O Globo
Nada é tão ruim que não possa evoluir para
péssimo. À direita, uma prefeita joga livros no lixo; à esquerda, uma senadora
tenta encarecê-los
Quando ainda nem sonhava vir a ser cancelado
por gente com menos de uma migalha de seu talento, Monteiro Lobato escreveu que
“um país se faz com homens e livros”. Hoje, o aforismo teria de ser reescrito:
“Uma nação se faz com criaturas humanas e seus saberes”. Tanto o macho da
espécie como metonímia para a Humanidade quanto as folhas de papel, cortadas e
encadernadas, já tiveram melhores dias.
O último ocupante da Presidência da
República, desde FH, a demonstrar ter tido contato imediato e proveitoso com
livros foi Michel Temer.
Jair Bolsonaro lia, no máximo, passagens bíblicas e minutas de golpe — eclético, chegou a indicar a seguidores as obras de Churchill, Brilhante Ustra e Olavo de Carvalho.
Dilma Rousseff era capaz de citar alguma
coisa de orelha — sabia que Proust tinha a ver com madeleines. Enquanto não lhe
era possível estocar vento, dizia estocar livros — sem, entretanto, conseguir
mencionar um título sequer dos que estivesse lendo.
Lula afirmou
ter lido muito na prisão — certamente mais que em todo o tempo que passou fora
dela. Teria ido de “Um defeito de cor” (972 páginas) a “Grande sertão: veredas”
(942 neologismos catalogados), passando pelo lirismo de “O amor nos tempos do
cólera”, pela inteligência de “Sapiens” e pelo humor involuntário da
hagiografia de Carlos Marighella. A julgar pelas ideias que professa e pela
forma de expressá-las, só este último deixou marcas.
O atual presidente já declarou ter preguiça
de ler e que a leitura lhe dá sono. Como sua decantada sabedoria política vem
muito mais da intuição que da instrução, ele parece não reconhecer a
importância da leitura na formação do pensamento. Daí a bronca no ministro da
Fazenda — que, “em vez de
ler um livro, tem que perder algumas horas conversando no Senado e na Câmara”.
(O verbo “perder” deve ter sido ato falho.)
Talvez Lula ignore que a competência e o
poder de persuasão de seu ministro tenham relação com tudo o que ele leu e
escreveu. Talvez queira resolver o problema do analfabetismo funcional dos
nossos estudantes adaptando à leitura o que já disse da alimentação: “Se tem
gente analfabeta, [é porque] tem gente lendo demais”.
Relatório de 2021 do estudo Pirls (Progress
in International Reading Literacy Study) coloca os brasileiros (da 4ª série do
ensino fundamental) na rabeira do ranking quanto às habilidades de articulação
de ideias e interpretação e análise crítica de texto — atrás de seus pares de
Azerbaijão, Uzbequistão e Kosovo, à frente apenas de iranianos, jordanianos,
egípcios e sul-africanos. É o aluno que não lê; quando lê, não entende; quando
entende, não avalia criticamente ou forma opinião.
Mas nada é tão ruim que não possa evoluir
para péssimo. À direita, uma prefeita joga livros no lixo; à esquerda, uma
senadora tenta encarecê-los. Um Projeto de Lei agora ressuscitado propõe fixar
o preço do livro em todos os seus formatos e limitar descontos. A intenção é
das melhores: proteger as pequenas livrarias das práticas agressivas dos
grandes distribuidores (leia-se Amazon). O resultado será o livro ainda mais
inacessível.
Já dizia o slogan da editora Civilização
Brasileira: “Quem não lê, mal ouve, mal fala, mal vê”. Na lixeira ou nas
nuvens, decorando estantes ou cabulando penas, o livro continua sendo uma
“felicidade clandestina” para poucos que ainda insistem em ouvir, falar e ver.
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