CartaCapital
Como os Estados Unidos encaram o
excepcionalismo. E como o resto do mundo o vê
A deportação de imigrantes pelo governo Trump foi analisada como um evento excepcional na história norte-americana. Uma caminhada pelos desvarios incrustados na história do Irmão do Norte traria, no entanto, informações que desmentem a excepcionalidade das proezas do atual presidente e seus asseclas. No artigo American Exceptionalism, Daniel Deudney e Jeffrey Meiser desvendam as origens da autolouvação dos EUA que invoca o caráter único e superior de sua posição no âmbito dos Estados Nacionais. “Desde a sua fundação, há quase um quarto de milênio, os Estados Unidos da América se consideram e são amplamente percebidos como excepcionais.”
Os autores discorrem sobre os movimentos
contraditórios da afirmação desse excepcionalismo ao longo da história. Na
política norte-americana e mundial contemporânea, o excepcionalismo dos EUA
significa coisas diferentes para indivíduos e países. Segundo alguns, é uma
visão, para outros, uma farsa, e para outros, um pesadelo. Para certos cidadãos
estadunidenses, particularmente neoconservadores recentes, intoxicados de
poder, a excepcionalidade é uma luz verde, uma justificativa e uma desculpa
para todos os fins, para ignorar a lei internacional e a opinião pública
mundial, para invadir outros países e impor governos.
Na reafirmação de sua excepcionalidade, a
trajetória dos Estados Unidos recebeu uma contribuição valiosa da Doutrina
Monroe. Vou me valer de uma reportagem da britânica BBC para esclarecer de
forma sucinta os pontos centrais da doutrina formulada pelo presidente James
Monroe. “A América para os americanos” é a frase que resume uma das políticas
externas mais antigas e emblemáticas dos Estados Unidos, a Doutrina Monroe. Ela
foi apresentada em 2 de dezembro de 1823 por Monroe em um discurso perante o
Congresso. Na sua mensagem, o então presidente emitiu um alerta às potências
europeias para que permanecessem fora do continente americano.
Aqueles eram os anos posteriores às
independências que as nações americanas ganharam diante das monarquias da
Espanha, França ou Portugal. “Os continentes americanos, pela condição de
liberdade e independência que assumiram e mantêm, não deverão doravante ser
considerados sujeitos de futura colonização por qualquer potência europeia”,
disse Monroe aos congressistas. Qualquer intervenção, prosseguiu, “seria
considerada um ataque aos próprios Estados Unidos e garantiu que o seu país não
se envolveria em nenhuma disputa na Europa.”
A solidariedade anticolonialista conduziu a
uma política expansionista e à proteção dos interesses econômicos dos EUA no
Hemisfério Ocidental. É importante registrar os contornos da “nova ordem
mundial” imposta pelos Estados Unidos depois da queda do Muro de Berlim. A
“nova ordem” foi o resultado do exercício, sem peias, do poder dos Estados
Unidos. As normas da mercantilização generalizada e da concorrência universal,
apresentadas como forças naturais, refletem, na verdade, a predominância dos
interesses do país dominante sobre o resto do mundo. As reformas liberais vêm
sendo impostas aos governos da periferia pelos organismos internacionais
–Banco Mundial, FMI, BID – que, por sua
vez, funcionam como executores das políticas compatíveis com a preservação da
Ordem Americana. Ainda não estão claras as consequências da disseminação dos
padrões norte-americanos sobre sociedades que apresentam trajetórias históricas
diferentes daquelas percorridas pelo país do Norte. O potencial de conflito
não é desprezível, ainda que edulcorado por essa ideia de que ingressamos no
caminho sem volta da harmonia universal.
Para uns é uma visão, para outros, uma farsa
ou um pesadelo
Encerro com o episódio da perseguição ao
nosso Carlitos–Charles Chaplin. A perseguição foi desatada na era do
macarthismo. No derradeiro capítulo de sua autobiografia, Carlitos faz um
relato de uma entrevista que, às vésperas de sua partida da América, concedeu a
jornalistas. “Depois que eles serviram alguns coquetéis, eu apareci, mas
imediatamente senti o cheiro de alguma coisa. Falei atrás de uma pequena mesa
e, exibindo toda a capacidade de sedução que pude, disse: ‘Como vocês estão,
senhoras e senhores? Estou aqui para informá-los de tudo o que lhes possa
interessar em relação ao meu filme e meus planos futuros’. Eles permaneceram em
silêncio. ‘Não falem todos de uma vez’, disse, sorrindo. Finalmente, um
jornalista que estava sentado quase em frente disse: ‘Você é comunista?’ ‘Não’,
respondi categoricamente. ‘A próxima pergunta, por favor’. Então uma voz
começou a murmurar algo. Achei que ele seria meu ‘amigo, do Daily News, mas ele
se destacou por sua ausência. O orador era um sujeito de aparência elegante,
com o casaco, curvado sobre um manuscrito, do qual estava lendo alguma coisa.
‘Com licença’, eu disse. Você terá que lê-lo novamente. Não entendo uma palavra
do que você está dizendo. ‘Nós’, começou ele, ‘os ex-combatentes católicos da
guerra’; ‘Não estou aqui para responder aos veteranos católicos da guerra’,
interrompi-o. Esta é uma conferência de imprensa. ‘Por que você não se tornou
um cidadão americano?’, disse outra voz. ‘Não vejo nenhuma razão para mudar
minha nacionalidade. Eu me considero um cidadão do mundo’, respondi.”
Chaplin continua: “Houve uma grande agitação.
Duas ou três pessoas queriam conversar ao mesmo tempo. No entanto, uma voz
dominou as outras: ‘Mas você ganha dinheiro nos Estados Unidos’. ‘Bem’, eu
disse, sorrindo, ‘se você falar de uma perspectiva de negócios, vamos direto
aos fatos. Meus negócios são internacionais; setenta por cento da minha renda
eu ganho no exterior, e os Estados Unidos tributam cem por cento. Então, você
vê, eu sou um hóspede muito bem pago’”.
Mais: “O da Legião Católica atacou novamente
com voz estridente: ‘Quer você ganhe seu dinheiro aqui ou não, nós que
desembarcamos nas costas da França lamentamos que você não seja um cidadão
desta nação’. ‘Você não é o único homem que desembarcou nessas praias’, eu
disse. ‘Meus dois filhos também estavam lá, no exército de Patton, firmes na
linha de frente, e eles não saem por aí se gabando ou explorando o fato, como
você está fazendo’. Eu gostaria de dizer a eles que quanto mais cedo eu
estivesse livre daquele ambiente carregado de ódio, melhor, que estava farto
dos insultos e da moral hipócrita da América, e que a coisa toda era um grande
incômodo. Mas tudo o que eu tinha estava nos Estados Unidos e estava com medo
de que eles pudessem encontrar uma maneira de confiscá-lo. Agora eu poderia
esperar qualquer ação inescrupulosa deles”. •
Publicado na edição n° 1347 de CartaCapital, em 05 de fevereiro de 2025.
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