteadas à República, fraude no cartão de
vacina, incitação ao vandalismo e ao golpismo de 8 de janeiro e propagação de
mentiras sobre a vacina contra a covid-19.
No comício da Avenida Paulista, ele pregou
pacificação, falou em passar borracha no passado e pediu anistia aos envolvidos
na depredação golpista em Brasília. O discurso foi interpretado imediatamente,
e com bons fundamentos, como busca de anistia para si mesmo. Também nesse
evento a ex-primeira-dama, além de citar a Bíblia e de pedir o apoio divino,
falou de si e de seu marido como vítimas de perseguição.
Os dados da pesquisa Quaest sobre religião e
política poderiam ser um interessante detalhe estatístico, sugestivo, talvez,
de algum estudo mais profundo ou de uma boa reportagem. Mas o ato na Avenida
Paulista, com presença de milhares de evangélicos e católicos e participação
dos pastores Silas Malafaia, Marco Feliciano e Magno Malta, evidenciou mais uma
vez os vínculos – vigorosamente afirmados pela ex-primeira-dama – entre a fé
religiosa e o jogo do poder.
Observados em muitas democracias, esses
vínculos podem estar presentes no dia a dia da vida política e na configuração
dos valores coletivos, sem afetar, no entanto, a natureza do Estado e a
liberdade civil. Essa tem sido a experiência brasileira desde o início da
República.
A Constituição imperial, de 1823, ainda
consagrou uma religião do Estado, mas garantiu a liberdade religiosa, embora
com certas condições. No caso de religiões diferentes do catolicismo romano, o
culto deveria ser doméstico ou realizado em casas sem aparência de templo. De
modo mais amplo, a liberdade religiosa foi reafirmada, em 1891, na primeira
Constituição republicana.
Esse texto, alterado nas décadas seguintes
por algumas emendas, estabeleceu a laicidade do Estado, o reconhecimento
exclusivo do casamento civil, o caráter secular dos cemitérios e a laicidade do
ensino público.
Os fundadores do regime republicano levaram a
sério essas ideias, típicas da modernidade e amadurecidas no mundo ocidental
principalmente a partir do século 18. No Brasil, o direito a formas diversas de
religiosidade tem sido valorizado há mais de um século, embora ainda se
observem, de vez em quando, surtos de intolerância, dirigidos principalmente
contra religiões de origem africana. Parece inegável o caráter racista dessas
manifestações.
A liberdade religiosa foi geralmente
respeitada e valorizada, no País, mesmo nos períodos de autoritarismo. Líderes
cristãos e não cristãos foram importantes na resistência à ditadura militar,
entre 1964 e 1985, ajudando perseguidos políticos, socorrendo pessoas
torturadas e combatendo a violência do regime. Esses líderes e seus grupos
foram rotulados como comunistas e vigiados como inimigos do poder, mas, de modo
geral, as igrejas mantiveram sem limitações as suas atividades habituais de
culto, de pregação e de ação sacramental.
Apesar do envolvimento político de bispos,
padres, pastores, rabinos, pais de santo e outras figuras ligadas a religiões,
nenhum grupo parlamentar assumiu explicitamente uma identificação religiosa.
Não houve uma bancada católica, nem evangélica, nem de qualquer outra
denominação ligada a culto ou igreja. Sempre se manteve a distinção, pelo menos
implícita, entre ação política e filiação a alguma organização eclesiástica.
Grupos ideológicos ligados a alguma denominação religiosa se mantiveram como
organizações privadas, sem agitar suas bandeiras nas instituições oficiais.
Essa distinção, observada na rotina
democrática e também nas fases mais difíceis da vida brasileira, permitiu a
manutenção, por mais de um século, do princípio republicano do Estado laico.
Crucifixos pendurados em alguns salões de edifícios públicos nunca impediram a
afirmação dessa laicidade, garantida também pela Constituição de 1988, embora
promulgada, como indica seu preâmbulo, “sob a proteção de Deus”. Que assim
seja.
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