sábado, 16 de novembro de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

PEC que impõe escala de trabalho 4x3 seria um erro

O Globo

Mudança traria mais despesas para empresas, maior informalidade e queda no rendimento do trabalhador

Não, a sexta-feira não deve ser o novo sábado, como quer a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP). O texto pretende impor uma semana de quatro dias de trabalho e três de descanso (4x3), com redução no limite de horas trabalhadas de 44 para 36, sem aumento da carga diária de oito horas nem redução de salário. Apresentada sem nenhum embasamento técnico, a PEC recolheu assinaturas suficientes para ser discutida, ganhou apoio de ministros, parlamentares e do vice Geraldo Alckmin. Quem defende a mudança parece crer que o avanço da tecnologia permitiria à força de trabalho uma rotina menos intensa, sem perda de produtividade. Imagina que, para dar conta do trabalho, as empresas contratariam mais funcionários, reduzindo o desemprego. Na teoria, parece bonito. Na prática, o resultado seria outro.

Adotar jornada menor com manutenção do salário significa criar mais despesa para as empresas, num país onde o custo de empregar já é alto. Para os contratados, equivale a um aumento salarial, mas não para os 40% que trabalham na informalidade. Como o governo não tem condição de conceder incentivos — precisa cortar, não aumentar gastos —, os empresários não teriam alternativa senão demitir, e o trabalho informal cresceria. Outra consequência seria a queda paulatina na remuneração para compensar a inevitável diminuição na produção resultante de menos horas trabalhadas.

Mais grave: a PEC é desnecessária. A reforma trabalhista de 2017 já autoriza que empresas e funcionários negociem mudança na jornada de trabalho quando ela se justifica. Tanto que a maioria dos contratados já trabalha cinco dias e folga dois. A reforma também trouxe flexibilidade na gestão do tempo, hoje facilitada pelo trabalho remoto. Tudo isso deve ser incentivado quando for adequado, mas jamais engessado. Gravar a escala de trabalho na Constituição equivaleria a retroceder numa reforma que, desde que implantada, só aumentou o emprego formal. E sempre vale lembrar: quem tem menos direitos trabalhistas no Brasil são os informais — contingente que só faria aumentar com a PEC.

A experiência internacional também mostra que reduzir a jornada não costuma gerar mais postos de trabalho. O melhor exemplo é a França, onde uma reforma instituiu a semana de 35 horas e, passados 26 anos, não houve impacto positivo no emprego. Não foi surpresa quando a reforma começou a ser desidratada. Novas leis permitiram mais horas extras, negociações setoriais criaram exceções e maior flexibilidade. Noutros países europeus, a história é parecida. “O total de horas trabalhadas diminuiu, mostrando que as empresas não contrataram mais”, diz estudo do Institute of Labor Economics (IZA) sobre as experiências de Portugal, Itália, Bélgica e Eslovênia.

Claro que o debate sobre a PEC deve levar em conta as peculiaridades do Brasil. A renda per capita europeia é o quádruplo da brasileira, mesmo assim brasileiros trabalham tantas horas quanto japoneses, italianos ou australianos. Em países ricos, o nível de renda permite trabalhar menos, e reduzir a jornada pode ser uma discussão pertinente. Nos de renda baixa ou média (caso do Brasil), o comum é trabalhar bem mais. Jornada de trabalho e produtividade são questões indissociáveis. Reduzir a primeira sem aumentar a segunda tem efeitos indesejados.

Meta climática brasileira é avanço, mas falta clareza sobre como atingi-la

O Globo

Na COP29, Brasil apresentou intenção de reduzir emissões entre 59% e 67% até 2035, sobre o total de 2005

Firmado na 21ª Conferência do Clima (COP21) da ONU, realizada na França em 2015, o Acordo de Paris estabeleceu o compromisso de manter o aquecimento global em patamares razoáveis até o final deste século. O alvo passou a ser uma alta inferior a 2 °C na comparação com a temperatura antes da Revolução Industrial, idealmente de 1,5 °C. Para buscar esse objetivo, os signatários passaram a ter a obrigação de anunciar metas voluntárias para reduzir as emissões dos gases do efeito estufa. Periodicamente, elas são atualizadas.

Na quarta-feira, o vice-presidente Geraldo Alckmin apresentou os novos compromissos brasileiros durante a COP29 em Baku, no Azerbaijão. Mais ambicioso que o anterior, o objetivo é reduzir as emissões líquidas entre 59% e 67% até 2035, tendo como base o ano de 2005. O prazo final para a atualização é fevereiro, mas, tendo em vista que a COP30 será realizada em Belém daqui a um ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidiu se antecipar.

O documento relembra as tragédias climáticas que têm assolado o Brasil. “O país sofreu com secas na Amazônia e chuvas extremas em suas cidades, incluindo as enchentes que abateram o Rio Grande do Sul e sua capital, Porto Alegre. Nossa natureza foi castigada por incêndios florestais, que atingiram os biomas Amazônia, Cerrado e Pantanal”, afirma. Em termos de clareza sobre como atingir as metas, porém, o texto deixa a desejar.

Os planos do governo precisam ser detalhados para que se chegue a juízo adequado a respeito. Na apresentação, o governo não perdeu a oportunidade de chamar a atenção para a queda no desmatamento da Amazônia (30,6%) e do Cerrado (25,7%) entre agosto de 2023 e julho deste ano. Embora positiva, essa conquista é insuficiente para cumprir o objetivo apresentado. O país precisa zerar o desmatamento. Deve também reduzir lixões, combater as emissões de metano do gado e avançar mais rapidamente na transição para energia limpa.

O ponto mais obscuro nos planos brasileiros é a exploração de combustíveis fósseis. Até o final da década, o Brasil deverá se tornar o quinto maior produtor mundial de petróleo, e a Petrobras a terceira maior empresa do setor. Em poucos anos, porém, a produção do pré-sal chegará ao pico. Até o momento, não existe acordo sobre o que fazer com novas reservas, como a Margem Equatorial, região próxima à foz do rio Amazonas, ou a Bacia de Pelotas. A exploração do petróleo amazônico divide a própria base do governo.

O governo precisa decidir logo o que fazer a respeito, para esclarecer até que ponto o cumprimento dos compromissos apresentados em Baku poderá ser afetado. Ainda que a chegada de Donald Trump ao poder nos Estados Unidos traga retrocesso à agenda ambiental global e possa retardar o ritmo da transição energética, o Brasil deve ambicionar o papel de protagonista das negociações em prol do meio ambiente. Demonstrar clareza e transparência nas decisões é o primeiro passo para exercê-lo.

Sementes de avanço com o cânhamo

Folha de S. Paulo

STJ autoriza importação para cultivo com fins medicinais e industriais; pacientes podem ser beneficiados com óleo da planta mais em conta

Diante do conservadorismo imobilizante do Congresso Nacional no tema da maconha medicinal, a Justiça mais uma vez avança sobre matéria de competência legislativa: o Superior Tribunal de Justiça autorizou a importação de sementes e o cultivo de cânhamo industrial para fins industriais.

STJ tomou a decisão após ponderar argumentos apresentados em audiência pública de abril convocada pela ministra relatora, Regina Helena Costa. A corte determinou que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) emita em seis meses normas regulamentando a atividade.

A rigor, nem de maconha (Cannabis sativa) se trata e sim de Cannabis ruderalis, planta aparentada. O cânhamo tem baixos índices de tetrahidrocanabinol (THC), substância psicoativa que deu má fama à erva, mas bom teor de canabidiol (CBD), composto de larga aplicação terapêutica.

O CBD vem sendo indicado para epilepsia, dor crônica, depressão, esclerose múltipla, autismo, náusea por quimioterapia, doença de Parkinson, distúrbios do sono e outras patologias.

Fibras e óleo de cânhamo também são utilizados em tecidos, papel, cimento, plástico biodegradável, tintas, cosméticos e alimentos e até biocombustíveis.

Por ora, entretanto, estava proibido importar e germinar sementes para o cultivo. O Brasil, em que pese sua pujança agrícola, se encontra à margem de um mercado global calculado em cerca de R$ 250 bilhões e é obrigado a importar derivados da planta, em especial da vizinha Colômbia.

Como resultado, boa parte dos beneficiários do uso medicinal do CBD paga preços elevados pelo medicamento, dado que não há produção em grande escala do óleo com canabidiol, formulação mais utilizada. Associações de pacientes plantam e extraem o produto, com base em autorizações precárias do Judiciário.

Há projetos de lei para legalizar o plantio no país, mas o Legislativo anda a passos de cágado nessa trilha. E não está só nessa marcha trôpega: o Conselho Federal de Medicina baixou em 2022 resolução restringindo o tratamento com CBD a raras epilepsias refratárias, as síndromes de Dravet e Lennox-Gastaut.

Boa parte dos deputados e senadores, sob a influência de médicos e líderes religiosos conservadores, ou mesmo em razão de suas bases eleitorais, hesita em decidir-se sobre a matéria.

Parecem temerosos de que o cultivo e processamento de cânhamo abra caminho para que se faça o mesmo com a maconha, quem sabe até para a descriminalização total, e se difunda o seu uso como droga recreativa.

O progresso é lento, mas segue pouco a pouco com base em evidências científicas e sociológicas acatadas por juízes. O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, se deu por esclarecido ao fixar, em junho, o limite de 40 gramas para qualificar como usuários portadores de quantidades menores de maconha e, com isso, livrá-los do encarceramento desnecessário.

Tribunais subvertem decisão sobre audiência de custódia

Folha de S. Paulo

STF determinou que procedimentos por videoconferência deveriam ser exceção, mas levantamento mostra que se tornaram a regra

Relatório da Associação para a Prevenção da Tortura mostra que apenas uma a cada quatro audiências de custódia tem sido realizada de forma presencial no Brasil. A prática abre portas para a violação de direitos dos presos e revela desrespeito generalizado a decisão do Supremo Tribunal Federal.

Em agosto do ano passado, ao flexibilizar dispositivo legal que veda o emprego de videoconferência na realização dessas audiências, o STF salientou que o modelo virtual poderia ser utilizado somente em circunstâncias excepcionais —ou seja, jamais deveria se transformar em regra.

Entende-se a lógica da mais alta corte. Assim como ocorreu durante a pandemia de Covid, há momentos em que o procedimento remoto constitui a única opção viável; dentro de certos parâmetros, é melhor ter a audiência virtual do que não realizá-la.

Implementado em 2015 a partir de resolução do Conselho Nacional de Justiça, o instituto reflete tratados internacionais ratificados pelo Brasil, como a Convenção Americana de Direitos Humanos e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.

Sua função é permitir que o magistrado avalie a legalidade da prisão, verifique eventuais maus-tratos ou tortura e defina se é o caso de impor medidas cautelares. Daí por que, conforme a norma, a pessoa encarcerada deve ser apresentada a um juiz em até 24 horas, na presença de advogado ou defensor público.

Conduzir esse procedimento por videoconferência representa uma redução dos direitos do preso que só deve ser aceita, como deliberou o Supremo, em caráter excepcional. A realidade forense brasileira, lamentavelmente, caminhou em outra direção.

Após colher dados em 174 comarcas em todas as regiões do país, a Associação para a Prevenção da Tortura constatou que 59 delas fazem audiências virtuais e que outras 69 oscilam entre o formato remoto e o presencial. Dito de outro modo, somente 46 unidades, ou 26% do total, seguem à risca o que determina o STF.

Há pelo menos dois problemas óbvios nesse cenário: na larga maioria dos casos, o magistrado não consegue avaliar com precisão o estado do preso e, para piorar, torna-se difícil, para não dizer impossível, garantir que o encarcerado esteja livre de ameaças por parte de quem o prendeu.

Ou seja, não só a exceção se transformou em regra como também essa regra tem sido usada para suprimir direitos, não para salvaguardá-los. É uma inversão completa e descarada do que decidiu o Supremo —e não há como deixar essa situação perdurar.

Os vícios incontroláveis de Moraes

O Estado de S. Paulo

Após atentado contra o STF, ministro volta a ostentar suas credenciais de juiz universal da democracia, que não se controla diante das câmeras e se antecipa aos fatos que virá a julgar

Para surpresa de rigorosamente ninguém, bastaram poucas horas após as explosões na Praça dos Três Poderes para um incontido ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), estufar o peito e ostentar as suas credenciais de plenipotenciário guarda-costas da democracia no País. Moraes apressou-se em vincular fatos, associar o homem-bomba ao 8 de Janeiro e, sobretudo, pontificar contra uma eventual anistia aos golpistas. Ademais, arvorou-se em analista político e, como se tudo isso não bastasse, instrumentalizou sua cadeira de ministro do STF para vender a ideia de que seria o juiz universal da defesa do Estado Democrático de Direito no Brasil. A sociedade já testemunhou uma história muitíssimo parecida e sabe muito bem como isso termina.

Como afirmamos ontem neste espaço, o atentado perpetrado por Francisco Wanderley Luiz expõe o risco da banalização da retórica de intolerância política que se tornou marca indelével do bolsonarismo. Tolerar atos antidemocráticos significa, no limite, premiá-los com a impunidade. Mas não cabe ao sr. Moraes, evidentemente, vir a público e dizer o que acha ou deixa de achar sobre aquele terrível evento e suas eventuais repercussões políticas e, principalmente, jurídicas. É cansativo para este jornal ter de relembrar a um ministro da Suprema Corte que, em uma República democrática, magistrados podem ter muito poder, mas não sobre tudo.

Neste momento, é absolutamente irrelevante a opinião de Moraes – ou de qualquer outro ministro do STF – sobre os fatos ocorridos em Brasília e seus desdobramentos. O que ele tem a dizer, que o diga eventualmente nos autos. Se uma descabida anistia for aprovada no Congresso para livrar da punição a massa golpista que invadiu as sedes dos Três Poderes e aqueles que a incitaram a fazê-lo, é certo que o caso chegará ao Supremo para que seus onze ministros decidam sobre a sua constitucionalidade.

Poucas pessoas ainda ousarão negar as evidências de que o homem-bomba era alguém disposto a manifestar com violência todo o ódio nutrido contra o STF e seus ministros. Só o próprio Bolsonaro, seus apoiadores mais fiéis e eventuais interessados em tramas ardilosas para retornar ao poder são capazes de, agora, seguir defendendo abertamente a anistia aos envolvidos nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023. Nem é preciso esperar a conclusão das investigações para reconhecer o acinte que é falar em anistia para golpistas, a menos que já não se queira mais viver sob a égide da Constituição de 1988.

A loquacidade de Moraes, por si só problemática, ainda deu azo a declarações inoportunas de alguns de seus pares. Houve até quem usasse o caso para pregar a regulação das redes sociais – um tema afeito ao Congresso, naturalmente. Mas é a título de defender a democracia, concentrar sua artilharia contra as plataformas digitais e politizar o STF que Moraes concentra poderes em um grau que nem as leis nem a Constituição o autorizam, sob o beneplácito do colegiado do Supremo. Na condução dos secretos, infindáveis e onipresentes inquéritos das fake news, das milícias digitais e dos atos antidemocráticos, Moraes, é forçoso dizer, lançou-se em uma escalada autoritária. O atropelo de ritos processuais, a produção de provas contra suspeitos fora do processo regular e a arrogância na contestação de críticos de boa-fé, confundindo-os como inimigos da democracia e do STF, integram seu farto arsenal.

E assim Moraes se converteu em uma espécie de versão atualizada do hoje senador Sergio Moro (União-PR): um juiz embevecido pelas próprias virtudes, incapaz de controlar-se diante das câmeras e indômito no atropelo da lei para atingir um fim socialmente importante.

Não há dúvida de que, sem algumas decisões do STF e do Tribunal Superior Eleitoral, a democracia estaria em risco no País. Mas falar demais e arrogar para a Corte competências que não são suas, entre muitos outros exemplos, evidencia como Moraes, no momento em que o País precisa de tranquilidade, contribui para alimentar o próprio extremismo que ele decidiu combater.

PGR desperta para malefícios das ‘bets’

O Estado de S. Paulo

Gonet recorre ao STF para que ‘bets’ voltem a ser ilícitas, lista insuficiências na proteção ao apostador e reforça que cabe ao Congresso, não ao governo, criar normas em defesa dos cidadãos

A expansão das apostas esportivas e dos jogos online no Brasil levou o procurador-geral da República, Paulo Gonet, a pedir uma medida radical contra essas modalidades de jogatina que tanto mal fazem ao País. O chefe do Ministério Público Federal (MPF) ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal (STF) para que essas atividades voltem ao status de ilícitos penais, conforme previa a Lei das Contravenções Penais, de 1941 – status que nunca deveriam ter perdido.

A iniciativa é mais uma entre tantas após virem à tona os riscos dos jogos online. Já está provado que a jogatina afeta a saúde mental, degrada relações familiares, dilapida o patrimônio e aumenta o endividamento, dada a promessa de retorno financeiro fácil, além de escamotear ações do crime organizado, como a lavagem de dinheiro. Mas o Congresso e o governo Lula da Silva parecem ter ignorado todos esses perigos ao focar na arrecadação de impostos desse mercado bilionário.

Gonet traz ao debate argumentos jurídicos sobre este mais novo problema brasileiro. Pela primeira vez, a Procuradoria-Geral da República (PGR) se manifesta no STF contra essa barbeiragem legislativa patrocinada por deputados e senadores com o aval, ou a omissão, do presidente da República. O problema não surgiu hoje, e a bomba armada há anos explodiu agora.

O procurador-geral defende a inconstitucionalidade de trechos da Lei 13.756, de 2018, que chegou ao Congresso como medida provisória sobre o Fundo Nacional de Segurança Pública e, por meio de um “jabuti”, liberou, na prática, as apostas online no País; e de quase totalidade da Lei 14.790, de 2023, que tentou trazer alguma racionalidade à regulação do setor, mas falhou. Pede ainda a derrubada de portarias do Ministério da Fazenda que regulamentam esse mercado. Em bom português, nada do que foi feito pelo Congresso e pelo Executivo serviu para conter os danos causados pelas bets.

Em 97 páginas, Gonet lista doutrinas, jurisprudência e estudos que reforçam as críticas contra os males da jogatina. Segundo ele, faltam a todas essas normas mecanismos para proteger minimamente “direitos fundamentais, bens e valores constitucionais”. E, da forma como o arcabouço legal foi arquitetado, não há a proteção da dignidade humana, dos direitos sociais à saúde e à alimentação, dos direitos dos consumidores, do direito de propriedade e dos direitos da criança e do adolescente. Há ainda choque com os princípios da ordem econômica, do mercado interno e do dever de proteção do Estado da unidade familiar. Em suma, sem mitigação, leis e portarias afrontam a Constituição de cima a baixo.

Essas normas, para Gonet, mostraram-se insuficientes por serem permissivas com a “publicidade ostensiva e predatória” das casas de aposta, que oferecem “produtos de alto risco para a saúde”. Tem razão: basta ligar a TV ou assistir a uma partida de futebol para constatar a insaciável busca de apostadores. Ademais, por ser serviço público, essas atividades, segundo Gonet, deveriam ser outorgadas por concessão ou permissão, precedida de licitação. Hoje, basta autorização do Ministério da Fazenda.

E uma crítica ao excesso de delegação de poder ao Executivo permeia boa parte da fundamentação do procurador-geral. Segundo ele, houve violação do princípio da reserva legal – quando determinados temas devem ser regulados apenas por lei – a partir do momento em que os legisladores transferiram muitas prerrogativas a outro Poder. Chamou, assim, deputados e senadores a assumirem seu trabalho de legislar com mais diligência sobre o tema, o que, como se viu, não ocorreu.

Embora peça que as bets e apostas como o “jogo do tigrinho” voltem para a ilegalidade, Gonet ressalta na ADI que “não se quer afirmar que o sistema de apostas virtuais é, em si mesmo, de impossível conciliação com o arcabouço da Constituição”, desde que, claro, regras eficientes amplamente debatidas no Congresso prevejam mecanismos de proteção ao cidadão. Eis uma boa oportunidade para a correção de um grave erro.

Um Pantanal cada vez menor

O Estado de S. Paulo

Há uma tragédia em curso num bioma que perdeu mais de 60% de suas áreas alagadas

Com cheias cada vez menores e períodos de seca mais prolongados, o Pantanal viu sua área alagada diminuir espantosos 61% entre 1985 e 2023, segundo registrou um levantamento do MapBiomas, projeto que mapeia regularmente a cobertura e o uso da terra, a superfície de água e as cicatrizes de fogo no Brasil. Algo gravíssimo para aquela que é conhecida como a maior área úmida do mundo.

No ano passado, o Pantanal ficou 38% mais árido se comparado a 2018, quando ocorreu a última grande cheia no bioma. Segundo os coordenadores do levantamento, o período de cheia, que originalmente vai de fevereiro a abril, está encolhendo; o de seca, de julho a outubro, está se alongando. Para ter uma ideia, em 1988, a área alagada do Pantanal chegava a 6,8 milhões de hectares – número que caiu para 5,4 milhões em 2018 e, por fim, passou a ser de 3,3 milhões de hectares.

Tais números, infelizmente, confirmam uma tendência que, no limite, inspira prognósticos sombrios. Recentemente, confrontada com o fogo que se alastrou pelo Pantanal, Cerrado e Amazônia, sem que o governo respondesse à altura, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, disse, em audiência no Senado, que o bioma chegará a um ponto irreversível até o fim deste século. No que o climatologista Carlos Nobre a corrigiu horas depois: o Pantanal, como o conhecemos até aqui, pode acabar até 2070.

Catastrofismos não costumam produzir bons conselhos. Houve anos de estiagem extrema, mas o bioma mostrou boa capacidade de regeneração. Foi o caso de secas registradas nas décadas de 1960 e 1970 e, mais recentemente, em 2021, ano seguinte a um dos momentos de recorde de queimadas. Mas as evidências revelam uma mudança de trajetória: se antes a extensão do fogo era composta por áreas naturais em processo de conversão ou consolidação das pastagens, nos últimos anos os pesquisadores identificaram incêndios e locais antes permanentemente alagados no entorno do Rio Paraguai. Avançando sobre a área seca, com temperaturas altas e ventos fortes, os incêndios se tornam incontroláveis. “Será preciso torcer para que a chuva venha e caia no lugar certo”, avaliou Eduardo Rosa, um dos coordenadores do MapBiomas.

São péssimos os presságios quando é preciso recorrer à esperança de chuva certa no lugar certo, como se a preservação da natureza dependesse de uma providencial ajuda do destino para conter tragédias ambientais. Em se tratando dos problemas que afetam hoje o Pantanal – assim como a Amazônia e parte do Cerrado –, a sorte ou o acaso não são nem a causa nem a consequência. Trata-se, isto sim, de uma soma dramática dos efeitos das mudanças climáticas e da ação humana.

Como afirmou recentemente ao Estadão o empresário Candido Bracher, porta-voz de um grupo de empresários que se uniram para trabalhar por um pacto pela natureza, há muita boa vontade no governo, mas pouca competência, enquanto parte da sociedade ainda apresenta uma postura imediatista, como quem prefere aproveitar a festa enquanto ela não acaba. Que os números exibidos agora reforcem o óbvio: a festa precisa acabar já.

Tolerância zero com o terrorismo

Correio Braziliense

As explosões no centro do poder da capital federal e os seus desdobramentos são sinais claros de que o rigor da lei é imprescindível para conter os extremistas

O fato de Francisco Wanderley Luiz, o responsável pelas explosões na Praça dos Três Poderes, à entrada do Supremo Tribunal Federal (STF), não ter conseguido seu objetivo — que, segundo as investigações, era assassinar o ministro do STF Alexandre de Moraes e se matar — não significa que o caso esteja encerrado. Há de se apurar suas conexões com grupos de extrema-direita ativos no país e sua participação nos episódios que resultaram, no ano passado, na invasão do Palácio do Planalto, do Congresso e do Supremo. E mais: extinguir qualquer postura ou medida que fortaleça um entendimento de falta de rigor diante de ameaças ao Estado Democrático de Direito, como uma possível anistia aos condenados pelos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023.

Desde antes das eleições de 2022, o STF vem sendo alvo de ataques nas redes sociais, e seus integrantes e respectivos familiares ameaçados. São, em média, três intimidações por dia, o que provocou a abertura de ofício do inquérito que investiga as fake News e os acontecimentos de 8 de janeiro, sob responsabilidade do ministro Moraes. Segundo a Polícia Federal, grupos violentos de extrema-direita permanecem ativos e estimulam ações tresloucadas, como a praticada por Wanderley Luiz. 

Portanto, tem razão o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, ao deixar claro que esse é o mais novo episódio de uma sequência de ataques às instituições da República — sobretudo ao Poder Judiciário — e à democracia. E o ministro acerta mais ainda a exortar a volta da civilidade no debate político. "Onde foi que nos perdemos nesse mundo de ódio, intolerância e golpismo? (...) Mais do que procurar os inspiradores dessa mudança na alma nacional, o que nós precisamos é fazer o caminho de volta à civilidade, ao respeito mútuo", indicou.

Em aula magna no Conselho Nacional do Ministério Público, Alexandre de Moraes apontou as explosões como o atentado mais grave à Corte desde o 8 de janeiro de 2023. O magistrado destacou a necessidade de pacificação do país, mas defendeu que isso não será feito perdoando os condenados: "Não existe a possibilidade de pacificação com anistia a criminosos", afirmou, referindo-se à proposta de suspender as penas dos responsáveis pelos atos de 8 de janeiro de 2023.

Não se trata de perseguição a determinado grupo político ou de exageros condenatórios a grupos de pessoas indefesas. Apesar de nenhum dos criminosos terem a pena imputada a partir de terrorismo —  o que impossibilitaria um pedido de anistia, segundo a Constitutição Federal —, o episódio desta semana é um sinal claro de que as tentativas de ameaça à democracia não arrefeceram e de que qualquer articulação para suavizar as punições aplicadas aos golpistas pode ser um combustível para episódios com desfechos piores. 

Como bem avaliou o ministro Gilmar Mendes, o atentado protagonizado por Wanderley Luiz não é um fato isolado. "A ideologia rasteira que inspirou a tentativa de golpe de Estado não surgiu subitamente. Pelo contrário. O discurso de ódio, o fanatismo político e a indústria de desinformação foram largamente estimulados pelo governo anterior", disse o decano da Corte. Há poucas semanas, com o resultado das eleições municipais, ganhou força a perspectiva de que a polarização acirrada começava a perder força no país. As explosões no centro do poder da capital federal e os seus desdobramentos, além de colocarem em xeque essa leitura, são sinais claros de que o rigor da lei é imprescindível para conter os extremistas.

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