Correio Braziliense
O American way of life serve de espelho para
a maioria da população. Não apenas a elite econômica e a classe média, mas
também a grande massa de periferias e favelas
A complexidade das relações do Brasil com os Estados Unidos é determinada historicamente por nossa condição geopolítica na América do Sul, o republicanismo, a vocação agroexportadora e industrial e a influência cultural do modo de vida americano na vida urbana. Antes mesmo da independência do Brasil, quando as relações com os EUA se estabeleceram diplomaticamente, alternamos períodos de tensão por razões comerciais ou políticas, como na Inconfidência, na Confederação do Equador e nos governos Vargas e João Goulart, e momentos de estreita cooperação, maior até do que deveria, como na Primeira República, no governo Dutra e nos primeiros anos do regime militar.
No momento, as relações são boas entre o
governo Lula e o governo Biden, mas podem se deteriorar em função do cenário
político internacional. Ucrânia, Gaza, Venezuela, Nicarágua, são os pontos de
maior fricção, mas o que pode complicar ainda mais as relações é uma eventual
derrota dos democratas e a volta ao poder de Donald Trump, aliado de primeira
hora do ex-presidente Jair Bolsonaro. Entretanto, a influência cultural do
americanismo, desde a entrada na II Guerra Mundial (1939-1945), ao lado dos
Aliados, independe dessas relações políticas conjunturais.
O American way of life serve de espelho para
a maioria da população. Não apenas a elite econômica e a classe média, cujos
padrões de consumo emulam os norte-americanos, mas também a grande massa dos
subúrbios, periferias e favelas, que hoje consome o que pode para reproduzir o
mesmo estilo de vida, haja vista a forte influência do hip hop e do fank entre
os jovens, o “identitarismo” de movimentos sócio-políticos” de negros, mulheres
e LGBTQIA+ e a forte reação conservadora pentecostal, que esses comportamentos
provocam, tanto aqui quanto lá.
É preciso compreender a essência do
americanismo, que se consolidou como modo de vida hegemônico após a crise de
1929 e a Grande Depressão. No final do século 19, principalmente depois da I
Guerra Mundial (1914-1918), os Estados Unidos lideraram o desenvolvimento
industrial e passaram a ser o centro da economia mundial. É um modo de vida que
surgiu associado ao taylorismo, como modelo de organização do trabalho, e ao
fordismo, um novo padrão de acumulação de capital, que possibilitava o aumento
da renda dos trabalhadores, sem as amarras e resquícios do absolutismo e da
servidão que caracterizaram os primórdios do capitalismo na Europa e outros
países de passado feudal. No nosso caso, essas amarras são heranças do
colonialismo e da escravidão.
Modernidade líquida
Ao combinar organização do trabalho e
empreendedorismo, o taylor-fordismo foi a base do American way of life, cuja
tradução literal é estilo de vida americano, e se consolidou com toda a força
após a Segunda Guerra Mundial. O modelo americano se impôs como referência de
bem-estar para os países capitalistas ocidentais e asiáticos. Numa sociedade
com pleno emprego, todos os sonhos poderiam ser realizados, com base no
consumismo, na padronização social e na crença nos valores democráticos
liberais. Vendido através dos filmes e do marketing de suas empresas, durante a
Guerra Fria também foi uma arma ideológica e cultural contra antiga União
Soviética e o comunismo. A exclusão dos afrodescendentes dos direitos civis e a
histeria anticomunista promovida pelo macarthismo foram a face mais perversa da
moeda.
No plano político e ideológico, se o
americanismo foi uma resposta capitalista bem-sucedida à esquerda
revolucionária e ao modelo do “socialismo real”, hoje as suas bases objetivas,
a grande indústria mecanizada e o fordismo, acabaram ultrapassadas pelos novos
sistemas de produção flexíveis, a automação, a robotização e outros elementos
da revolução tecnológica em curso no mundo. Isso desestruturou as classes
sociais da sociedade industrial e criou uma sociedade pós-moderna, líquida e
volátil, como destacou o filósofo Zygmunt Bauman (1925-2017) ao definir o mundo
globalizado.
Assim como o capitalismo nos seus primórdios,
essas mudanças desorganizaram todas as esferas da vida social, do amor ao
trabalho, pois o sujeito sociológico moderno, com forte identidade de classe, é
um ser em extinção. Os indivíduos passaram a ser moldados e a moldar o mundo de
acordo com a sua personalidade. O estilo de vida, aquilo e o modo como consome,
o deslocamento fácil e rápido, e a mudança na forma de trabalho, com redução de
salários e insegurança no emprego, a “uberização” e o empreendedorismo, são as
novas bases sociais e econômicas do americanismo.
Fluidez, movimento e imprevisibilidades agora
são as características da vida em sociedade e vem tendo forte impacto na
política. No nosso caso, o fato de a China ter tomado o lugar dos Estados
Unidos como principal parceiro comercial não deve alimentar ilusões de que
podemos atrelar o nosso desenvolvimento ao capitalismo de estado, fora dos
marcos da democracia representativa e do americanismo. O resultado dessa
equação seria o autoritarismo. Muito menos, trocar o Ocidente pelo Oriente nas
relações internacionais, por causa dessa balança de comércio exterior. O que
está acontecendo na política brasileira reflete as circunstâncias das mudanças
no mundo, que precisam ser mais compreendidas. Até porque, se esse for o novo
caminho a trilhar, uma eventual derrota de Biden terá consequências
catastróficas para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
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