Abandono de obras da Copa é sinal de governança frágil
O Globo
Não faltou dinheiro para mobilidade urbana.
Faltaram planejamento, fiscalização e cobrança de resultados
Passados dez anos da Copa do Mundo no Brasil,
38% dos projetos de mobilidade urbana pensados para o torneio foram abandonados
ou concluídos apenas parcialmente. Por ser um retrato do que costuma acontecer
no país, o dado é uma oportunidade para uma reflexão que vá além do debate
sobre o legado de eventos esportivos. Identificar as causas do baixo índice de
execução de obras é primordial para que o Brasil deixe de ter uma infraestrutura sofrível,
mesmo na comparação com países no mesmo estágio de desenvolvimento.
No período anterior à Copa, prefeitos e governadores puseram projetos de mobilidade urbana na lista de metas. Nem todos eram essenciais para receber os torcedores, mas a demanda tornou evidente a deficiência nas capitais que hospedariam os jogos. De acordo com estudo do economista Cláudio Frischtak, para equiparar o transporte público das 15 principais regiões metropolitanas brasileiras ao de Santiago, no Chile, ou da Cidade do México, seria necessário investir R$ 295,5 bilhões.
Não chega a ser novidade que o Brasil investe
pouco em infraestrutura, 2% do PIB, levemente acima do necessário para cobrir a
depreciação. As obras abandonadas da Copa revelam outro obstáculo. Falta de
recursos não era empecilho, pois os projetos contavam com linha especial de
financiamento do BNDES. Eram considerados prioritários já em 2014. Os prefeitos
e governadores que se alternaram no poder de lá para cá tiveram dez anos para
concluí-los. Por que falharam? Porque a governança do investimento público no
Brasil é uma vergonha.
Nos países com as melhores práticas, governos
promovem análises técnicas aprofundadas para determinar prioridades. Uma vez
decididos os alvos, é feito um planejamento cuidadoso, elaborado um projeto
detalhado e são estabelecidas programação e licitação. A execução é fiscalizada
e, depois da entrega, é feita avaliação dos resultados.
No Brasil, tudo é decidido com base numa
mistura de clientelismo e oportunismo político. Um estudo do Tribunal de Contas
da União (TCU) de 2019 revelou que 37,5% de 38.412 obras financiadas pelo
governo federal estavam paradas. A regra é a diferença descomunal entre o
orçamento inicial e o preço final, com suspeitas frequentes de corrupção. As
taxas de execução são baixas, como mostram as experiências das várias versões
do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
Por tudo isso, parte considerável do pouco
que o Brasil investe em infraestrutura é desperdiçada. Dos projetos de
mobilidade da Copa abandonados, o mais caro foi o VLT de Cuiabá, que consumiu
R$ 1 bilhão em dinheiro financiado pela Caixa. Ao todo, 40 trens e 24
quilômetros de aço foram comprados. Depois o governo estadual decidiu trocar os
trens por um projeto de BRT. Como revelou
reportagem do GLOBO, os vagões até hoje se deterioram perto do aeroporto da
capital.
As maiores vítimas do descalabro com os
investimentos são os mais pobres, usuários de transporte público forçados a
perder um tempo desnecessário no trajeto entre casa e trabalho ou moradores de
regiões com serviços de água e esgoto deficitários. São os mais pobres também
os mais prejudicados pelo baixo crescimento econômico. Vários trabalhos
acadêmicos comprovam a relação entre melhoria de infraestrutura e crescimento.
Em 2014, o Brasil levou 7x1 nos gramados. Na infraestrutura, é um 7 x 1 todo
ano.
Venda da Sabesp é vital para saneamento
atrair recursos privados
O Globo
Governo paulista acerta ao adotar modelo que
exige maior capacidade financeira dos principais investidores
O detalhamento do modelo de privatização da
Companhia de Saneamento Básico de São Paulo (Sabesp), maior empresa do setor no
país, ajuda a consolidar o Novo Marco Legal de Saneamento, aprovado em 2020 com
a meta de universalizar serviços de água e esgoto no Brasil até 2033. Não é um
objetivo fácil de alcançar diante do estágio vergonhoso dessa infraestrutura vital
para a saúde, com efeito negativo no crescimento.
Há quatro anos, quando o Novo Marco entrou em
vigor, 35 milhões não tinham acesso a água tratada, e 100 milhões, quase metade
da população, estavam desconectados da rede de esgoto. Do esgoto coletado,
apenas 50% do volume era tratado. Como os investimentos na atividade são de
média e longa maturação, esses índices continuam como referência. O Brasil é um
país de renda média, com PIB entre os dez maiores do mundo e indicadores de
saneamento de países miseráveis.
Sempre houve resistência corporativa à
entrada de grupos privados nas empresas de saneamento. A concessão da Cedae, no
Rio de Janeiro, representou um primeiro avanço importante, e os benefícios já
se fazem sentir. O andamento da privatização da Sabesp contribuirá para reduzir
as resistências. Para isso, é preciso que as companhias privatizadas mostrem
resultados.
A oposição à venda do controle da Sabesp
argumenta que a empresa é rentável. Suas ações há tempos são negociadas em
Bolsa, inclusive em Nova York, e ela presta contas ao mercado como toda empresa
aberta. A questão, porém, não se resume à situação atual. É preciso levar em
conta o esforço de investimento necessário para manter o serviço em 375 cidades
— entre elas São Paulo — e atingir a meta de universalizá-lo em todo o estado
até 2033.
Os grupos privados que comprarem o controle
da Sabesp receberão uma empresa com 86,1 mil quilômetros de redes de
distribuição de água e 61,4 mil quilômetros de malha de coleta de esgoto.
Precisarão administrá-la com eficiência para reduzir a tarifa cobrada na água
em 1% no consumo residencial, 0,5% no comercial ou industrial e 10% para
beneficiários de programas sociais. Não haverá, como argumentam os opositores
da privatização, reajustes insuportáveis. Os recursos para redução das tarifas
sairão de um fundo que receberá 30% do valor obtido pelo governo com a
privatização e será mantido com os dividendos pagos pela empresa ao estado, que
continuará sócio.
O governo de São Paulo acerta ao tomar
cuidado com a qualificação do futuro controlador da Sabesp. A oferta das ações
será feita em dois blocos, um para grupos interessados em ser acionistas de
referência, outro para investidores em Bolsa. Antes do leilão, os candidatos a
acionista de referência, que administrarão a companhia, terão de comprovar ter
em caixa R$ 8,5 bilhões, estimados para arrematar 15% da empresa, com todas as
devidas garantias.
A importância estratégica dessa privatização
justifica todas as precauções. Depende do seu êxito o interesse de investidores
em aumentar sua participação no saneamento, essencial para o país sair da atual
situação vergonhosa.
Vaivém na Petrobras mostra falta de planos
Folha de S. Paulo
Crise dos dividendos, que durou um mês e
meio, mostrou que governo Lula tem ímpeto intervencionista e poucas convicções
Desde o início de março e ao longo de um mês
e meio, o governo Luiz Inácio Lula da
Silva (PT)
envolveu a si próprio e a Petrobras em
tumulto gratuito, sem motivo relevante para o país —mas custoso.
A política menor, a falta de diretrizes
claras, a indisciplina de altos assessores presidenciais e a ameaça de
intervenções estatais indevidas baixaram o crédito da estatal e o da
administração pública.
No dia 7 do mês passado, por ordem do
presidente e de ministros, o Conselho de Administração da petroleira decidiu que
não distribuiria aos acionistas o lucro remanescente de 2023.
Decisões dessa espécie devem levar em
consideração o melhor interesse econômico das companhias, além de estatutos e
leis. O que houve, no entanto, foi o intervencionismo tosco do Planalto,
aparentemente devido à crença de que a estatal precisaria de recursos para
investimentos mais ambiciosos.
Finalmente, na última quinta-feira (25), o
conselho deliberou
pela distribuição de 50% dos dividendos —o que beneficiará, em
particular, o Tesouro Nacional.
Desde o início de 2023, o ministro de Minas e
Energia, Alexandre Silveira, e o presidente da Petrobras, Jean Paul Prates,
disputam o poder sobre a empresa. Ademais, Lula deseja que a petroleira
colabore com um vago plano de política industrial, com mais aportes nas áreas
de preferência do presidente da República.
As peripécias dos dividendos foram episódios
mais agudos desses conflitos. Intrigas, ataques públicos e sabotagens
evidenciaram a desordem político-administrativa.
O efeito imediato da baderna foi a
desvalorização da companhia. As consequências mais difusas foram o descrédito
extra do governo e o aumento da percepção do risco de intervenção na economia.
Dias antes do início da crise, Lula dissera
que "empresas brasileiras precisam estar de acordo com aquilo que é o
pensamento de desenvolvimento do governo".
A intervenção do ministro da Fazenda, Fernando
Haddad, contribuiu para a contenção de danos. Haddad, além do mais,
tinha interesse em nomear um conselheiro e no pagamento de dividendos, receita
para o combalido Tesouro Nacional. Prates não foi demitido. Ameaças permanecem.
Silveira faz questão de dizer que Prates
mudou de orientação e obedeceria mais agora aos desejos presidenciais. O
ministro, que se oferece como a voz de Lula, perdeu algum poder no conselho,
porém.
Resta saber o que pretende o presidente da
República, ainda inconformado com a ideia de racionalidade econômica na
Petrobras, direção que beneficia o país e, por consequência, o próprio governo.
Os planos seguem obscuros.
Violência vexatória
Folha de S. Paulo
Abuso de força policial mancha país em
pesquisa de violação de direitos humanos
Provocam mais vergonha que surpresa as
menções ao Brasil no documento "O Estado dos Direitos
Humanos no Mundo", divulgado nesta semana pela Anistia
Internacional. A organização independente reúne dados conhecidos nessa seara,
mas, como os põe em perspectiva comparada, consegue atribuir-lhes novo
significado.
Desigualdade, racismo, violência de
gênero, insegurança alimentar, baixa frequência escolar, perseguição a
ativistas, privações impostas a povos indígenas e violações graves cometidas
por agentes de segurança estão entre as mazelas que deixam o Brasil em destaque
nesse relatório da infâmia global.
Em relação ao último ponto, Jurema Werneck,
diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil, define como descontrolado o
uso da força policial, sobretudo devido à falta de punições para abusos
cometidos contra a população.
A organização chama a atenção para a situação
de São Paulo,
do Rio de
Janeiro e da Bahia, estados que somaram pelo menos 394 mortes em
operações policiais realizadas de julho a setembro de 2023. Não há
como minimizar o escândalo representado por essa cifra num país distante de
qualquer guerra.
Os óbitos, contudo, são apenas parte da
história. Prisões arbitrárias, tortura e entrada ilegal em domicílios
constituem outros elementos desse quadro, que ainda se completa com efeitos
colaterais como a suspensão de aulas e consultas médicas devido a tiroteios.
Líderes políticos de diferentes origens
ideológicas têm preferido se omitir diante desses abusos, como se as violações
de direitos fossem resposta aceitável contra a criminalidade exasperante.
São difíceis os progressos da racionalidade
ante o apelo populista da abordagem linha-dura. Foi o que se viu com Tarcísio de
Freitas (Republicanos), governador de São Paulo que resistiu a
dar continuidade ao bem-sucedido programa de câmeras corporais no
estado e acabou por se comprometer com o Supremo Tribunal Federal a seguir com
a instalação dos aparelhos.
Não se trata de panaceia, mas é imperativo adotar medidas que tirem o país da posição vexatória em que se encontra.
A canelada do governo no Congresso
O Estado de S. Paulo
Ao recorrer ao STF contra a desoneração da
folha, governo demonstra não aceitar derrota e compra briga inútil com o
Legislativo no momento de regulamentar a reforma tributária
De maneira intempestiva, o governo adotou
mais uma manobra arriscada ao pedir ao Supremo Tribunal Federal (STF) a
suspensão da desoneração da folha de pagamento de 17 setores da economia e dos
municípios. Ainda que saia vencedor, a estratégia pode custar caro ao
Executivo, especialmente no momento em que acaba de enviar a regulamentação da
reforma tributária ao Congresso.
O Executivo sempre bateu na tese de que o
Legislativo deveria analisar o impacto financeiro da desoneração da folha, bem
como medidas que compensassem as perdas de arrecadação que a medida
acarretaria. No entanto, ausentouse deliberadamente do debate com o
Legislativo, que aprovou a prorrogação com apoio da ampla maioria dos
parlamentares, inclusive de boa parte da base aliada.
Sem saída, o governo vetou a proposta, mas o
veto foi derrubado sem qualquer dificuldade. Ainda assim, o Executivo insistiu
no erro e publicou uma medida provisória (MP) para reonerar a folha – em pleno
recesso parlamentar, no dia seguinte à promulgação da lei e logo após a
aprovação de praticamente toda a agenda econômica proposta pelo ministro da
Fazenda, Fernando Haddad.
O ato, por óbvio, foi interpretado como uma
afronta. Não faltaram parlamentares a cobrar do presidente do Senado, Rodrigo
Pacheco (PSD-MG), que devolvesse a proposta ao Executivo sem sequer analisá-la.
O diplomático presidente do Senado, no entanto, atuou para esfriar os ânimos de
parte a parte.
Em vez de devolver a MP, Pacheco concedeu
tempo ao governo para que enviasse um projeto de lei para tratar do tema e
tentasse chegar a um meiotermo com o Congresso e os setores envolvidos. Se isso
não ocorreu até agora, não foi por teimosia dos parlamentares, mas
principalmente porque a articulação política do governo falhou ao entrar
atrasada no debate com o Legislativo.
O melhor, nesse caso, seria reconhecer esse
erro e construir uma solução em conjunto com o Congresso. Ao ajuizar a ação
nesta semana, no entanto, a Advocacia-Geral da União (AGU) surpreendeu todos e,
aparentemente, a equipe econômica não soube calcular as consequências políticas
dessa decisão.
Afinal, a petição ataca justamente alguns dos
atos de Pacheco, como a prorrogação parcial de trechos da polêmica medida
provisória editada no fim do ano passado. O ato do presidente do Senado, em si,
até poderia ser questionado sob o ponto de vista jurídico, mas a ação da AGU
insulta não apenas um aliado, mas o principal avalista da tentativa de
construção do acordo entre governo e Congresso.
Sentindo-se traído, o presidente do Senado
anunciou que entrará com recurso no STF contra a decisão do ministro Cristiano
Zanin, que prontamente atendeu ao pedido da AGU e suspendeu a desoneração em
caráter liminar. Os ministros Flávio Dino e Gilmar Mendes também já se
manifestaram pela manutenção da decisão de Zanin, o que talvez dê ao governo a
ilusão de que poderá vencer essa batalha.
Em nota divulgada após a decisão, Pacheco
disse que o governo “erra ao judicializar a política e impor suas próprias
razões, num aparente terceiro turno de discussão sobre o tema da desoneração da
folha de pagamento”. “Só quando a discussão política é exaurida que se recorre
à Justiça”, disse o senador. Ele tem toda a razão, mas o governo, sem maioria
no Congresso, parece incapaz de aceitar essa derrota e não hesita em aumentar a
tensão entre os Poderes para fazer valer sua posição.
Arredio a qualquer iniciativa para rever seus
gastos e sabendo dos efeitos limitados das medidas de recuperação de receitas,
o governo elegeu a desoneração como o bode expiatório do alcance da meta
fiscal. Independentemente do que venha a ocorrer, o governo terá de lidar com
as sequelas políticas de mais uma decisão desastrada.
Pacheco, por exemplo, que não é nenhum
fiscalista de carteirinha, já fez a pergunta retórica à qual o governo não tem
como responder. “Além de arrecadar, qual a proposta de corte de gastos para
poder equilibrar as contas?”, questionou o senador. É algo que todos os que se
preocupam com o futuro do País gostariam de saber.
Lei não se negocia; cumpre-se
O Estado de S. Paulo
Em vez de simplesmente fazer o controle de
constitucionalidade da lei do marco temporal, o STF prefere abrir um processo
de ‘conciliação’, tarefa eminentemente política
A propósito da demarcação de terras
indígenas, em toda a existência da Nova República vigorou a tese do marco
temporal, fixada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2009: os povos
indígenas só poderiam reivindicar as terras que ocupavam (ou, no mínimo, disputavam)
na data de promulgação da Constituição. Em setembro de 2023, o STF reverteu sua
própria jurisprudência e derrubou a tese. Antes que a decisão fosse publicada,
no entanto, o Congresso aprovou uma lei normatizando o marco temporal. Partidos
e organizações civis entraram com processos questionando a sua
constitucionalidade. Agora, o relator das ações, ministro Gilmar Mendes,
suspendeu-as e abriu um processo de “conciliação”, convocando os autores das
ações, os chefes do Executivo e do Legislativo, a Advocacia-Geral da União e a
Procuradoria Geral da República a apresentarem “propostas”.
Não é a primeira vez que o STF lança mão
deste expediente exótico. Recentemente, o governo entrou com uma ação
questionando a constitucionalidade da lei que regulamentou a desestatização da
Eletrobras. Segundo a lei, nenhum acionista, seja qual for sua participação
acionária, pode ter mais que 10% das ações com direito a voto, conforme o
modelo de corporation. Ocorre que a União, ao invés de vender suas ações, optou
por manter 42% do capital, e o governo reivindica um poder de voto proporcional
a essa participação. Ou seja, a União, que vendeu o seu controle para novos
acionistas, agora quer anular as regras estabelecidas por ela mesma. Diante de
um ato jurídico perfeito, o STF nem sequer deveria ter reconhecido a ação. Ao
invés disso, porém, a Corte estabeleceu uma “negociação” entre o governo e a
Eletrobras.
A “mesa de conciliação” sobre o marco
temporal é ainda mais surreal, porque entre as partes de um suposto litígio
constam os próprios chefes das Casas Legislativas. Segundo o ministro, é
preciso “disposição política” para resolver a questão. Ora, a aprovação da lei
seguiu os ritos, passou pelas comissões e pelos plenários, onde foi aprovada
pelas devidas maiorias dos parlamentares. Que outra “disposição política” pode
haver além dessa? Que tipo de “acordo” o ministro espera de uma negociação com
representantes do Executivo e ONGs? Acaso os presidentes da Câmara e do Senado
devem chegar a uma solução de compromisso e reescrever a lei de próprio punho?
Esse é só um aspecto da confusão
institucional fabricada pela própria Corte. Impaciente com o contrato social
consagrado na Constituição e desdobrado nas leis, o STF parece não se resignar
à sua condição de intérprete e quer ser reformador, avançando sobre pautas
legislativas como a descriminalização das drogas, o aborto ou a regulação das
redes digitais.
O caso do marco é exemplar. A Constituição
reconheceu os direitos dos indígenas sobre as terras que “tradicionalmente
ocupam” (verbo no presente, não no passado nem no futuro). Para não deixar
dúvida sobre a fixação temporal, o constituinte estabeleceu nas Disposições
Transitórias um prazo de cinco anos para que a União concluísse as demarcações.
Agora que o STF decidiu que o marco
constitucional, ora vejam, viola a Constituição, a consequência seria declarar
a nova lei inconstitucional. É evidente que tal decisão causaria ainda mais
tensão na relação do STF com o Congresso, mas essa perspectiva não deveria ser
pretexto para que a Corte, em vez de cumprir sua função de simplesmente se
pronunciar a respeito da lei, se apresentasse como mediadora de um acordo sobre
essa lei. Ora, a lei só é objeto de negociação no momento em que se discute sua
aprovação no Congresso; uma vez aprovada, a lei deve ser apenas cumprida.
O STF não é câmara de conciliação, muito
menos para negociar direito previsto em lei. A título de, nas palavras do
ministro Gilmar Mendes, evitar “grave insegurança jurídica”, o Supremo colabora
para acentuá-la. Quando um Poder invade a competência de outro, pouco importa o
mérito da sua decisão: há um vício de origem, e a “grave insegurança jurídica”
está instalada.
Disputa política lesa a Petrobras
O Estado de S. Paulo
Governo decide distribuir parte dos
dividendos extras, mas desgaste da Petrobras só aumenta
O governo Lula da Silva voltou atrás e
decidiu distribuir metade dos R$ 43,9 bilhões em dividendos extraordinários da
Petrobras a seus acionistas. O recuo, que fez o valor de mercado da petroleira
voltar a subir, está longe de significar o apaziguamento da celeuma criada há
cerca de um mês e meio, quando a retenção dos dividendos extras deixou
totalmente às claras as fortes divergências e a disputa de poder dentro do
governo.
A contenda não teve vencedores. O ministro de
Minas e Energia, Alexandre Silveira, que defendeu a retenção integral dos
recursos e chegou a criticar aberta e indiscriminadamente a gestão de Jean Paul
Prates na presidência da Petrobras, teve de aceitar a mudança de posição e
passou a adotar silêncio prudente sobre o assunto. Prates, que ficou por um fio
no cargo e chegou a ter substituto sondado – o presidente do BNDES, Aloizio
Mercadante –, continua na presidência, mas em condição ainda mais frágil depois
de toda a exposição.
O episódio serviu apenas para expor a forma
confusa, digressiva e intervencionista com a qual a gestão lulopetista tenta
conduzir a Petrobras, a maior perdedora dessa medição de forças. Lula da Silva
nunca fez segredo de seu propósito de fazer da Petrobras um instrumento
financiador das políticas públicas de seu governo. Também não esconde o
desagrado por não conseguir alcançar seu intento com a facilidade que gostaria.
Em mais de uma ocasião, cobrou responsabilidade da Petrobras pelo bem-estar dos
“200 milhões de brasileiros”.
O problema é que não é esse o objetivo da
empresa. Garantir o abastecimento de combustíveis em todo o território nacional
é o mais perto que o estatuto chega de uma questão social. Garantir o bem-estar
da população é dever do governo e para isso pode usar a parte que lhe cabe – a
maior fatia – dos dividendos da empresa. Serão agora em torno de R$ 6 bilhões –
quase um terço dos R$ 21,9 bilhões – que entrarão no caixa do Tesouro tão logo
a assembleia de acionistas aprove a distribuição extra, o que acontecerá sem
percalços dado o interesse dos acionistas e do próprio governo.
Lula da Silva voltou ao poder depois de a
Petrobras passar por uma verdadeira revolução de governança para evitar a
repetição da rapinagem comprovada em atos de corrupção envolvendo executivos da
empresa, políticos e empresários ao longo do mandarinato lulopetista. A
blindagem que a companhia recebeu teve o múltiplo objetivo de chancelar a
capacidade técnica e administrativa de seu comando, evitar decisões de cunho
político-partidário, dificultar a interferência do governo em decisões
comerciais e prezar a boa gestão.
Algumas dessas defesas estão sendo rompidas. Para agradar ao chefe, Prates modificou os critérios de reajuste de preços dos combustíveis. Diz não ver necessidade de aumento de preços mesmo com a tensão elevada no Oriente Médio – e a consequente alta do petróleo – porque os preços foram “abrasileirados”, uma aberração em se tratando de uma commodity com preço formado no mercado internacional. Mas, para Lula, o prejuízo que isso causa à Petrobras não parece relevante.
Liminar sobre desonerações é "virada de
mesa"
Correio Braziliense
Em se tratando de uma decisão que havia sido
tomada antes, durante a pandemia, o pedido de liminar soa como uma declaração
de guerra ao Congresso em matéria fiscal, quando começa a tramitar a
regulamentação da reforma tributária
O presidente do Congresso Nacional, senador
Rodrigo Pacheco (PSD-MG), recorreu ao Supremo Tribunal Federal (STF) contra a
decisão do ministro Cristiano Zanin que revogou a desoneração da folha de
pagamento, prorrogada pelo Legislativo até 2027. Pacheco argumenta que as
premissas que embasaram o pedido da AGU e foram aceitas por Cristiano Zanin não
são verdadeiras. O projeto aprovado pelo Congresso prorroga a desoneração da
folha de pagamento dos 17 setores, mas teria, sim, segundo Pacheco, uma
estimativa de impacto financeiro-orçamentário da medida, como prevê a
Constituição.
A decisão de Zanin está sendo submetida a
referendo no Plenário Virtual do Supremo desde sexta-feira. A liminar foi
concedida na ação direta de inconstitucionalidade em que o presidente da
República, Luiz Inácio Lula da Silva, questiona a validade de dispositivos da
Lei nº 14.784/2023. O ministro do STF suspendeu pontos da lei que prorroga a
desoneração da folha de pagamento de municípios e de diversos setores
produtivos com o argumento de que a norma não observou o que dispõe a
Constituição quanto ao seu impacto orçamentário e financeiro.
A queda de braços vem de longe e parecia
superada. Em 2023, para equilibrar as contas públicas, o presidente Lula editou
a Medida Provisória nº 1.202/2023. O texto previa a retomada gradual da carga
tributária sobre 17 atividades econômicas e a limitação das compensações
tributárias decorrentes de decisões judiciais, além da volta da tributação
sobre o setor de eventos. Na sequência, o Congresso aprovou a Lei nº
14.784/2023, que, além de prorrogar a desoneração desses setores, diminuiu para
8% a alíquota da contribuição previdenciária. Lula vetou vários artigos, mas
esses vetos foram todos derrubados pelo Congresso.
A repercussão negativa da liminar de Zanin
caiu no colo do presidente Lula por duas razões. A primeira foi o próprio
recurso impetrado pela AGU, decisão que já havia deixado Pacheco muito
contrariado porque foi tomada sem que os líderes que negociaram a suspensão da
sessão do Congresso que apreciaria os vetos do presidente Lula às emendas
parlamentares ao Orçamento fossem informados. Isso passou a impressão de que o
governo negocia como quem usa um porrete com luvas de pelica.
A segunda foi a decisão ter sido tomada por
Zanin, ex-advogado e ministro indicado pelo próprio presidente Lula, o que foi
interpretado no Congresso como resultado de uma interferência direta do chefe
do Executivo junto ao ministro. Institucionalmente, porém, o fato de Zanin ser
o relator é uma decorrência do regimento do Supremo, que estabelece as regras
para distribuição dos processos. E o Executivo tem todo o direito de questionar
a constitucionalidade de qualquer decisão do Congresso.
Mas em se tratando de uma decisão que já
havia sido tomada antes, durante a pandemia, e que foi apenas prorrogada pelo
Congresso, depois de sucessivos embates entre o governo, nos qual os vetos
foram todos derrubados por maioria acachapante, o pedido de liminar soa como
uma declaração de guerra ao Congresso em matéria fiscal, quando começa a
tramitar a regulamentação da reforma tributária.
Segundo Pacheco, Câmara e Senado trabalharam desde a transição de governo para estimular a arrecadação de impostos e o crescimento da economia, o que proporcionou recordes sucessivos de arrecadação até agora. O governo deveria enfrentar a questão com um corte inteligente de gastos e não confrontando o Congresso, que não pretende aumentar a carga tributária existente. Pelo contrário, a tendência do Legislativo é reduzir os impostos.
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