PEC que impõe escala de trabalho 4x3 seria um erro
O Globo
Mudança traria mais despesas para empresas,
maior informalidade e queda no rendimento do trabalhador
Não, a sexta-feira não deve ser o novo sábado, como quer a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP). O texto pretende impor uma semana de quatro dias de trabalho e três de descanso (4x3), com redução no limite de horas trabalhadas de 44 para 36, sem aumento da carga diária de oito horas nem redução de salário. Apresentada sem nenhum embasamento técnico, a PEC recolheu assinaturas suficientes para ser discutida, ganhou apoio de ministros, parlamentares e do vice Geraldo Alckmin. Quem defende a mudança parece crer que o avanço da tecnologia permitiria à força de trabalho uma rotina menos intensa, sem perda de produtividade. Imagina que, para dar conta do trabalho, as empresas contratariam mais funcionários, reduzindo o desemprego. Na teoria, parece bonito. Na prática, o resultado seria outro.
Adotar jornada menor com manutenção do
salário significa criar mais despesa para as empresas, num país onde o custo de
empregar já é alto. Para os contratados, equivale a um aumento salarial, mas
não para os 40% que trabalham na informalidade. Como o governo não tem condição
de conceder incentivos — precisa cortar, não aumentar gastos —, os empresários
não teriam alternativa senão demitir, e o trabalho informal cresceria. Outra
consequência seria a queda paulatina na remuneração para compensar a inevitável
diminuição na produção resultante de menos horas trabalhadas.
Mais grave: a PEC é desnecessária. A reforma
trabalhista de 2017 já autoriza que empresas e funcionários negociem mudança na
jornada de trabalho quando ela se justifica. Tanto que a maioria dos
contratados já trabalha cinco dias e folga dois. A reforma também trouxe
flexibilidade na gestão do tempo, hoje facilitada pelo trabalho remoto. Tudo
isso deve ser incentivado quando for adequado, mas jamais engessado. Gravar a
escala de trabalho na Constituição equivaleria a retroceder numa reforma que,
desde que implantada, só aumentou o emprego formal. E sempre vale lembrar: quem
tem menos direitos trabalhistas no Brasil são os informais — contingente que só
faria aumentar com a PEC.
A experiência internacional também mostra que
reduzir a jornada não costuma gerar mais postos de trabalho. O melhor exemplo é
a França, onde uma reforma instituiu a semana de 35 horas e, passados 26 anos,
não houve impacto positivo no emprego. Não foi surpresa quando a reforma
começou a ser desidratada. Novas leis permitiram mais horas extras, negociações
setoriais criaram exceções e maior flexibilidade. Noutros países europeus, a
história é parecida. “O total de horas trabalhadas diminuiu, mostrando que as
empresas não contrataram mais”, diz estudo do Institute of Labor Economics
(IZA) sobre as experiências de Portugal, Itália, Bélgica e Eslovênia.
Claro que o debate sobre a PEC deve levar em
conta as peculiaridades do Brasil. A renda per capita europeia é o quádruplo da
brasileira, mesmo assim brasileiros trabalham tantas horas quanto japoneses,
italianos ou australianos. Em países ricos, o nível de renda permite trabalhar
menos, e reduzir a jornada pode ser uma discussão pertinente. Nos de renda
baixa ou média (caso do Brasil), o comum é trabalhar bem mais. Jornada de
trabalho e produtividade são questões indissociáveis. Reduzir a primeira sem aumentar
a segunda tem efeitos indesejados.
Meta climática brasileira é avanço, mas falta
clareza sobre como atingi-la
O Globo
Na COP29, Brasil apresentou intenção de
reduzir emissões entre 59% e 67% até 2035, sobre o total de 2005
Firmado na 21ª Conferência do Clima (COP21)
da ONU, realizada na França em 2015, o Acordo de Paris estabeleceu o
compromisso de manter o aquecimento global em patamares razoáveis até o final
deste século. O alvo passou a ser uma alta inferior a 2 °C na comparação com a
temperatura antes da Revolução Industrial, idealmente de 1,5 °C. Para buscar
esse objetivo, os signatários passaram a ter a obrigação de anunciar metas
voluntárias para reduzir as emissões dos gases do efeito estufa.
Periodicamente, elas são atualizadas.
Na quarta-feira, o vice-presidente Geraldo
Alckmin apresentou os novos compromissos brasileiros durante a COP29 em Baku,
no Azerbaijão. Mais ambicioso que o anterior, o objetivo é reduzir as emissões
líquidas entre 59% e 67% até 2035, tendo como base o ano de 2005. O prazo final
para a atualização é fevereiro, mas, tendo em vista que a COP30 será realizada
em Belém daqui a um ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidiu se
antecipar.
O documento relembra as tragédias climáticas
que têm assolado o Brasil. “O país sofreu com secas na Amazônia e chuvas
extremas em suas cidades, incluindo as enchentes que abateram o Rio Grande do
Sul e sua capital, Porto Alegre. Nossa natureza foi castigada por incêndios
florestais, que atingiram os biomas Amazônia, Cerrado e Pantanal”, afirma. Em
termos de clareza sobre como atingir as metas, porém, o texto deixa a desejar.
Os planos do governo precisam ser detalhados
para que se chegue a juízo adequado a respeito. Na apresentação, o governo não
perdeu a oportunidade de chamar a atenção para a queda no desmatamento da
Amazônia (30,6%) e do Cerrado (25,7%) entre agosto de 2023 e julho deste ano.
Embora positiva, essa conquista é insuficiente para cumprir o objetivo
apresentado. O país precisa zerar o desmatamento. Deve também reduzir lixões,
combater as emissões de metano do gado e avançar mais rapidamente na transição
para energia limpa.
O ponto mais obscuro nos planos brasileiros é
a exploração de combustíveis fósseis. Até o final da década, o Brasil deverá se
tornar o quinto maior produtor mundial de petróleo, e a Petrobras a terceira
maior empresa do setor. Em poucos anos, porém, a produção do pré-sal chegará ao
pico. Até o momento, não existe acordo sobre o que fazer com novas reservas,
como a Margem Equatorial, região próxima à foz do rio Amazonas, ou a Bacia de
Pelotas. A exploração do petróleo amazônico divide a própria base do governo.
O governo precisa decidir logo o que fazer a
respeito, para esclarecer até que ponto o cumprimento dos compromissos
apresentados em Baku poderá ser afetado. Ainda que a chegada de Donald Trump ao
poder nos Estados Unidos traga retrocesso à agenda ambiental global e possa
retardar o ritmo da transição energética, o Brasil deve ambicionar o papel de
protagonista das negociações em prol do meio ambiente. Demonstrar clareza e
transparência nas decisões é o primeiro passo para exercê-lo.
Sementes de avanço com o cânhamo
Folha de S. Paulo
STJ autoriza importação para cultivo com fins
medicinais e industriais; pacientes podem ser beneficiados com óleo da planta
mais em conta
Diante do conservadorismo imobilizante
do Congresso
Nacional no tema da maconha medicinal,
a Justiça mais uma vez avança sobre matéria de competência legislativa: o Superior
Tribunal de Justiça autorizou a importação de sementes e o cultivo de
cânhamo industrial para fins industriais.
O STJ tomou
a decisão após ponderar argumentos apresentados em audiência pública de abril
convocada pela ministra relatora, Regina Helena Costa. A corte determinou que a
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) emita em seis meses normas
regulamentando a atividade.
A rigor, nem de maconha (Cannabis sativa) se trata e sim de Cannabis ruderalis,
planta aparentada. O cânhamo tem baixos índices de tetrahidrocanabinol (THC),
substância psicoativa que deu má fama à erva, mas bom teor de canabidiol (CBD),
composto de larga aplicação terapêutica.
O CBD vem sendo indicado para epilepsia, dor
crônica, depressão, esclerose múltipla, autismo, náusea por quimioterapia,
doença de Parkinson, distúrbios do sono e outras patologias.
Fibras e óleo de cânhamo também são
utilizados em tecidos, papel, cimento, plástico biodegradável, tintas,
cosméticos e alimentos e até biocombustíveis.
Por ora, entretanto, estava
proibido importar e germinar sementes para o cultivo. O Brasil,
em que pese sua pujança agrícola, se encontra à margem de um mercado global
calculado em cerca de R$ 250 bilhões e é obrigado a importar derivados da
planta, em especial da vizinha Colômbia.
Como resultado, boa parte dos beneficiários
do uso medicinal do CBD paga preços elevados pelo medicamento, dado que não há
produção em grande escala do óleo com canabidiol, formulação mais utilizada.
Associações de pacientes plantam e extraem o produto, com base em autorizações
precárias do Judiciário.
Há projetos de lei para legalizar o plantio
no país, mas o Legislativo anda a passos de cágado nessa trilha. E não está só
nessa marcha trôpega: o Conselho
Federal de Medicina baixou em 2022 resolução restringindo o
tratamento com CBD a raras epilepsias refratárias, as síndromes de Dravet e
Lennox-Gastaut.
Boa parte dos deputados e senadores, sob a
influência de médicos e líderes religiosos conservadores, ou mesmo em razão de
suas bases eleitorais, hesita em decidir-se sobre a matéria.
Parecem temerosos de que o cultivo e
processamento de cânhamo abra caminho para que se faça o mesmo com a maconha,
quem sabe até para a descriminalização total, e se difunda o seu uso como droga
recreativa.
O progresso é lento, mas segue pouco a pouco
com base em evidências científicas e sociológicas acatadas por juízes. O
Supremo Tribunal Federal, por exemplo, se deu por esclarecido ao fixar, em
junho, o limite de 40
gramas para qualificar como usuários portadores de quantidades
menores de maconha e, com isso, livrá-los do encarceramento desnecessário.
Tribunais subvertem decisão sobre audiência
de custódia
Folha de S. Paulo
STF determinou que procedimentos por
videoconferência deveriam ser exceção, mas levantamento mostra que se tornaram
a regra
Relatório da Associação para a Prevenção da
Tortura mostra que apenas uma a
cada quatro audiências de custódia tem sido realizada de forma presencial no
Brasil. A prática abre portas para a violação de direitos dos presos e revela
desrespeito generalizado a decisão do Supremo Tribunal Federal.
Em agosto do ano passado, ao
flexibilizar dispositivo
legal que veda o emprego de videoconferência na realização
dessas audiências, o STF salientou
que o modelo virtual poderia ser utilizado somente em circunstâncias
excepcionais —ou seja, jamais deveria se transformar em regra.
Entende-se a lógica da mais alta corte. Assim
como ocorreu durante a pandemia de Covid, há momentos em que o procedimento
remoto constitui a única opção viável; dentro de certos parâmetros, é melhor
ter a audiência virtual do que não realizá-la.
Implementado em 2015 a partir de resolução do
Conselho Nacional de Justiça, o instituto reflete tratados
internacionais ratificados pelo Brasil, como a Convenção Americana de Direitos
Humanos e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.
Sua função é permitir que o magistrado avalie
a legalidade da prisão, verifique
eventuais maus-tratos ou tortura e defina se é o caso de impor
medidas cautelares. Daí por que, conforme a norma, a pessoa encarcerada deve
ser apresentada a um juiz em até 24 horas, na presença de advogado ou defensor
público.
Conduzir esse procedimento por
videoconferência representa uma redução dos direitos do preso que só deve ser
aceita, como deliberou o Supremo, em caráter excepcional. A realidade forense
brasileira, lamentavelmente, caminhou em outra direção.
Após colher dados em 174 comarcas em todas as
regiões do país, a Associação para a Prevenção da Tortura constatou que 59
delas fazem audiências virtuais e que outras 69 oscilam entre o formato remoto
e o presencial. Dito de outro modo, somente 46 unidades, ou 26% do total,
seguem à risca o que determina o STF.
Há pelo menos dois problemas óbvios nesse
cenário: na larga maioria dos casos, o magistrado não consegue avaliar com
precisão o estado do preso e, para piorar, torna-se difícil, para não dizer
impossível, garantir que o encarcerado esteja livre de ameaças por parte de
quem o prendeu.
Ou seja, não só a exceção se transformou em
regra como também essa regra tem sido usada para suprimir
direitos, não para salvaguardá-los. É uma inversão completa e
descarada do que decidiu o Supremo —e não há como deixar essa situação
perdurar.
Os vícios incontroláveis de Moraes
O Estado de S. Paulo
Após atentado contra o STF, ministro volta a
ostentar suas credenciais de juiz universal da democracia, que não se controla
diante das câmeras e se antecipa aos fatos que virá a julgar
Para surpresa de rigorosamente ninguém,
bastaram poucas horas após as explosões na Praça dos Três Poderes para um
incontido ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF),
estufar o peito e ostentar as suas credenciais de plenipotenciário
guarda-costas da democracia no País. Moraes apressou-se em vincular fatos,
associar o homem-bomba ao 8 de Janeiro e, sobretudo, pontificar contra uma
eventual anistia aos golpistas. Ademais, arvorou-se em analista político e,
como se tudo isso não bastasse, instrumentalizou sua cadeira de ministro do STF
para vender a ideia de que seria o juiz universal da defesa do Estado
Democrático de Direito no Brasil. A sociedade já testemunhou uma história
muitíssimo parecida e sabe muito bem como isso termina.
Como afirmamos ontem neste espaço, o atentado
perpetrado por Francisco Wanderley Luiz expõe o risco da banalização da
retórica de intolerância política que se tornou marca indelével do
bolsonarismo. Tolerar atos antidemocráticos significa, no limite, premiá-los
com a impunidade. Mas não cabe ao sr. Moraes, evidentemente, vir a público e
dizer o que acha ou deixa de achar sobre aquele terrível evento e suas
eventuais repercussões políticas e, principalmente, jurídicas. É cansativo para
este jornal ter de relembrar a um ministro da Suprema Corte que, em uma
República democrática, magistrados podem ter muito poder, mas não sobre tudo.
Neste momento, é absolutamente irrelevante a
opinião de Moraes – ou de qualquer outro ministro do STF – sobre os fatos
ocorridos em Brasília e seus desdobramentos. O que ele tem a dizer, que o diga
eventualmente nos autos. Se uma descabida anistia for aprovada no Congresso
para livrar da punição a massa golpista que invadiu as sedes dos Três Poderes e
aqueles que a incitaram a fazê-lo, é certo que o caso chegará ao Supremo para
que seus onze ministros decidam sobre a sua constitucionalidade.
Poucas pessoas ainda ousarão negar as
evidências de que o homem-bomba era alguém disposto a manifestar com violência
todo o ódio nutrido contra o STF e seus ministros. Só o próprio Bolsonaro, seus
apoiadores mais fiéis e eventuais interessados em tramas ardilosas para
retornar ao poder são capazes de, agora, seguir defendendo abertamente a
anistia aos envolvidos nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023. Nem é
preciso esperar a conclusão das investigações para reconhecer o acinte que é
falar em anistia para golpistas, a menos que já não se queira mais viver sob a
égide da Constituição de 1988.
A loquacidade de Moraes, por si só
problemática, ainda deu azo a declarações inoportunas de alguns de seus pares.
Houve até quem usasse o caso para pregar a regulação das redes sociais – um
tema afeito ao Congresso, naturalmente. Mas é a título de defender a
democracia, concentrar sua artilharia contra as plataformas digitais e
politizar o STF que Moraes concentra poderes em um grau que nem as leis nem a
Constituição o autorizam, sob o beneplácito do colegiado do Supremo. Na
condução dos secretos, infindáveis e onipresentes inquéritos das fake news,
das milícias digitais e dos atos antidemocráticos, Moraes, é forçoso dizer,
lançou-se em uma escalada autoritária. O atropelo de ritos processuais, a
produção de provas contra suspeitos fora do processo regular e a arrogância na
contestação de críticos de boa-fé, confundindo-os como inimigos da democracia e
do STF, integram seu farto arsenal.
E assim Moraes se converteu em uma espécie de
versão atualizada do hoje senador Sergio Moro (União-PR): um juiz embevecido
pelas próprias virtudes, incapaz de controlar-se diante das câmeras e indômito
no atropelo da lei para atingir um fim socialmente importante.
Não há dúvida de que, sem algumas decisões do
STF e do Tribunal Superior Eleitoral, a democracia estaria em risco no País.
Mas falar demais e arrogar para a Corte competências que não são suas, entre
muitos outros exemplos, evidencia como Moraes, no momento em que o País precisa
de tranquilidade, contribui para alimentar o próprio extremismo que ele decidiu
combater.
PGR desperta para malefícios das ‘bets’
O Estado de S. Paulo
Gonet recorre ao STF para que ‘bets’ voltem a
ser ilícitas, lista insuficiências na proteção ao apostador e reforça que cabe
ao Congresso, não ao governo, criar normas em defesa dos cidadãos
A expansão das apostas esportivas e dos jogos
online no Brasil levou o procurador-geral da República, Paulo Gonet, a pedir
uma medida radical contra essas modalidades de jogatina que tanto mal fazem ao
País. O chefe do Ministério Público Federal (MPF) ajuizou uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal (STF) para que essas
atividades voltem ao status de ilícitos penais, conforme previa a Lei das
Contravenções Penais, de 1941 – status que nunca deveriam ter perdido.
A iniciativa é mais uma entre tantas após
virem à tona os riscos dos jogos online. Já está provado que a jogatina afeta a
saúde mental, degrada relações familiares, dilapida o patrimônio e aumenta o
endividamento, dada a promessa de retorno financeiro fácil, além de escamotear
ações do crime organizado, como a lavagem de dinheiro. Mas o Congresso e o
governo Lula da Silva parecem ter ignorado todos esses perigos ao focar na
arrecadação de impostos desse mercado bilionário.
Gonet traz ao debate argumentos jurídicos
sobre este mais novo problema brasileiro. Pela primeira vez, a
Procuradoria-Geral da República (PGR) se manifesta no STF contra essa
barbeiragem legislativa patrocinada por deputados e senadores com o aval, ou a omissão,
do presidente da República. O problema não surgiu hoje, e a bomba armada há
anos explodiu agora.
O procurador-geral defende a
inconstitucionalidade de trechos da Lei 13.756, de 2018, que chegou ao
Congresso como medida provisória sobre o Fundo Nacional de Segurança Pública e,
por meio de um “jabuti”, liberou, na prática, as apostas online no País; e de
quase totalidade da Lei 14.790, de 2023, que tentou trazer alguma racionalidade
à regulação do setor, mas falhou. Pede ainda a derrubada de portarias do
Ministério da Fazenda que regulamentam esse mercado. Em bom português, nada do
que foi feito pelo Congresso e pelo Executivo serviu para conter os danos
causados pelas bets.
Em 97 páginas, Gonet lista doutrinas,
jurisprudência e estudos que reforçam as críticas contra os males da jogatina.
Segundo ele, faltam a todas essas normas mecanismos para proteger minimamente
“direitos fundamentais, bens e valores constitucionais”. E, da forma como o
arcabouço legal foi arquitetado, não há a proteção da dignidade humana, dos
direitos sociais à saúde e à alimentação, dos direitos dos consumidores, do
direito de propriedade e dos direitos da criança e do adolescente. Há ainda
choque com os princípios da ordem econômica, do mercado interno e do dever de
proteção do Estado da unidade familiar. Em suma, sem mitigação, leis e
portarias afrontam a Constituição de cima a baixo.
Essas normas, para Gonet, mostraram-se
insuficientes por serem permissivas com a “publicidade ostensiva e predatória”
das casas de aposta, que oferecem “produtos de alto risco para a saúde”. Tem
razão: basta ligar a TV ou assistir a uma partida de futebol para constatar a
insaciável busca de apostadores. Ademais, por ser serviço público, essas
atividades, segundo Gonet, deveriam ser outorgadas por concessão ou permissão,
precedida de licitação. Hoje, basta autorização do Ministério da Fazenda.
E uma crítica ao excesso de delegação de
poder ao Executivo permeia boa parte da fundamentação do procurador-geral.
Segundo ele, houve violação do princípio da reserva legal – quando determinados
temas devem ser regulados apenas por lei – a partir do momento em que os
legisladores transferiram muitas prerrogativas a outro Poder. Chamou, assim,
deputados e senadores a assumirem seu trabalho de legislar com mais diligência
sobre o tema, o que, como se viu, não ocorreu.
Embora peça que as bets e apostas
como o “jogo do tigrinho” voltem para a ilegalidade, Gonet ressalta na ADI que
“não se quer afirmar que o sistema de apostas virtuais é, em si mesmo, de
impossível conciliação com o arcabouço da Constituição”, desde que, claro,
regras eficientes amplamente debatidas no Congresso prevejam mecanismos de
proteção ao cidadão. Eis uma boa oportunidade para a correção de um grave erro.
Um Pantanal cada vez menor
O Estado de S. Paulo
Há uma tragédia em curso num bioma que perdeu
mais de 60% de suas áreas alagadas
Com cheias cada vez menores e períodos de
seca mais prolongados, o Pantanal viu sua área alagada diminuir espantosos 61%
entre 1985 e 2023, segundo registrou um levantamento do MapBiomas, projeto que
mapeia regularmente a cobertura e o uso da terra, a superfície de água e as
cicatrizes de fogo no Brasil. Algo gravíssimo para aquela que é conhecida como
a maior área úmida do mundo.
No ano passado, o Pantanal ficou 38% mais
árido se comparado a 2018, quando ocorreu a última grande cheia no bioma.
Segundo os coordenadores do levantamento, o período de cheia, que originalmente
vai de fevereiro a abril, está encolhendo; o de seca, de julho a outubro, está
se alongando. Para ter uma ideia, em 1988, a área alagada do Pantanal chegava a
6,8 milhões de hectares – número que caiu para 5,4 milhões em 2018 e, por fim,
passou a ser de 3,3 milhões de hectares.
Tais números, infelizmente, confirmam uma
tendência que, no limite, inspira prognósticos sombrios. Recentemente,
confrontada com o fogo que se alastrou pelo Pantanal, Cerrado e Amazônia, sem
que o governo respondesse à altura, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva,
disse, em audiência no Senado, que o bioma chegará a um ponto irreversível até
o fim deste século. No que o climatologista Carlos Nobre a corrigiu horas
depois: o Pantanal, como o conhecemos até aqui, pode acabar até 2070.
Catastrofismos não costumam produzir bons
conselhos. Houve anos de estiagem extrema, mas o bioma mostrou boa capacidade
de regeneração. Foi o caso de secas registradas nas décadas de 1960 e 1970 e,
mais recentemente, em 2021, ano seguinte a um dos momentos de recorde de
queimadas. Mas as evidências revelam uma mudança de trajetória: se antes a
extensão do fogo era composta por áreas naturais em processo de conversão ou
consolidação das pastagens, nos últimos anos os pesquisadores identificaram
incêndios e locais antes permanentemente alagados no entorno do Rio Paraguai.
Avançando sobre a área seca, com temperaturas altas e ventos fortes, os
incêndios se tornam incontroláveis. “Será preciso torcer para que a chuva venha
e caia no lugar certo”, avaliou Eduardo Rosa, um dos coordenadores do
MapBiomas.
São péssimos os presságios quando é preciso
recorrer à esperança de chuva certa no lugar certo, como se a preservação da
natureza dependesse de uma providencial ajuda do destino para conter tragédias
ambientais. Em se tratando dos problemas que afetam hoje o Pantanal – assim
como a Amazônia e parte do Cerrado –, a sorte ou o acaso não são nem a causa
nem a consequência. Trata-se, isto sim, de uma soma dramática dos efeitos das
mudanças climáticas e da ação humana.
Como afirmou recentemente ao Estadão o
empresário Candido Bracher, porta-voz de um grupo de empresários que se uniram
para trabalhar por um pacto pela natureza, há muita boa vontade no governo, mas
pouca competência, enquanto parte da sociedade ainda apresenta uma postura
imediatista, como quem prefere aproveitar a festa enquanto ela não acaba. Que
os números exibidos agora reforcem o óbvio: a festa precisa acabar já.
Tolerância zero com o terrorismo
Correio Braziliense
As explosões no centro do poder da capital
federal e os seus desdobramentos são sinais claros de que o rigor da lei é
imprescindível para conter os extremistas
O fato de Francisco Wanderley Luiz, o
responsável pelas explosões na Praça dos Três Poderes, à entrada do Supremo
Tribunal Federal (STF), não ter conseguido seu objetivo — que, segundo as
investigações, era assassinar o ministro do STF Alexandre de Moraes e se matar
— não significa que o caso esteja encerrado. Há de se apurar suas conexões com
grupos de extrema-direita ativos no país e sua participação nos episódios que
resultaram, no ano passado, na invasão do Palácio do Planalto, do Congresso e
do Supremo. E mais: extinguir qualquer postura ou medida que fortaleça um
entendimento de falta de rigor diante de ameaças ao Estado Democrático de
Direito, como uma possível anistia aos condenados pelos atos antidemocráticos
de 8 de janeiro de 2023.
Desde antes das eleições de 2022, o STF vem
sendo alvo de ataques nas redes sociais, e seus integrantes e respectivos
familiares ameaçados. São, em média, três intimidações por dia, o que provocou
a abertura de ofício do inquérito que investiga as fake News e os
acontecimentos de 8 de janeiro, sob responsabilidade do ministro Moraes.
Segundo a Polícia Federal, grupos violentos de extrema-direita permanecem
ativos e estimulam ações tresloucadas, como a praticada por Wanderley
Luiz.
Portanto, tem razão o presidente do STF, Luís
Roberto Barroso, ao deixar claro que esse é o mais novo episódio de uma
sequência de ataques às instituições da República — sobretudo ao Poder
Judiciário — e à democracia. E o ministro acerta mais ainda a exortar a volta
da civilidade no debate político. "Onde foi que nos perdemos nesse mundo
de ódio, intolerância e golpismo? (...) Mais do que procurar os inspiradores
dessa mudança na alma nacional, o que nós precisamos é fazer o caminho de volta
à civilidade, ao respeito mútuo", indicou.
Em aula magna no Conselho Nacional do
Ministério Público, Alexandre de Moraes apontou as explosões como o atentado
mais grave à Corte desde o 8 de janeiro de 2023. O magistrado destacou a
necessidade de pacificação do país, mas defendeu que isso não será feito
perdoando os condenados: "Não existe a possibilidade de pacificação com
anistia a criminosos", afirmou, referindo-se à proposta de suspender as
penas dos responsáveis pelos atos de 8 de janeiro de 2023.
Não se trata de perseguição a determinado
grupo político ou de exageros condenatórios a grupos de pessoas indefesas.
Apesar de nenhum dos criminosos terem a pena imputada a partir de terrorismo
— o que impossibilitaria um pedido de anistia, segundo a Constitutição
Federal —, o episódio desta semana é um sinal claro de que as tentativas de
ameaça à democracia não arrefeceram e de que qualquer articulação para suavizar
as punições aplicadas aos golpistas pode ser um combustível para episódios com
desfechos piores.
Como bem avaliou o ministro Gilmar Mendes, o atentado protagonizado por Wanderley Luiz não é um fato isolado. "A ideologia rasteira que inspirou a tentativa de golpe de Estado não surgiu subitamente. Pelo contrário. O discurso de ódio, o fanatismo político e a indústria de desinformação foram largamente estimulados pelo governo anterior", disse o decano da Corte. Há poucas semanas, com o resultado das eleições municipais, ganhou força a perspectiva de que a polarização acirrada começava a perder força no país. As explosões no centro do poder da capital federal e os seus desdobramentos, além de colocarem em xeque essa leitura, são sinais claros de que o rigor da lei é imprescindível para conter os extremistas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário