sábado, 1 de fevereiro de 2025

Monroe revisitado - Luiz Gonzaga Belluzzo

CartaCapital

Como os Estados Unidos encaram o excepcionalismo. E como o resto do mundo o vê

A deportação de imigrantes pelo governo Trump foi analisada como um evento excepcional na história norte-americana. Uma caminhada pelos desvarios incrustados na história do Irmão do Norte traria, no entanto, informações que desmentem a excepcionalidade das proezas do atual presidente e seus asseclas. No artigo American Exceptionalism, Daniel ­Deudney e Jeffrey Meiser desvendam as origens da autolouvação dos EUA que invoca o caráter único e superior de sua posição no âmbito dos Estados Nacionais. “Desde a sua fundação, há quase um quarto de milênio, os Estados Unidos da América se consideram e são amplamente percebidos como excepcionais.”

Os autores discorrem sobre os movimentos contraditórios da afirmação desse excepcionalismo ao longo da história. Na política norte-americana e mundial contemporânea, o excepcionalismo dos EUA significa coisas diferentes para indivíduos e países. Segundo alguns, é uma visão, para outros, uma farsa, e para outros, um pesadelo. Para certos cidadãos estadunidenses, particularmente neoconservadores recentes, intoxicados de poder, a excepcionalidade é uma luz verde, uma justificativa e uma desculpa para todos os fins, para ignorar a lei internacional e a opinião pública mundial, para invadir outros países e impor governos.

Na reafirmação de sua excepcionalidade, a trajetória dos Estados Unidos recebeu uma contribuição valiosa da Doutrina Monroe. Vou me valer de uma reportagem da britânica BBC para esclarecer de forma sucinta os pontos centrais da doutrina formulada pelo presidente ­James Monroe. “A América para os americanos” é a frase que resume uma das políticas externas mais antigas e emblemáticas dos Estados Unidos, a Doutrina Monroe. Ela foi apresentada em 2 de dezembro de 1823 por Monroe em um discurso perante o Congresso. Na sua mensagem, o então presidente emitiu um alerta às potências europeias para que permanecessem fora do continente americano.

Aqueles eram os anos posteriores às independências que as nações americanas ganharam diante das monarquias da Espanha, França ou Portugal. “Os continentes americanos, pela condição de liberdade e independência que assumiram e mantêm, não deverão doravante ser considerados sujeitos de futura colonização por qualquer potência europeia”, disse Monroe aos congressistas. Qualquer intervenção, prosseguiu, “seria considerada um ataque aos próprios Estados Unidos e garantiu que o seu país não se envolveria em nenhuma disputa na Europa.”

A solidariedade anticolonialista conduziu a uma política expansionista e à proteção dos interesses econômicos dos EUA no Hemisfério Ocidental. É importante registrar os contornos da “nova ordem mundial” imposta pelos Estados Unidos depois da queda do Muro de Berlim. A “nova ordem” foi o resultado do exercício, sem peias, do poder dos Estados Unidos. As normas da mercantilização generalizada e da concorrência universal, apresentadas como forças naturais, refletem, na verdade, a predominância dos interesses do país dominante sobre o resto do mundo. As reformas liberais vêm sendo impostas aos governos da periferia pelos organismos internacionais –Banco MundialFMI, BID – que, por sua vez, funcionam como executores das políticas compatíveis com a preservação da Ordem Americana. Ainda não estão claras as consequências da disseminação dos padrões norte-americanos sobre sociedades que apresentam trajetórias históricas diferentes daquelas percorridas pelo ­país do Norte. O potencial de conflito não é desprezível, ainda que edulcorado por essa ideia de que ingressamos no caminho sem volta da harmonia universal.

Para uns é uma visão, para outros, uma farsa ou um pesadelo

Encerro com o episódio da perseguição ao nosso Carlitos–Charles Chaplin. A perseguição foi desatada na era do macarthismo. No derradeiro capítulo de sua autobiografia, Carlitos faz um relato de uma entrevista que, às vésperas de sua partida da América, concedeu a jornalistas. “Depois que eles serviram alguns coquetéis, eu apareci, mas imediatamente senti o cheiro de alguma coisa. Falei atrás de uma pequena mesa e, exibindo toda a capacidade de sedução que pude, disse: ‘Como vocês estão, senhoras e senhores? Estou aqui para informá-los de tudo o que lhes possa interessar em relação ao meu filme e meus planos futuros’. Eles permaneceram em silêncio. ‘Não falem todos de uma vez’, disse, sorrindo. Finalmente, um jornalista que estava sentado quase em frente disse: ‘Você é comunista?’ ‘Não’, respondi categoricamente. ‘A próxima pergunta, por favor’. Então uma voz começou a murmurar algo. Achei que ele seria meu ‘amigo, do Daily News, mas ele se destacou por sua ausência. O orador era um sujeito de aparência elegante, com o casaco, curvado sobre um manuscrito, do qual estava lendo alguma coisa. ‘Com licença’, eu disse. Você terá que lê-lo novamente. Não entendo uma palavra do que você está dizendo. ‘Nós’, começou ele, ‘os ex-combatentes católicos da guerra’; ‘Não estou aqui para responder aos veteranos católicos da guerra’, interrompi-o. Esta é uma conferência de imprensa. ‘Por que você não se tornou um cidadão americano?’, disse outra voz. ‘Não vejo nenhuma razão para mudar minha nacionalidade. Eu me considero um cidadão do mundo’, respondi.”

Chaplin continua: “Houve uma grande agitação. Duas ou três pessoas queriam conversar ao mesmo tempo. No entanto, uma voz dominou as outras: ‘Mas você ganha dinheiro nos Estados Unidos’. ‘Bem’, eu disse, sorrindo, ‘se você falar de uma perspectiva de negócios, vamos direto aos fatos. Meus negócios são internacionais; setenta por cento da minha renda eu ganho no exterior, e os Estados Unidos tributam cem por cento. Então, você vê, eu sou um hóspede muito bem pago’”.

Mais: “O da Legião Católica atacou novamente com voz estridente: ‘Quer você ganhe seu dinheiro aqui ou não, nós que desembarcamos nas costas da França lamentamos que você não seja um cidadão desta nação’. ‘Você não é o único homem que desembarcou nessas praias’, eu disse. ‘Meus dois filhos também estavam lá, no exército de Patton, firmes na linha de frente, e eles não saem por aí se gabando ou explorando o fato, como você está fazendo’. Eu gostaria de dizer a eles que quanto mais cedo eu estivesse livre daquele ambiente carregado de ódio, melhor, que estava farto dos insultos e da moral hipócrita da América, e que a coisa toda era um grande incômodo. Mas tudo o que eu tinha estava nos Estados Unidos e estava com medo de que eles pudessem encontrar uma maneira de confiscá-lo. Agora eu poderia esperar qualquer ação inescrupulosa deles”. •

Publicado na edição n° 1347 de CartaCapital, em 05 de fevereiro de 2025.

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