Ainda é urgente conter violência contra as mulheres
O Globo
Nos 18 anos da Lei Maria da Penha, questão
virou assunto de Estado. Mas é preciso avançar muito mais
Não há como não reconhecer que a Lei Maria da Penha, que completou 18 anos na quarta-feira, representa um avanço no combate à violência contra a mulher. Sancionada em 2006, ela foi batizada com o nome da farmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes, que se tornou paraplégica após ser baleada nas costas durante um assalto forjado pelo marido. Como se a violência fosse pouca, dias depois ele ainda tentou eletrocutá-la no banho. A demora para julgar o caso rendeu ao Brasil uma condenação na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA.
Em quase duas décadas, a Lei Maria da Penha
permitiu que as vítimas tivessem instrumentos mais robustos para enfrentar seus
agressores. Como mostrou reportagem do GLOBO, uma de suas consequências foi o
aumento do número de medidas protetivas de urgência, que impõem restrições a
potenciais agressores se aproximarem das vítimas.
Segundo dados do Fórum Brasileiro de
Segurança Pública, no ano passado a Justiça recebeu 663.704 pedidos de medidas
protetivas, dos quais 540.255 (81%) foram concedidos. Em 2022, a Justiça havia
recebido 547.201, dos quais 426.297 (78%) foram deferidos. Pela lei, a medida,
que pode ser pedida em delegacias especializadas, centros de referência de
violência contra a mulher, juizados de violência doméstica e ainda de forma
on-line, precisa ser analisada em até 48 horas. O não cumprimento pode ser
punido com prisão de seis meses a dois anos.
A promotora de Justiça Fabiana Dal’Mas, do
Ministério Público de São Paulo, afirma que um dos maiores avanços da Lei Maria
da Penha foi retirar o tema da violência contra a mulher da esfera privada para
tratá-lo como um assunto de Estado. “O coração da Lei Maria da Penha é o
aspecto preventivo. Você tem de falar em educação sexual, em educação de
gênero. Quando o feminicídio acontece, é porque o Estado falhou na prevenção”.
Apesar do avanço, o Brasil ainda precisa
fazer mais para conter a violência contra a mulher. O Anuário Brasileiro de
Segurança Pública 2024 expôs o tamanho do desafio, uma vez que os números ainda
são alarmantes — e muitos estão em curva ascendente. No ano passado, foram
registrados no país 1.467 feminicídios (um aumento de 0,8% em relação ao ano
anterior). Significa que quatro mulheres são assassinadas por dia no Brasil. As
tentativas de feminicídio também impressionam, com 2.797 ocorrências, quase oito
por dia. O número representa aumento de 7,1% em relação ao ano anterior.
Após 18 anos da promulgação da lei, é preciso
que a sociedade se pergunte por que, apesar de uma legislação avançada, os
casos de violência não arrefecem. A própria vítima que inspirou a lei hoje
precisa de proteção policial devido às ameaças de morte disparadas nas redes
sociais. “Se a violência contra a mulher é um fenômeno social, que impacta
milhares de meninas e mulheres em nosso país, não há mais como conceber
qualquer tipo de alienação masculina”, diz a promotora de Justiça Silvia
Chakian, do Ministério Público de São Paulo. “Exige-se que aquele que é parte
do problema também seja parte da solução.”
Belém tem deficiências para sediar a COP 30,
mas deve evitar erros do Rio
O Globo
Na Olimpíada de 2016, previsões otimistas
inflaram ampliação de hospedagem e criaram ociosidade
Como qualquer cidade que recebe um grande
evento, Belém, que sediará a Conferência do Clima (COP30) entre 10 e 21 de
novembro do ano que vem, enfrenta desafios para acomodar os milhares de
participantes — são esperados entre 40 mil e 60 mil. Só os integrantes das
equipes da ONU e
das delegações dos países devem chegar a 7 mil. Segundo a Secretaria
Extraordinária para a COP30 do governo federal, a capital do Pará reúne hoje
cerca de 18 mil leitos, o que na melhor das hipóteses representa menos da
metade do necessário.
O problema não diz respeito apenas ao número,
mas também à qualidade das habitações. Estima-se que a conferência demandará 14
mil vagas nas categorias quatro e cinco estrelas. Hoje Belém tem apenas dois
hotéis cinco estrelas em pleno funcionamento—outros dois deverão ser entregues
por meio de retrofit de prédios antigos. A despeito do desafio, o governador do
Pará, Helder Barbalho, garante que a situação está sob controle.
Evidentemente, esse não é um problema apenas
para Belém, cidade de 1,3 milhão de habitantes. Acomodar até 60 mil pessoas
durante um megaevento seria um desafio para qualquer capital brasileira, mesmo
as que dispõem de boa infraestrutura hoteleira, como Rio e São Paulo. Por isso,
é acertada a estratégia dos organizadores de buscar soluções temporárias.
Uma das ideias cogitadas é a utilização de
transatlânticos, como aconteceu na Olimpíada do Rio. O plano é que pelo menos
dois fiquem ancorados na Baía de Guajará. Eles poderiam receber de 5 mil a 6
mil pessoas na categoria quatro e cinco estrelas. Outra hipótese levantada é o
uso de navios de expedição à Antártica, que poderiam oferecer até 300 cabines
de luxo. Mas para que grandes navios cheguem ao Porto de Belém, será necessário
fazer obras de dragagem, que já estão sendo providenciadas.
A escolha de Belém como sede da COP30 no
Brasil foi uma decisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ela foi
anunciada em maio de 2023 e confirmada apenas em dezembro. Por óbvio, os prazos
para melhorar a infraestrutura são exíguos. E a hospedagem não é a única
preocupação. Belém tem sérios problemas ambientais, especialmente na área de
saneamento, o que certamente chamará a atenção durante a conferência. Mesmo com
investimentos públicos de R$ 4 bilhões, não será possível resolver pendências
de décadas.
O que Belém não pode fazer é repetir os erros
do Rio ao sediar a Olimpíada de 2016. O número de quartos na cidade foi
ampliado demasiadamente, seguindo as demandas do Comitê Olímpico Internacional
(COI). A expectativa otimista de aumento no número de visitantes depois de
terminado o evento acabou não se confirmando.
Dentro do possível, Belém deve aproveitar o
megaevento para realizar obras que melhorem a qualidade de vida de seus
moradores, evitando estruturas caras que possam ficar ociosas após a
conferência.
Temor de recessão nos EUA ainda é prematuro
Folha de S. Paulo
Após reação exagerada, mercados se acalmam;
juros menores lá facilitam o trabalho do BC aqui, mas governo tem de ajudar
Nos últimos dois meses consolidou-se uma
mudança relevante no quadro econômico internacional. Evidências de
desaceleração na atividade e preços sob controle devem levar a menores taxas
de juros nos Estados
Unidos, o que é notícia positiva, desde que não haja uma recaída
recessiva.
De fato, no período houve notável redução no
ímpeto da inflação,
que parece agora se aproximar da meta de 2% ao ano perseguida pelo Federal
Reserve (Fed),
o banco central americano.
O crescimento do Produto Interno Bruto ainda se mantém perto de 2%, mas com
cada vez menos exuberância.
A combinação vinha sendo bem recebida, mas
os resultados
mais recentes do mercado de trabalho sugerem que pode estar
aumentando o risco de uma recessão.
Na leitura relativa a julho, divulgada em 2
de agosto, pela primeira vez em vários meses a criação de novas vagas ficou
abaixo das expectativas. Mais preocupante, no mês o desemprego subiu de 4,1%
para 4,3%. Numa média de três meses, a taxa cresceu 0,5 ponto percentual, algo
que no passado se mostrou compatível com retração da atividade econômica.
Esse foi um dos motivos para a reação
abrupta dos mercados financeiros, com queda notável e rápida nas
Bolsas de Valores pelo mundo e ampliação da expectativa de cortes mais rápidos
dos juros.
Nos dois dias seguintes à divulgação da alta
no desemprego, as ações americanas caíram cerca de 5%, o dólar perdeu
força ante outras divisas e a taxa de juros de prazo mais longo, dez anos,
passou de 4% para 3,8% anuais.
Tais movimentos já foram em parte revertidos,
o que mostra seu caráter efêmero e especulativo. Outros indicadores, como a
geração de renda das famílias e a situação financeira das empresas, indicam ser
prematuro concluir que uma recessão se aproxima.
De todo modo, a mensagem de que o dinamismo
excepcional da economia americana possa estar ficando para trás deve ter certa
permanência. Uma consequência por ora favorável é que se consolidou a
expectativa de que o Fed começará a cortar os juros em setembro. As projeções
atuais sugerem redução de até 2 pontos percentuais, para 3,5%, até o final de
2025.
Para o Brasil, trata-se a princípio de um
quadro positivo. Menor restrição monetária global e dólar menos valorizado,
desde que sem recessão, tendem a facilitar o trabalho do Banco Central.
Ao contrário do que se observa nos EUA,
contudo, por aqui a inflação e os juros permanecem com viés altista, pois
persistem a incerteza em relação à gestão autônoma do BC e a gastança no
Orçamento federal. Reduzir essas
fontes de pressão é, pois, urgente.
O público e o privado
Folha de S. Paulo
Gestão federal dá exemplo e contraexemplo de
controle de conflitos de interesse
Não há Estado democrático de Direito sem
transparência. A população precisa ter acesso a informações a respeito do poder
público, tanto para exercer algum controle sobre suas ações como para assegurar
a eficácia de suas medidas.
Mas a transparência não é absoluta. Por
óbvio, nem toda reunião de governo deve ser filmada e divulgada, sob o risco de
afetar a sinceridade e a espontaneidade de servidores, piorando a qualidade do
processo deliberativo.
O grau exato depende, portanto, do tipo de
atividade envolvida, suas especificidades e possíveis repercussões dos atos.
Idealmente, cada setor do poder público deveria obedecer a um conjunto de
regras claras sobre o tema.
Se tal tarefa já é complexa, o desafio fica
ainda maior quando se trata de potenciais conflitos de interesses do
funcionalismo. Recentemente, o noticiário estampou um exemplo e um
contraexemplo de como se deve proceder.
No primeiro caso, o Banco Central anunciou
novas regras para
as reuniões entre seus diretores e agentes do mercado financeiro e
outros grupos. A norma, bastante detalhista, descreve até como deve dar-se o
agendamento.
Se há o risco de que que a burocracia soe
excessiva, ele é amplamente compensado pelo benefício legado à instituição, que
assim se mostra empenhada em aprimorar seu trabalho e sua imagem.
O
contraexemplo vem do governo federal. Sem passar por nenhum tipo de
quarentena, dois funcionários do alto escalão que atuaram na regulamentação de
sites de apostas e deixaram o serviço público foram liberados para trabalhar
como advogados de empresas do setor.
Pode-se considerar que a quarentena é pouco
eficaz. Um intervalo de meses não diminuiria o valor do conhecimento que os
ex-servidores levam para a outra parte.
O que está em jogo, no entanto, são também
atitudes. O Estado precisa deixar claro à sociedade que se preocupa em evitar
relacionamentos promíscuos entre agentes públicos e privados.
Essa simples disposição contribui para o fortalecimento das instituições; já ignorar os conflitos de interesse mina seu prestígio.
Uma Previdência mais justa
O Estado de S. Paulo
País precisa de uma nova reforma, e não só
por razões fiscais. É preciso propor mudanças que reduzam iniquidades,
incentivem contribuições e adiem a entrada de beneficiários no sistema
O País terá de discutir uma nova reforma da
Previdência em breve se quiser evitar o colapso do sistema. Alertas como este
já haviam sido feitos recentemente pelo Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea) e pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio
Vargas (Ibre FGV). Nesta semana, um novo estudo do Banco Mundial veio reforçar
essas conclusões.
No estudo, publicado pelo jornal Valor,
as autoras Asta Zviniene e Raquel Tsukada informam que em 2020 o País já tinha
cerca de 15 idosos com mais de 65 anos para cada 100 adultos entre 20 e 64
anos. A relação ainda é considerada relativamente confortável, mas o Brasil
está envelhecendo tão rápido que ela deve dobrar em apenas 23 anos, algo que
levou 62 anos para ocorrer nos países de alta renda.
Manter essa mesma relação entre idosos e
jovens só seria possível se a idade mínima para a aposentadoria fosse elevada a
72 anos em 2040 e a 78 anos em 2060, algo politicamente inviável. Outros países
da América Latina compartilham do mesmo problema, mas o Brasil tem questões
próprias que tornam o desafio ainda maior.
Os pontos destacados pelas autoras vão além
da questão fiscal. Elas buscam expor o quanto o sistema previdenciário tem
reforçado iniquidades. Uma delas é o fato de que o sistema desencoraja um
trabalhador a acumular um tempo de contribuição mais longo, pois isso não se
reflete em um benefício mais elevado. Tampouco há muita diferença nos valores
dos benefícios pagos a quem contribuiu e a quem não contribuiu com o sistema.
Outra é a prática de usar a Previdência
Social para recompensar alguns grupos por desigualdades históricas e
estruturais ou pelas contribuições sociais vinculadas ao ofício. É o que
justifica que mulheres, trabalhadores rurais, professores, profissionais de
saúde e segurança pública e microempreendedores individuais (MEIs) tenham
alguns privilégios, como alíquotas de contribuição mais baixas e critérios de
elegibilidade menos rigorosos.
No entanto, esses objetivos são mais bem
abordados, diz o estudo, “por meio de políticas separadas e especificamente
desenvolvidas para o propósito em questão – sistemas judiciais para tratar da
discriminação, leis de remuneração justa para garantir uma compensação adequada
pelo trabalho e políticas de mercado de trabalho que garantam oportunidades de
mudança de ocupação quando necessárias por motivos de saúde”.
Dado relevante mencionado pelas autoras diz
respeito às desigualdades intergeracionais. Segundo elas, enquanto mais de 40%
das crianças brasileiras vivem e crescem em condições de pobreza, a maioria dos
idosos ocupa o meio da pirâmide de distribuição de renda. Isso ocorre porque o
Benefício de Prestação Continuada (BPC), destinado a idosos pobres como uma
prestação de assistência social, tem limite de elegibilidade por renda per
capita mais alto que o Bolsa Família. Além disso, o valor do BPC, que corresponde
a um salário mínimo, é o dobro do piso do Bolsa Família.
Ao Valor, Matsuda destacou que a
Previdência Social deveria se ater a proteger os idosos de cair em uma situação
de pobreza, e não a reduzir a pobreza como um todo nem a servir como ferramenta
com foco na distribuição de renda ou a resolver outras desigualdades históricas
que o País acumula há décadas.
Intitulado O Sistema Previdenciário
Brasileiro sob a Ótica da Equidade, o estudo cita que, em 2020, apenas 20,7
milhões dos 32,2 milhões de beneficiários de aposentadorias tinham 65 anos ou
mais. Por outro lado, somente 56,4% da população economicamente ativa, ou 51,5
milhões de pessoas, contribuía com o sistema.
Os números evidenciam que há espaço para
adiar a entrada de beneficiários e incentivar trabalhadores a contribuir com o
sistema previdenciário. Mas isso não acontecerá somente com a redução do
desemprego e com o aumento da formalização no mercado de trabalho. Será preciso
promover mudanças profundas no sistema, não apenas por motivos fiscais, mas
para tornar o sistema mais justo para todos.
No caminho certo contra o crime
O Estado de S. Paulo
Megaoperação com bem-sucedida articulação de
autoridades estaduais e federais na Cracolândia desnuda ecossistema do PCC, que
inclui até milícia. Estado agora precisa retomar território
Passadas décadas de abandono da Cracolândia
pelo poder público, as autoridades parecem finalmente ter decidido avançar
sobre a estrutura do crime organizado no centro de São Paulo. Com o uso de mais
inteligência e menos voluntarismo, uma megaoperação liderada pelo Ministério
Público de São Paulo e pela Secretaria da Segurança Pública desnudou o
ecossistema das atividades ilícitas do Primeiro Comando da Capital (PCC) na
região, que, agora, inclui até milícia formada por agentes da Guarda Civil
Metropolitana e policiais. A escolha por ações que atacam as causas, e não as
consequências, desse problema que envergonha e revolta os paulistanos começa a
apresentar seus possíveis primeiros resultados contra os criminosos.
A Operação Salus et Dignitas (saúde e
dignidade, em latim) levou às ruas um grande contingente de policiais, mas não
sem antes realizar um profundo trabalho de investigação. Pela primeira vez, o
Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), sob a chefia
do promotor Lincoln Gakiya, entrou no enfrentamento da facção na Cracolândia e,
acertadamente, tirou o foco dos usuários de drogas e privilegiou a cooperação
entre instituições de Estado. Este talvez seja o maior diferencial entre a ação
deflagrada há poucos dias e operações passadas, quase todas orientadas por
tentativa e erro.
O chamado “fluxo” da Cracolândia, que
perambula pelo centro, é apenas a face mais visível de uma teia criminosa. Ao
sufocar as atividades econômicas ilícitas que mantêm aberta aquela chaga no
coração de São Paulo, as autoridades, enfim, parecem trilhar o caminho certo no
combate ao crime organizado. Houve intercâmbio de informações que envolveu os
Ministérios Públicos Estadual, Federal e do Trabalho, a Secretaria da
Segurança, as Receitas Federal e Estadual, o Ministério do Trabalho e Emprego e
até a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), que ajudou a detectar os
equipamentos usados pelos bandidos para interceptar a comunicação da polícia.
O ecossistema do crime inclui tráfico de
drogas, lavagem de dinheiro, corrupção, comércio ilegal de produtos ilícitos,
comércio de armas, exploração sexual, servidão – com exploração até de trabalho
infantil –, imigração ilegal e crimes ambientais. Ao fim, a ação com 1,3 mil
agentes das Polícias Militar, Civil, Rodoviária Federal e Federal, em mais uma
prova do êxito do esforço conjunto, prendeu três integrantes do PCC e três
milicianos.
Tantos crimes perturbam, mas não surpreendem.
Como escreveram os promotores, “um local sem a presença do Estado se torna
condescendente” com práticas ilícitas. E foi justamente desse tipo de ausência,
seguida de negação, que o PCC nasceu no sistema carcerário na década de 1990 e,
depois, ganhou as ruas, para formar uma poderosa organização financeira e
bélica que pratica crimes mundo afora. Agora, a inépcia do Estado permitiu que
oportunistas fardados passassem a se organizar como máfia. Um grupo com mais de
20 guardas-civis, 3 policiais militares e 1 investigador extorquiu mais de R$ 4
milhões de comerciantes em troca de “proteção” na Cracolândia.
O governador de São Paulo, Tarcísio de
Freitas, reconheceu que, quando há “um problema generalizado, de algum tempo”,
é possível haver “situações de corrupção, de prevaricação e de falha no
exercício do poder de polícia”. Já o prefeito Ricardo Nunes, que defende uma
Guarda Civil forte como um dos motes da campanha à reeleição, correu a dizer
que “desconhece milícia” na cidade. De fato, até agora não havia notícia de
milícias como as do Rio de Janeiro, mas, como mostra a história, não parece
prudente minimizar os riscos.
Ao revelar o ecossistema do crime, a Operação
Salus et Dignitas evidenciou que o Estado precisa retomar o território da
Cracolândia. E o caminho para isso é a manutenção de ações coordenadas de
autoridades de todas as esferas de poder, com investigações que envolvem
inteligência e colaboração. Como sugere o nome da força-tarefa, São Paulo
demanda saúde e dignidade, além de segurança. Essa força-tarefa dá a esperança
de que algo já tenha mudado.
Prejuízo ‘abrasileirado’
O Estado de S. Paulo
Petrobras tem perda bilionária como resultado
do atendimento a desejos do governo
O prejuízo de R$ 2,6 bilhões da Petrobras no
segundo trimestre do ano, uma surpresa para todo o mercado financeiro, que
projetava lucro – menor do que o de períodos anteriores, mas ainda assim lucro
–, foi classificado pela empresa como um resultado “associado a itens não
recorrentes”. O que pesou foram os efeitos da intensa variação cambial no
período e o acordo bilionário fechado com o Conselho Administrativo de Recursos
Fiscais (Carf), o tribunal de recursos para punições aplicadas pela Receita
Federal.
Ambos os motivos remetem, sem muito esforço,
a ações do governo Lula da Silva sobre a empresa. A desvalorização do real,
que, entre abril e junho, bateu nos 11,2%, seria suficiente para justificar –
tanto pelo nível de oscilação quanto pelo tempo – aumento de preços na fonte de
receitas da empresa, os combustíveis. Mas, sob a amarra do governo contra o
impopular aumento, a Petrobras esticou o prazo o quanto pôde e somente em julho
entregou os pontos e reajustou a gasolina e o gás de cozinha.
Desde que decidiu, em março do ano passado,
deixar de seguir a paridade com os preços internacionais, obedecendo a uma
ordem de Lula para “abrasileirar” o preço dos combustíveis, a política de
preços da Petrobras ficou menos previsível e coerente. Se antes era difícil
presumir, por exemplo, o espaço de tempo fixado pela empresa para seguir os
novos valores do petróleo e derivados no mercado internacional, a decisão
passou a ser totalmente arbitrária.
A variação do câmbio, porém, traz custos
impossíveis de serem ignorados, a não ser no universo lulopetista, que vive a
ilusão do país autossuficiente, que desdenha do cenário externo. O resultado
está aí, com o “abrasileiramento” de um balanço que desde 2020, no período
danoso da epidemia de covid, não registrava prejuízo.
Em relação ao acordo no Carf, que garantiu ao
Tesouro o pagamento de R$ 19,8 bilhões pela Petrobras para encerrar processos
administrativos e fiscais, a empresa atendeu aos apelos do governo para ajudar
a melhorar as contas públicas no ano. E foi chamada pelo ministro da Fazenda,
Fernando Haddad, de exemplo a ser seguido. Quando a companhia fechou o acordo,
em junho, a Receita havia informado que não registrara a adesão de nenhum
contribuinte ao programa, uma das principais apostas de aumento de arrecadação
para este ano.
Mas a Petrobras fez a sua parte, mesmo à custa de passar o balanço de azul para vermelho. Para acalmar o mercado, anunciou – sob protestos da poderosa FUP, a federação sindical que recobrou voz de comando sob a gestão lulopetista – a distribuição de dividendos, usando parte da reserva formada com os dividendos extraordinários do ano passado, que o governo reteve. Em comunicado, a FUP reclama que é preciso decidir se a Petrobras vai usar a “renda petroleira” para investimentos ou para pagar dividendos a acionistas “sobretudo privados e internacionais”, propositalmente desconsiderando que a maior fatia vai para o próprio Tesouro. A relação da estatal com seus investidores privados nunca esteve tão esgarçada, o que prejudica sobremaneira a empresa.
Diplomacia enfrenta teste de competência
Correio Braziliense
É fundamental que a chancelaria do presidente
Luiz Inácio Lula da Silva atue de modo a distensionar o ambiente deflagrado na
região
A tensão diplomática que se instalou na
América Latina constitui o desafio mais urgente para a política externa
brasileira. É fundamental que a chancelaria do presidente Luiz Inácio Lula da
Silva atue de modo a distensionar o ambiente deflagrado na região. Para
alcançar esse fim, o Palácio do Planalto e o Itamaraty precisam explicitar
valores dos quais o Brasil não abre mão — entre os quais, o compromisso
inarredável com a democracia e os direitos humanos.
Nem sempre tem sido assim. A escalada
autoritária de Nicolás Maduro na Venezuela, há anos, vem sendo tolerada pela
esquerda brasileira, em particular pelo atual chefe do Planalto. Enquanto
político progressista, Lula pode até declarar simpatia — ainda que muito
questionável — ao chavismo e seus representantes. Mas a partir do momento em
que representa o Estado brasileiro, tem o dever de expressar contundente
repúdio a movimentos antidemocráticos de toda sorte — como perseguição e prisão
de adversários políticos —, bem como manifestar séria preocupação com a crise
política em Caracas.
Foram inadequados, portanto, os comentários
emitidos por Lula dois dias depois do pleito de 28 de julho. "Não tem nada
de grave. Não tem nada de assustador. Tem uma eleição, tem uma pessoa que disse
que teve 41%, teve outra pessoa que disse que teve 50%, entra na Justiça e a
Justiça faz", disse o presidente. Ora, é público e notório que o Poder
Judiciário na Venezuela, cooptado pelo chavismo, carece de credibilidade.
Acreditar que o processo eleitoral no país vizinho está revestido de transparência
e legitimidade, sem uma inequívoca comprovação documental, é mero exercício de
retórica.
Transmite um pouco mais de seriedade a
declaração conjunta de Brasil, México e Colômbia, divulgada na última
quinta-feira, na qual se exige a divulgação das atas de votação do pleito
venezuelano. Passados 14 dias da eleição, não há sinal de que o regime de
Nicolás Maduro pretenda trazer à luz do dia a comprovação de sua vitória nas
urnas. Ante o escapismo de Caracas, cumpre ao governo brasileiro manter posição
intransigente pela preservação do rito democrático, com o devido reconhecimento
tanto do regime chavista quanto de seus opositores.
Firmeza e convicção democrática também devem
ser mantidas com o regime de Daniel Ortega, da Nicarágua. Agiu corretamente o
governo brasileiro ao expulsar a embaixadora nicaraguense, em gesto de
reciprocidade ao ato arbitrário cometido por Manágua em relação ao embaixador
Breno de Souza da Costa. O episódio evidencia como urge ao presidente Lula
corrigir a complacência com Ortega — em 2021, o petista chegou a ponto de
comparar a permanência do ditador latino-americano no poder ao longevo governo
da ex-chanceler alemã Angela Merkel. Máscaras de ditadores não demoram a cair.
Reconhecida como uma das mais qualificadas do mundo, a diplomacia brasileira terá de trabalhar com afinco para evitar que miopias ideológicas levem a posturas equivocadas em contenciosos internacionais. A tensão política na América Latina — onde regimes ultraliberais convivem com esquerdistas — demanda uma política externa equilibrada, técnica e firme, que deixe clara as diretrizes democráticas do Estado brasileiro.
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