sábado, 1 de fevereiro de 2025

Tecnoutopia ou tecnofraude? - Pablo Ortellado

O Globo

Na periferia de São Paulo espalhou-se pelo boca a boca que qualquer um poderia “vender sua íris” por R$ 500 nas lojas de um aplicativo de celular chamado World. A notícia logo chegou às autoridades e pautou a imprensa. A Autoridade Nacional de Proteção de Dados pediu esclarecimentos à empresa. A imprensa cobriu a história com certa dificuldade técnica e uma saudável dose de desconfiança. Afinal, porque uma empresa americana, fundada por Sam Altman, do ChatGPT, pagaria ao brasileiro que quiser escanear a sua íris?

A empresa em questão se chama Tools for Humanity (Ferramentas para a Humanidade) e oferece o equivalente a R$ 500 em criptomoedas a quem fizer a verificação de humanidade única por meio do World.

A Tools for Humanity criou um protocolo de prova de humanidade única por meio do escaneamento da íris humana, traço biométrico mais preciso que a impressão digital. O protocolo certifica que determinada pessoa é um ser humano único — e não um robô de inteligência artificial. A empresa argumenta que, entre outros potenciais usos, isso poderia ser útil caso plataformas como X adotassem o sistema, marcando contas verificadas como operadas por humanos, em contraste com contas automatizadas.

O protocolo implementa uma série de medidas de segurança para proteger esse dado biométrico sensível. Primeiro, o usuário cria uma conta num aplicativo móvel. Em seguida, deve se dirigir a um ponto de certificação para escanear sua íris usando um dispositivo futurista chamado Orb. Em São Paulo, há 54 lojas onde o escaneamento pode ser agendado.

No momento do escaneamento, a íris é convertida numa sequência, um código único que, segundo a Tools for Humanity, não é armazenado nem no Orb nem em servidores. O que é armazenado é uma chave derivada, produzida com técnicas criptográficas de mão única. Ela funciona como um identificador único, distinto do sequenciamento da íris. Se a mesma pessoa tentar se registrar novamente, o sistema gerará uma chave semelhante, permitindo detectar e impedir cadastros duplicados. No entanto, como essas técnicas criptográficas modificam o código e operam apenas em uma direção, não é possível reconstruir o sequenciamento original da íris a partir da chave derivada. Isso garante que os dados biométricos do usuário permaneçam protegidos. É um sistema engenhoso e, até onde posso ver, seguro.

A controvérsia nas ruas e na imprensa se concentrou na privacidade dos usuários, seja pelo medo popular de “vender a íris”, seja por preocupações mais técnicas das autoridades de dados a respeito da robustez do sistema de proteção à privacidade. Embora a proteção de dados biométricos mereça preocupação, a inquietação deveria estar voltada aos propósitos obscuros: por que um projeto com aplicações potenciais tão vagas escalou com velocidade tão rápida e recebeu tamanho investimento?

Como incentivo à adesão, quem fizer a prova de humanidade receberá cerca de R$ 500 na criptomoeda do projeto, a World (a conversão para reais é simples e pode ser feita alguns dias depois do escaneamento). Só no Brasil foram certificadas cerca de 500 mil pessoas e, portanto, distribuídos R$ 250 milhões. No mundo todo, foram certificadas quase 11 milhões. Significa que foram distribuídos centenas de milhões de dólares em criptomoedas e outros prêmios. Não foi só em São Paulo que a expansão da certificação a partir de populações pobres gerou apreensão. Aconteceu o mesmo na Cidade do México, em Buenos Aires e em países africanos, onde as recompensas eram de menor valor.

Os objetivos declarados do projeto são bastante vagos, e esses propósitos nebulosos, combinados com o altíssimo investimento, despertam suspeitas justificadas. Em algumas entrevistas, um dos fundadores do projeto, Sam Altman, CEO da OpenAI (empresa que faz o ChatGPT), sugere que a Tools for Humanity está criando o que pode ser a infraestrutura tecnológica da Renda Básica Universal — uma política de transferência de renda, como nosso Bolsa Família, mas sem qualquer tipo de condicionante, para todos os cidadãos. No Brasil, a ideia é historicamente defendida por Eduardo Suplicy. Altman é um entusiasta da Renda Básica Universal e acredita que sua adoção política será necessária para mitigar a destruição de empregos que a inteligência artificial acarretará. Com o protocolo da Tools for Humanity, haveria uma identificação de cada ser humano e uma carteira digital para a qual transferir os valores dessa renda básica.

Pode ser que o objetivo da Tools for Humanity seja nobre e altruísta como seu nome — mas, se é assim, por que a falta de transparência? Pode ser também que busque apenas difundir o uso da criptomoeda do projeto ou tenha outro propósito que não se pode ainda ver. Seja como for, expandir a adesão a um protocolo por meio de uma campanha que explora a vulnerabilidade econômica dos pobres em países em desenvolvimento certamente não parece ético.

 

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