sexta-feira, 22 de junho de 2018

Bruno P. W. Reis: *Um Réquiem para os Partidos?

Sistema partidário no Brasil, daqui para o futuro

*Este artigo foi retirado da edição de maio de 2018 do Journal of Democracy em Português — publicação do Plataforma Democrática, uma iniciativa da Fundação FHC e do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais.

Tema canônico da ciência política, objeto de uma apreciável linhagem de estudos clássicos (Duverger 1951, Lipset & Rokkan 1967, Sartori 1976, Katz & Mair 1995), o estudo dos sistemas partidários recebeu novo respaldo com a publicação recente, no âmbito do projeto Varieties of Democracy (V-Dem), de um trabalho que aponta a institucionalização do sistema partidário como um dos principais preditores da longevidade da democracia, ao lado de (porém mais que) a sociedade civil (Bernhard et al. 2015).

O argumento sobre a importância da sociedade civil para a democracia remonta pelo menos à primeira metade do século 19, quando Tocqueville empreendeu longa viagem aos Estados Unidos e reuniu suas impressões num volume de vasta repercussão junto a seus contemporâneos e sua posteridade, dos dois lados do Atlântico (Tocqueville 1835). A tradição tocquevilleana na compreensão da democracia ganhou sua fórmula no cultivo da “arte da associação”. Para muito além da obra e do tempo de seu fundador, essa tradição deitou raízes fundas na compreensão partilhada pelos próprios americanos sobre as fundações de seu sistema político, conformando o eixo central do pluralismo que estruturou a ciência política norte-americana no século 20 sobre o alicerce da postulação de uma teia de interesses tecida por filiações múltiplas dos cidadãos a organizações que se entrecruzavam em suas disputas e interesses partilhados (Truman 1951, Bentley 1955, Dahl 1956).

Comparado ao lugar explanatório central ocupado pela sociedade civil na tradição tocquevilleana de compreensão da democracia, um sistema partidário estável (ou “institucionalizado”) tende a comparecer antes como variável dependente. Afinal, basta uma consulta ao Contrato Social de Rousseau (1762) para se constatar que os partidos políticos não necessariamente fazem parte do cânone doutrinário sobre democracia e soberania popular. Partidos não estão previstos na Constituição dos Estados Unidos da América e — pelo menos em tese, a depender do sistema eleitoral adotado — não necessariamente serão indispensáveis à realização de eleições. No entanto, alinhamentos e identidades partidárias, bem como a organização subsequente, parecem emergir de maneira quase instantânea onde quer que se organize alguma competição eleitoral pelo poder político. Nesse sentido, como propriedade emergente da rotinização democrática, a presença de um sistema de partidos tenderá a ser tomada antes como sintoma característico da existência de uma democracia saudável que como sua explicação. Porém, poucos atributos de uma democracia terão mecanismo de retroalimentação positiva tão imediatamente plausível como a decantação estável do alinhamento de interesses e a absorção institucional de conflitos potenciais implicadas na institucionalização do sistema partidário. Crucialmente, no que diz respeito à dinâmica da competição intra-elite, tão frequentemente desestabilizadora, a cristalização de um sistema partidário reforça o interesse da elite política na manutenção do regime, comprometendo-a com a preservação do status quo.

Embora se ocupe primariamente de um caso, o do Brasil, este não é primariamente um trabalho empírico. Não apresenta e testa uma hipótese confrontando-a com dados sistematicamente produzidos. É antes um ensaio rumo a um diagnóstico que tenta ser prospectivo quanto à dinâmica esperada para a vida partidária no Brasil, que confronta a conjuntura brasileira com aquilo que a literatura disponível sobre partidos, sistemas partidários, democracia e estabilização democrática nos permite divisar.

O que é uma democracia consolidada?
Tomado seriamente, o problema da “consolidação democrática” nada tem de trivial. A consolidação de um quadro institucional para o balizamento dos conflitos sociais configura um sistema complexo de coordenação de expectativas mútuas, em que eu me atenho à norma caso espere que outros também se atenham a ela, mas me disponho a violá-la em proveito próprio diante da expectativa de violação por meus rivais (Taylor 1976, 1987; Axelrod 1984; Skyrms 2004). De fato equilíbrios na interação estratégica entre milhões de agentes tendem a exibir considerável resiliência, e não deve surpreender que se apresentem aos olhos das pessoas a eles submetidas como um estado “natural” do mundo, cuja reversão habita o reino da utopia — ou o dos pesadelos. Aceitando o risco de certo exagero em favor de uma imagem para ilustrar o argumento: rupturas institucionais talvez sejam inconcebíveis até o momento em que se tornem inevitáveis. Elas nunca serão, nesse enquadramento, uma possibilidade que se mantenha no horizonte rotineiro das pessoas que vivem sob um sistema político qualquer.

No momento em que se torna plausível que alguém esteja cogitando da ruptura, os atores políticos tendem a precipitá-la, mesmo involuntariamente: ao incluírem a ruptura em seus cálculos, uma corrida pela antecipação da iniciativa alheia tenderá a instalar-se. Tudo isso nos induz a superestimar a consolidação e a institucionalização de regimes políticos tão logo eles se tornem minimamente rotinizados — e assim a trivializar o complexo problema do equilíbrio político-institucional. Seja por desejo orientado normativamente ou por resignação conformista, dissemina-se uma irresistível tendência à reificação do status quo — e assim o mundo tenderá a ser constituído, em nossa percepção cotidiana, por estereótipos de ditaduras mais ou menos sanguinárias e democracias relativamente consolidadas. Por temor de profecias que se autocumprem (ou mesmo por seu efeito real) e pela delicada coordenação de expectativas implicada na estabilização de um regime político, tende a ser inviável a operação rotineira de um regime percebido como não consolidado.

Mas o que é uma democracia consolidada? Ou, mais propriamente, sob que condições poderemos acreditar haver-se consolidado um regime democrático, tornando-o invulnerável às vicissitudes da disputa política? Sob um ponto de vista mais ambicioso, pode-se dizer que um regime político está consolidado quando os valores e princípios que orientam e animam suas instituições e sua constituição encontram ressonância disseminada na adesão sincera da população a esses mesmos princípios e valores. Algo análogo à tese da congruência entre os sistemas de autoridade presentes na população e no sistema político, a que se referiu Eckstein (1966), e que tratei como “sacralização” das instituições pela população (Reis 1997).

Contudo, formulado assim ambiciosamente, o conceito de “consolidação democrática” é um tipo ideal, referência analítica potencialmente relevante no plano heurístico, mas virtualmente inexistente de fato. Haverá alguns poucos casos em que a justificação ideológica de um regime político encontra ressonância análoga nos corações e mentes de seus cidadãos e enraizamento em suas tradições e rituais públicos ao ponto de proverem-se de um cinturão de proteção plausivelmente eficaz contra um “ataque carismático”, ou seja, a desestabilização súbita de suas instituições e procedimentos pela promoção de alguma agenda alternativa de princípios e valores (Eisenstadt 1968). Talvez os Estados Unidos com sua devoção semi-religiosa a seus “Founding Fathers” (não obstante o que as elites políticas efetivamente fazem desse legado), a Inglaterra e boa parte de suas ex-colônias, com seu orgulho muito peculiar de tradições e rituais políticos que seriam obsoletos em qualquer outra parte, bem como alguns poucos países nórdicos, notadamente os escandinavos com o sentimento de segurança material associado a seu regime de bem-estar social. Não muito mais que isso. Sob um critério exigente como este, é forçoso reconhecer que o Brasil se encontra a anos-luz de distância de poder ambicionar semelhante congruência ou retroalimentação positiva. Não há procedimento ou instância decisória cujos critérios e princípios não se encontrem abertos a disputa — e, no plano da assim chamada cultura política, o Brasil tende a figurar frequentemente entre os países mais autoritários do planeta, receptivo a líderes fortes e extraordinariamente pouco propenso à confiança interpessoal (Inglehart, 1997).

Naturalmente, não pretendo afirmar que todos os países do planeta com exceção dos escandinavos e anglo-saxões estejam sujeitos a deslizar para uma ditadura a qualquer momento. Para além desse parâmetro ideal-típico de um conjunto de procedimentos institucionalizados tão profundamente enraizados nos valores e costumes da sociedade, deverá haver critérios operacionais mais finos que permitirão estimar a consolidação relativa, maior ou menor, de um regime político. Estamos longe, nós mesmos, de lograr uma fixação desses critérios. Mas é possível esboçar um repertório preliminar de traços favoráveis à operação de democracias.

O primeiro deles consiste daquilo que Levitsky e Ziblatt (2018, cap. 5) chamaram recentemente de soft guardrails of democracy: fundamentalmente, tolerância mútua e autocontenção (forbearance) institucional. Consistindo de disposições normativas que poderão orientar e balizar a interação estratégica entre os atores políticos, esses anteparos atitudinais ainda pertencem ao domínio da cultura. Contudo, com efeitos mais imediatos sobre a dinâmica interna da disputa política, sua presença ou ausência será mais claramente identificável que a vaga congruência entre os valores do sistema e as disposições presentes na população. Apesar da relativa clareza de sua maior ou menor presença na cena política, esse “fair play” implicado no par tolerância e forbearance não se produz por mera boa vontade dos protagonistas da política. Pois dificilmente alguém pode aderir unilateralmente ao fair play se seus adversários não fizerem o mesmo. Assim, a disseminação da tolerância mútua e do comedimento tático está sempre sujeita a círculos virtuosos (equilíbrios cooperativos) e círculos viciosos (equilíbrios não cooperativos) difíceis de romper — principalmente à medida que cresce o número de atores envolvidos (Olson 1965). Não sendo um traço institucional ele mesmo, esse fair play é um atributo emergente de um processo descentralizado de respostas adaptativas, estrategicamente orientadas, que atores políticos dão aos estímulos de um dado ambiente. Ainda assim, sob determinadas condições tipificáveis, o fair play entre os atores políticos pode entrar em colapso ou (mais raramente) se afirmar de maneira bem mais rápida e observável que eventuais mudanças no conteúdo das orientações valorativas disseminadas na população. Não por acaso, já há 60 anos um autor tão central quanto Robert Dahl (1956) pôde apontar a insuficiência do desenho institucional e a importância de mecanismos análogos como pré-requisitos da proteção contra a tirania.

Movendo-nos adiante, agora para além do plano da cultura rumo aos efeitos de atributos estruturais da sociedade na consolidação de democracias, voltamos a nosso ponto de partida, a sociedade civil. É difícil encontrar atributo de status mais canônico na teoria política na explicação da estabilidade democrática que a organização e autonomia da sociedade civil. Até por trazer uma replicação da “grande política” para a experiência cotidiana da cidadania, um associativismo civil vigoroso, de saída, aumenta a plausibilidade da disseminação dos princípios e valores do sistema político no interior da população. De fato, o argumento que confere centralidade à “arte da associação” na vida democrática foi classicamente plasmado por Tocqueville ainda na primeira metade do século 19, e esteve claramente presente na fixação do cânone pluralista que estruturou a ciência política norte-americana em meados do século 20. Está presente na elevação dos custos da repressão a que se referiu Dahl na Poliarquia (1971); na “indisponibilidade das não-elites” por cuja presença Kornhauser (1959) traçou sua distinção entre as sociedades pluralistas e as “sociedades de massa”; na prescrição das “filiações múltiplas”, multidimensionais e entrecruzadas, que protegeriam a sociedade política contra o risco de fraturas mais graves em sua tessitura ao sabor de conflitos que oporiam entre si parcelas mais largas da população (Truman 1951 e Lipset 1960, apud Lijphart 1975).

No interior do vasto conjunto de organizações civis que compõem o repertório organizacional de ativação política da sociedade, há um subconjunto específico que se situa precisamente na confluência desse associativismo com os processos decisórios típicos do exercício do poder, e por isso sua configuração é decisiva para a dinâmica de um sistema político democrático: os partidos.

Partidos e longevidade da democracia
Oficializados como protagonistas incontornáveis da disputa eleitoral com a disseminação do sistema de representação proporcional a partir de 1899, os partidos políticos estruturaram, ao longo do século 20, as identidades políticas e a competição eleitoral nas democracias. Naturalmente, eles já exerciam protagonismo como propriedades emergentes mais ou menos inevitáveis da competição política mesmo antes, como os partidos de quadros emergentes de cliques parlamentares na Europa (Duverger 1951) ou como facções intraministeriais que rapidamente se ramificam em máquinas político-eleitorais, tal como se deu nos EUA desde o primeiro governo de George Washington (Divine et al. 1990). Mas a criação e a rápida disseminação da representação proporcional tornou-os, a partir de então, veículos oficiais, formalmente reconhecidos como os portadores das identidades políticas a serem proporcionalmente representadas nos parlamentos.

Embora eles hoje exibam sinais de fadiga mundo afora, os partidos políticos se desincumbiram admiravelmente bem da tarefa. Por décadas, mal conseguíamos conceber a expressão de identidades políticas para além dos partidos. Situados na precisa confluência entre organização da militância social, canalização e agregação de demandas e identidades emergentes na sociedade civil, expressão eleitoral das identidades e clivagens políticas resultantes, proposição de políticas, organização da atividade legislativa e fornecimento de quadros para os governos, os partidos políticos não apenas engolfaram o nexo entre sistema político formal e sociedade civil, mas ao fazê-lo canalizaram e institucionalizaram conflitos que sob outras circunstâncias tenderam a degenerar em violência. Sob o império dos partidos, os espasmos cíclicos de violência cederam terreno à barganha institucionalizada e à acomodação racional de interesses. Por intermédio de um sistema partidário institucionalizado, as várias facções de cada elite política nacional encontraram um mecanismo pelo qual se tornavam sócias de um condomínio que disputava entre si o exercício direto do poder e, ainda mais importante, barganhava internamente as decisões a serem tomadas. Com a estabilização da disputa partidária, a elite política passa a compartilhar um interesse comum na preservação do sistema, desinteressando-se da conspiração em favor do próximo golpe insurrecional. Infelizmente, esse mesmo mérito pareceu ignóbil a muitos observadores, propensos a deplorar o “cretinismo” ou a “corrupção” da vida parlamentar, inclinados a uma concepção mais heroica (e violenta) da política (Lenin 1918). Alguns viveram o bastante para lamentar a hostilidade antes dedicada ao governo parlamentar, como Gaetano Mosca, signatário em 1925, sob o jugo de Mussolini, de um “Manifesto dos Intelectuais Antifascistas”.

Tudo isso torna a força e estabilidade do sistema partidário um natural preditor da longevidade de uma democracia, tal como observado por Bernhard et al. (2015). Na medida em que os partidos situam-se justamente na confluência entre a sociedade civil e o sistema político formal, a institucionalização de um sistema partidário, mais que uma explicação alternativa, não deixa de constituir-se em indicador indireto da congruência (preconizada por Eckstein 1966) entre o mapa dos interesses e valores da sociedade civil e os princípios organizadores do sistema político. Tudo mais mantido constante, níveis mais altos de organização e de autonomia da sociedade civil tenderão a engendrar sistemas partidários de enraizamento mais profundo na sociedade, favorecendo certa reflexão do mapa associativo pelos partidos, maiores índices de identificação partidária na população e, consequentemente, maior estabilidade esperada tanto do quadro partidário como do regime político. Naturalmente, vários atributos relevantes para a conformação geral do sistema partidário (tais como o número de partidos relevantes, a polarização relativa etc.) serão decisivamente influenciados pelo sistema eleitoral e pela ordem institucional vigente (Sartori 1976). Mas o sistema eleitoral, sendo atributo institucional explícito do quadro legal, é sempre modificável e portanto endógeno em certa medida — em que pese a eventual cristalização de impasses que podem eternizar um sistema para além de inclinações mais imediatas da elite política.

Seja como for, o que importa aqui é que, diferentemente do sistema eleitoral, a elite política não controla inteiramente a conformação que deseja emprestar ao sistema partidário. Por mais difícil que possa se mostrar a obtenção das maiorias necessárias para mudanças do status quo, o sistema eleitoral é inteiramente modificável por fiat legislativo e nada impede que seja inteiramente renovado e modificado entre uma eleição e outra. Já o sistema partidário, por sua vez, é uma propriedade emergente do sistema, não definível em lei, sequer inteiramente explicável ou preditível em sua conformação exata pela observação de outros fatores do sistema político. Pois o sistema partidário é influenciado não apenas pelo sistema eleitoral adotado, mas também por sua complexa interação com a configuração institucional mais ampla (federal ou unitária, consociativa ou majoritária etc.) e mesmo por atributos mais estruturais da sociedade, como o grau de organização e autonomia do associativismo civil, já aludidos, e também níveis de pobreza e desigualdade, renda per capita, tamanho da economia, urbanização, especialização ou diversificação produtiva etc.

Sob esse enquadramento, o resultado encontrado por Bernhard et al. (2015) ganha nova perspectiva. Não apenas a institucionalização do sistema partidário é uma hipótese alternativa à força da sociedade civil, mas é mesmo um mecanismo crucial pelo qual uma sociedade civil autônoma e organizada se faz presente no processo decisório. E, mais importante, se o sistema partidário institucionalizado é o melhor preditor da longevidade da democracia e ao mesmo tempo é uma propriedade emergente não inteiramente controlável por desenho institucional, então o cultivo de um sistema partidário é uma das mais importantes tarefas a que se pode dedicar uma democracia que aspire à longevidade.

Conceda-se: há sistemas eleitorais que, pelo menos em tese, podem prescindir inteiramente dos partidos em sua organização interna e na atribuição de cadeiras — e acomodam com relativa naturalidade candidaturas não partidárias. São os chamados sistemas majoritários, que simplesmente elegem os nomes mais votados em dado distrito, e que podem ser exemplificados tanto no majoritário uninominal anglo-saxão (que tendemos a chamar de distrital) como no voto único não transferível, excentricidade que temos cogitado adotar sob o nome de “distritão”. Esses são sistemas que não supõem partidos na apuração de seu resultado e que, portanto, poderiam em princípio existir e operar, bem ou mal, de maneira bastante independente da existência e organização dos partidos políticos.

Note-se, porém, a ironia de que os sistemas majoritários existentes abrigam alguns dos mais robustos e inamovíveis sistemas partidários do mundo. Um exemplo é a multissecular polarização Tories/Whigs na Grã-Bretanha, substituída há quase um século pela atual Tories/Labour. Outro, o inexpugnável duopólio americano entre republicanos e democratas, que já dura 150 anos. Embora nem a Constituição norte-americana nem seu sistema eleitoral previssem partidos, eles emergiram de forma espontânea da disputa política, não no Congresso, mas no interior do gabinete no primeiro mandato de Washington, do choque entre o Secretário do Tesouro Alexander Hamilton, primeiro boss do efêmero partido Federalista, e o Secretário de Estado Thomas Jefferson, que se tornaria patrono do partido Democrata-Republicano, berço do atual Democrata (Divine et al. 1990: cap. 7). Uma vez fixados os blocos, distritos com poucas cadeiras dificultam a entrada de novos grupos na disputa, cristalizando o jogo do poder em poucas, grandes organizações.

Foi também por isso que, na segunda metade do século 19, uma vasta campanha civil, com o apoio de ícones liberais como John Stuart Mill (1861), bateu-se na Europa pela representação proporcional. Afinal adotada de modo pioneiro na Bélgica, em 1899, foi recebida como uma vitória da sociedade civil sobre a elite política, e rapidamente disseminou-se pelo continente nas três décadas seguintes (Blais, Dobrzynska & Indridason 2004). Nesse sistema os partidos são, afinal, institucionalmente oficializados: ao distribuir as cadeiras segundo a votação de cada partido a partir de listas de candidaturas pré-ordenadas, a representação proporcional supõe e requer sua existência e regulação, e consagra os partidos políticos como peça formalmente integrante do kit operacional da democracia eleitoral moderna. A partir dali, emerge o multipartidarismo moderado que vai conformar a política de coalizões parlamentares típica do século 20.

A identificação do eleitorado com os partidos está em queda no mundo todo, talvez em virtude de um efeito combinado da viabilização de certo ativismo virtual na internet, de um lado, com a crescente impotência de governos nacionais sob a globalização, do outro. Mas, mesmo que os partidos estejam de fato tornando-se obsoletos, isso não significa que saibamos o que fazer sem eles, ou que a democracia esteja funcionando melhor com os partidos enfraquecidos. Não está.

Com o declínio da identificação partidária no mundo todo, o enfraquecimento da face sindical do associativismo civil e a disseminação de certo ativismo virtual pela internet (Dalton &Wattenberg 2000), parece se impor o prognóstico de um declínio irreversível dos partidos como os conhecemos no século passado. Pessoalmente, compartilho a preocupação. Contudo, mesmo que o prognóstico esteja correto, isso não significa que nós saibamos como continuar a perseguir um regime democrático sob esse novo cenário de partidos enfraquecidos. As redes e a internet nos dão a opção da ação direta — e, assim, nos dão a ilusão de um “protagonismo difuso”. Porém, por razões puramente relacionais, ligadas à topologia das redes implicadas (Barabási 2002), não podem existir protagonismos difusos. O poder será exercido a partir de centros com maior centralidade nas redes de poder, tenham ou não se constituído deliberadamente para tal. Isto se dará de maneira ostensiva e pública pelo Estado — idealmente controlado por uma rede autônoma e responsabilizável de organizações. Ou então, de maneira sub-reptícia e extralegal, pelos detentores de poder econômico. Por isso tenho sustentado que, malgrado aparências em contrário, de fortalecimento da posição do cidadão desorganizado que se manifesta individualmente pelas redes, são os detentores de poder econômico os beneficiários da fragilização das associações e dos partidos na política (Reis 2015).

De fato, porém, a crítica e a desconfiança em relação aos intermediários na política chegou para ficar. Uma vez viabilizada a manifestação descentralizada por todos, instala-se uma rejeição difusa, tecnologicamente condicionada, de toda burocratização da política, aprisionada não só no interior das instituições parlamentares — mas também nas associações formais, nos sindicatos e nos partidos. O desafio que se apresenta para a democracia é tremendo. Dispensar intermediários, mais do que promover o autogoverno, nos priva de cruciais instâncias de responsabilização política, sem as quais nos veremos desprovidos de mecanismos de controle (precários que sejam) sobre elites que fatalmente se formarão.

Essa conclusão talvez seja contraintuitiva, e mereça esclarecimento. Como o noticiário sobre corrupção , mundo afora, invariavelmente implica fortemente as estruturas dos principais partidos, hoje largas fatias de opinião se inclinam (e não apenas no Brasil) por se livrarem deles (nem que seja, ingenuamente, apenas dos partidos “existentes”) como forma de combate à corrupção. Como partidos são mediadores entre organizações civis e as decisões políticas (e, nessa condição, tornam-se os principais corretores da barganha política junto ao público), sua mera existência realmente faz deles atratores de um esforço por atores interessados em cooptá-los. Ou seja, eles sempre, por definição, operam sob assédio sistemático de representantes de interesses econômicos distintos, uns inevitavelmente mais poderosos que outros, orientados para influenciar (e, se for possível, comprar) suas plataformas. Como isso fatalmente os corromperá, em alguma medida, cria-se a ilusão de que poderíamos estar melhor sem os partidos.

Nada é tão simples, porém. Na falta de partidos fortes, a influência econômica se dá de maneira muito mais desimpedida mediante ação direta de interesses econômicos junto às esferas decisórias burocráticas (Cardoso 1974: 201–9). Sem partidos, ou com partidos fracos, fica bem mais barato comprar decisões políticas. Sob uma aparente eficiência, se oculta — com partidos frágeis — um sistema político estruturalmente muito mais corrupto. Apenas as denúncias serão mais raras.

Mais que nos livrarmos de partidos para evitarmos a presumível predação de uma sociedade virtuosa por políticos corruptos, o desafio reside antes no contrário, que é concebermos maneiras de organizar a representação dos interesses conflitantes na sociedade pelos políticos num sistema que consiga fazê-lo de maneira equânime em virtude de uma proteção minimamente eficaz da representação política contra o assédio pelo poder econômico. Para recorrer a uma fórmula precisa, trata-se de constituir um sistema político que, sendo perfeitamente poroso a todos os interesses existentes, não se deixe capturar por nenhum deles (F.W. Reis 2009: 28–9). Em vez de proteger a sociedade contra os políticos, o desafio mais árduo da viabilização do ideal democrático reside no esforço de proteger o sistema político contra a manifestação crua das assimetrias de poder econômico oriundas do conflito de interesses na sociedade. O dilema implícito reside em que esse esforço envolverá fatalmente alguma equalização de condições sociais — algo que, percebido como ameaça por atores economicamente poderosos, poderia vir a desestabilizar o regime político.

Nenhuma coleção de mecanismos de transparência e/ou de dispersão de poder decisório poderá ser, em si mesma, suficiente para evitar esse assédio aos partidos por atores interessados em usar seus recursos de poder para influenciá-los. O combate à corrupção é tarefa permanente do Estado, assim como o desenvolvimento de sistemas antivírus é tarefa com a qual a ciência da computação terá de viver eternamente, por mais que eles imponham custos à economia: cogitar da erradicação da corrupção é como esperar a extinção dos sistemas oportunistas de violação de segurança em informática. E o propósito último do combate à corrupção é a proteção do exercício desimpedido da soberania popular, protegida contra abusos de poder econômico. Não para sua tutela por órgãos burocráticos que se permitam decidir o que o eleitorado pode ou não decidir. Para tanto devem ser fixadas ex ante rotinas e protocolos de vigilância e controle sobre as campanhas eleitorais e sobre as decisões governamentais. Essas rotinas e esses protocolos têm de ser, eles próprios, estritamente subordinados à letra da lei, e os inquéritos deles decorrentes têm de subordinar-se ao devido processo legal, sob o império de todas as necessárias garantias constitucionais ao livre exercício da representação política. Caso contrário, nos expomos ao risco de matarmos o doente com o remédio.

Note-se, a propósito, que a corrupção não “emerge”, como se jamais tivesse estado lá e de repente passasse a existir. Ela consiste, fundamentalmente, de práticas de favorecimento pessoal e patronagem que constituem o modo normal de exercício do poder político em contexto pré-democrático. À medida que um sistema político se impessoaliza, burocratiza e, se tudo der mais ou menos certo, se democratiza, aquelas mesmas práticas tradicionalmente aceitas como normais vão progressivamente passar a ser enquadradas como corruptas. Naturalmente, isso não vai fazer com que elas deixem de existir de modo instantâneo. Elas continuarão lá, embora cada vez mais coibidas, à medida que um aparato eficaz de controle se afirme paulatinamente, impondo a observância da lei e mudando os costumes.

Podemos punir, controlar e, em alguma medida, minimizar o que consideramos como corrupção? Claro que sim. Mas note-se que, por mero efeito da democratização em si mesma, o leque de práticas que nos parecerão inaceitáveis irá sempre se alargando, à medida que aumenta nossa sensibilidade para violações da norma democrática que antes eram tidas como normais. E isso tenderá a dar a impressão de que a corrupção cresce, pelo simples fato de que nossa tolerância a procedimentos não universalistas diminui. A menos, porém, que reduzíssemos todas as disputas a um sonho (ou pesadelo) tecnocrático em que todas as decisões políticas fossem objeto de decisão estritamente administrativa, algum espaço para acomodação e barganha entre interesses contraditórios sempre persiste no sistema (felizmente). E essa barganha, com seu inevitável aspecto contingente, estará sempre sujeita a desqualificação pelos insatisfeitos como mais ou menos “corrupta”.

E adivinhem quais são as organizações que ocupam exatamente a função de aglutinar e promover interesses parciais rumo a arranjos decisórios mutuamente aceitáveis entre setores sociais em disputa? Eles mesmos, os partidos políticos. Eles serão, portanto, sempre objeto de esforços por atores interessados em comprar as decisões que lhes convêm. Por mais que se blindem os quadros militantes partidários, alguns sempre irão ceder, incorrendo em práticas eventualmente tipificadas como corruptas por lei. Além disso, mesmo um acordo “honesto”, isento de práticas proibidas, sempre tenderá a ser denunciado como corrupto por seus adversários, insatisfeitos com o resultado da barganha: assim com certa frequência tendemos, com excessiva liberalidade, a chamar todo “fisiologismo” de corrupção, de maneira imprópria, que confunde o acerto lícito entre interesses particulares com o suborno ilegal ao servidor público. Mais recentemente, numa deriva rumo a um beco sem saída jurídico-político, temos naturalizado o hábito de admitir como possível propina qualquer tipo de doação feita a candidato, mesmo legalmente declarada.

Quaisquer que sejam as organizações que venham porventura a ocupar o lugar de mediação que os partidos hoje ocupam, temos todas as razões para esperar que elas venham a ser alvo do mesmíssimo esforço por corruptores ativos e terminem fatalmente corrompidas, em maior ou menor medida. É impossível exercer essa função de mediação sem pagar este preço. Independente do tamanho do Estado, o sistema político é, por definição, o árbitro e mediador último do conflito de interesses na sociedade. Imaginar que essa disputa, mesmo quando pacificada, poderá se dar nos estritos limites da persuasão intelectual apoiada em princípios é claramente irrealista — e potencialmente autoritário. Se tudo correr bem, acordos políticos, ajustes negociados entre interesses contrários deverão ser feitos, e haverá melhor controle da população sobre o teor desses acordos se partidos políticos vigorosos forem mediadores relevantes no processo do que se essa mediação esfarelar-se em múltiplas organizações pequenas e instáveis. O problema no Brasil é antes a fraqueza que a força dessa mediação partidária. Nada ganharemos ao enfraquecê-la ainda mais.

Não é rara a queixa na imprensa quanto a uma presumida falta de nitidez programática ou ideológica dos partidos brasileiros. Mesmo que ela fosse procedente, porém, é duvidoso que esse eventual atributo os tornasse relativamente frágeis e dispensáveis. Para além dos efeitos que as listas abertas de fato possam produzir na diluição dos rótulos partidários no Brasil, é uma fantasia, conquanto frequente, a ideia de que partidos sejam agrupamentos primariamente ideológicos, aos quais se alinham vários interesses por afinidade programática. É antes o contrário. Partidos emergem de alinhamentos relativamente imprevisíveis que se dão com a rotinização da vida eleitoral e parlamentar, a partir dos quais se cristalizam alianças mais ou menos estáveis de pessoas e grupos, em busca de apoio mútuo em suas disputas com seus respectivos adversários imediatos. Depois essas alianças buscarão racionalizar seus motivos sob a forma de uma apresentação de princípios normativos abstratos que viabilizem, pela síntese, sua apresentação coletiva diante do público, sobretudo em campanhas eleitorais. Ou seja, primeiro se dá o alinhamento de interesses pragmáticos; depois vem sua racionalização ideológica num programa partidário. Não o contrário.

Quase sempre o discurso ideológico sobre Estado mínimo etc. mal disfarça a voracidade de interesses poderosos em favor de uma selva econômica onde valha com o mínimo de embaraços a lei do mais forte. De modo recíproco, na rejeição ao mercado com frequência mal se disfarça o discurso da autoproteção, da manutenção de privilégios herdados, semiaristocráticos, por grupos quasi-estamentais contra a competição mercantil. Mas há também um sentido em que “mais mercado” pode ser progressista, na medida em que venha a produzir competição onde ela mal chegou ainda. Há muita gente bem estabelecida que quer proteção para a sua posição e se permite uma retórica antimercado que quer dizer mesmo é perpetuação de privilégio semi-aristocrático. Alinhamentos de diferentes grupos a esses polos tenderão a se dar de maneira relativamente imprevisível em seus detalhes, ao sabor das clivagens determinadas pela agenda política de cada conjuntura, que legará diferentes alinhamentos ao futuro em cada caso (Schattschneider 1960). O ponto mais relevante nisso tudo é que “mais mercado”, neste último sentido, não requer “menos Estado”, mas talvez “mais Estado”, ou pelo menos a plena afirmação de um Estado mais institucionalizado e impessoal, que possa atuar de modo confiável como fiador último das relações sociais, inclusive as mercantis, na sujeição de todos, igualmente, à lei. No entanto, como as opções de políticas frequentemente giram em torno de mais ou menos regulação viabilizando mais ou menos competição mercantil, os alinhamentos se darão de maneira independente de filigranas teóricas em torno das linhas gerais mais simples do debate político.

Partidos no Brasil: o bebê e a água do banho
No Brasil, a representação proporcional foi abraçada pelos revolucionários de 1930, ansiosos por se livrarem do modelo majoritário fortemente concentrador vigente até então. Com distritos de cinco nomes onde o partido mais votado garantia pelo menos quatro cadeiras (Tavares 1994: 98), o sistema eleitoral favoreceu a vigência de um sistema partidário composto de virtuais “partidos únicos estaduais”, pouquíssimo competitivo, que redundou no proverbial coronelismo da República Velha, com seus currais eleitorais e suas eleições “a bico de pena”. Embaraçados por esse cenário de partidos únicos estaduais, evitaram as listas pré-ordenadas e se afastaram da ortodoxia quanto ao proporcionalismo partidário com nossas chamadas listas abertas, não-ordenadas, de candidaturas a serem conduzidas individualmente (Pires 2009). Junte-se a isso o grande número de cadeiras frequentemente em disputa em nossos distritos estaduais ou municipais, mais as coligações posteriormente facultadas nessa disputa, e ainda o crescimento vertiginoso de nosso eleitorado ao longo do século 20, e terminamos por configurar, ao longo dos últimos 80 anos, o sistema bastante peculiar de constituição de nossos plenários legislativos, seja em âmbito federal, estadual ou municipal.

Nascido como reação a uma norma fortemente concentradora de poder, o novo cenário, fixado em suas linhas gerais em 1935, tendeu a favorecer, no longo prazo, uma proliferação atípica de partidos, apesar de duas interrupções no processo, em 1966 e em 1980. Hoje — graças também a decisões judiciais contraproducentes na última década — exibimos os plenários legislativos mais fragmentados do planeta. Ademais, com a proliferação de candidaturas individuais em jurisdições tão vastas, produziu-se também um campo de fiscalização difícil e altamente inflacionário quanto às necessidades de financiamento de suas campanhas eleitorais. Acrescente-se a isso legislação esdrúxula, única no mundo, que limita doações privadas proporcionalmente à renda do doador, e terminamos por produzir um ambiente eleitoral financeiramente viciado, que favoreceu por décadas candidaturas aptas a arrecadar somas milionárias a partir de poucos, imensos doadores. No caminho aqueles que logram alcançar a posição de mediadores dos fluxos financeiros a partir de posições de mando na estrutura partidária — donde se explica a baixíssima renovação dos quadros de dirigentes partidários no Brasil.

Num cenário como esse, pode até ser compreensível certa exasperação pública contra os partidos, mas autorizar candidaturas avulsas ou apostar na decomposição do quadro partidário seria a pior coisa que poderíamos fazer, agravando cada um dos males vigentes no caso brasileiro. Mais ou menos como dinamitarmos o dique de uma grande barragem, por termos constatado um vazamento.

No que diz respeito ao mercado eleitoral, com os 25 partidos que hoje se fazem representar na Câmara dos Deputados e ainda o grande número de candidaturas individuais em cada estado, o que precisamos desesperadamente é reconcentrar a demanda por financiamento eleitoral, e não pulverizá-la ainda mais. No que toca à constituição das necessárias maiorias governamentais, ela já é onerosa demais (em todos os sentidos) com a fragmentação atual, e com certeza seu custo aumentaria ainda mais se juntássemos aos plenários um punhado de representantes que não se orientassem por qualquer atuação parlamentar coletiva, mas apenas por suas conveniências estratégicas individuais.

Talvez haja quem queira logo radicalizar e abandonar a representação proporcional, fazendo nossa política regredir ao majoritarismo distrital. Nesse caso, sim, a dinâmica esperada seria outra. Mas iríamos rumo ao extremo oposto, cristalizando um sistema de poucos partidos fortes e elevadas barreiras à entrada de novos atores. Quererão os renovadores fazer esse favor ao MDB, que é o partido mais capilarizado na política municipal pelo interior do Brasil? Quereremos realmente um oligopólio partidário à americana?

O caso brasileiro dos últimos 30 anos é paradoxal. De um lado, uma longa estabilidade na disputa presidencial: nada menos que seis eleições seguidas polarizadas entre os mesmos dois partidos, PT e PSDB, numa sequência aparentemente sem precedentes em sistemas multipartidários. Isso sugeriria peculiar decantação do sistema — sensação reforçada também pelos fortes alinhamentos cotidianamente experimentados por todos os brasileiros nas redes sociais. Por outro lado, porém, o Brasil tem exibido os mais fragmentados plenários parlamentares da história da democracia: a presente legislatura na Câmara dos Deputados chegou a exibir 27 partidos no plenário, com as maiores bancadas abaixo de 15%. Neste momento, após o recente fechamento da chamada “janela” de trocas partidárias de 2018, o número de partidos representados recuou para 25, mas a desconcentração relativa das cadeiras prosseguiu crescente, levando o Brasil a um inédito número efetivo de partidos superior a 17, segundo o índice de Laakso & Taagepera (1979).

Essa ambiguidade se exprime também na literatura recente, com bons trabalhos apresentando diagnósticos conflitantes do caso. Assim, Melo & Câmara (2012), olhando para a disputa presidencial, puderam mostrar de maneira convincente que o sistema partidário se decantava numa polarização estável e Carreirão (2014) pôde redarguir, com o foco mais aberto, que o sistema permanecia fluido e fragmentado. Minha percepção é de que, apesar de uma decantação real das identidades expressas pelo sistema partidário ter chegado a ocorrer na sociedade, contribuindo para a forte estabilização da macrodisputa presidencial, o sistema eleitoral jogou contra a cristalização do quadro partidário no interior das casas legislativas.

Desde que, em 1989, Lula alcançou um improvável segundo turno em sua primeira candidatura presidencial (e, mais improvavelmente ainda, ficou a poucos pontos percentuais da vitória), o PT fixou-se como um pólo claro de identificação partidária e estruturação da disputa eleitoral em âmbito nacional. A queda de Collor e o Plano Real, ainda antes da primeira eleição subsequente, permitiram ao PSDB (que nasceu com muitos quadros mas poucos votos) apresentar-se como o outro pólo da disputa e, apesar da identificação partidária relativamente baixa, fixar-se como o estuário seguro dos votos anti-PT — estabilizando, por 20 anos, uma polarização improvável.

Do outro lado, o sistema eleitoral brasileiro favorece a um ponto inusitado a proliferação de partidos nos plenários legislativos. Sistemas eleitorais proporcionais são o tipo mais frequente no mundo. Mas operam tipicamente por listas partidárias pré-ordenadas. Poucos são os sistemas proporcionais em que a lista não saia pré-ordenada da convenção. E em todos esses estamos tratando de países com população bem menor (como Chile, Finlândia e Polônia) e distritos de magnitude média mais reduzida. Assim, o cenário tão comum entre nós, com centenas de candidaturas (às vezes mais de mil), com prestações de contas individuais, disputando dezenas de cadeiras entre milhões de eleitores, é peculiar ao Brasil.

Com as magnitudes praticadas nos maiores distritos, não são raras as disputas em que o quociente eleitoral desce próximo ou abaixo de 2%. Isto é algo que, sozinho, já tenderia a produzir uma quantidade respeitável de partidos no plenários. Acrescente-se, porém, a possibilidade de coligações nas disputas legislativas, e sequer esse baixo quociente os partidos têm necessariamente de superar para alcançar representação parlamentar, já que basta incluir um quadro seu entre os mais votados de uma coligação que tenha alcançado o quociente. Para além disso, Limongi & Vasselai (2016) mostram efeito da interação com a eleição dos governadores, favorecidas por coligações grandes. Com as campanhas individuais das listas abertas, por fim, o rótulo partidário perde visibilidade na campanha e tende a deixar de ser relevante na decisão de voto pelo eleitor. Como a disputa é individual e o tamanho das bancadas depende da soma dos votos obtidos pelas candidaturas da coligação, os partidos têm incentivos para buscar bons “puxadores de votos”, tenham ou não vinculação prévia com o partido. Num cenário como esse, torna-se contraproducente a busca da fixação de uma plataforma partidária muito nítida, já que isso poderá embaraçar as campanhas individuais de seus candidatos.

É certo que há razões para além do sistema eleitoral para o crescimento do número de partidos nas últimas legislaturas, e o TSE deu sua contribuição, sobretudo nos últimos anos. Tanto na decisão, tomada em 2007, contrária à cláusula de barreira aprovada anos antes pelo Congresso quanto na atribuição mais recente das cadeiras aos partidos, em decisão conhecida como “fidelidade partidária” que, ao autorizar a mudança somente em caso de fundação de novo partido, induziu a formação de uma safra tardia de novas legendas nas últimas duas legislaturas.

A interação entre, de um lado, o relativo amorfismo e fluidez das bancadas parlamentares favorecidos pelo sistema eleitoral (ainda que “corrigidos” pelo toolbox presidencial e peculiares dispositivos regimentais descritos, por exemplo, em Raile, Pereira & Power 2011) e, do outro, o jogo bruto financeiro nos bastidores das campanhas, expôs o sistema a um choque peculiarmente brutal com organismos de controle em processo de autonomização e afirmação (por sua vez, eles mesmos relativamente descontrolados, em virtude de nossos vieses autoritários e da precária institucionalização de rotinas e procedimentos vigentes também na atuação dos próprios órgãos de controle).

A vulnerabilidade estrutural das instituições vigentes residia (e ainda reside) numa interação ruim entre o sistema eleitoral dispersivo e a regra de financiamento, única no mundo a limitar as doações por um percentual da renda bruta do doador. Isso produziu um peculiar mercado de financiamento de campanhas, fazendo interagir a mais pulverizada demanda por dinheiro com a mais concentradora regulação da oferta de financiamento eleitoral do planeta. Com 30 anos de retroalimentação, produziu-se um mercado de financiamento das campanhas profundamente viciado. Fortemente oligopolizado na oferta, com pouquíssimos, imensos financiadores, tipicamente interessados em oportunidades de rent-seeking (Santos 2016). E uma elite parlamentar composta de demandantes dóceis, fragmentados, com baixo poder de mercado e portanto dependentes de boas relações com o exclusivíssimo clube de financiadores. Onde a paisagem internacional tipicamente exibe meia dúzia de chapas disputando milhares de doadores potenciais, o Brasil constituiu um caso anômalo onde milhares de candidaturas disputam meia dúzia de doadores relevantes.

Dada a autonomização burocrática das carreiras profissionais em órgãos de controle, o choque era inevitável, uma questão de tempo, embora fosse impossível prever o momento exato. A ocasião seria relativamente fortuita, imprevisível em si mesma. As deficiências evidentes do governo de Dilma Rousseff, tanto na gestão da economia como na articulação política no Congresso, propiciaram a ocasião. O mandato da presidente foi o destroço mais visível daquele choque — embora talvez nem tenha sido o mais importante.

A ascensão de Michel Temer tornou nítidas as ambiguidades programáticas (de fato, quase contradições performáticas) do PMDB no poder — hoje novamente MDB. Tendo se acomodado, ao longo dos anos, num condomínio de chefes políticos de alcance relativamente local especializados em vender apoio político em troca de recursos de patronagem, o PMDB se tornou o principal fiador das maiorias parlamentares nas últimas décadas tanto em governos tucanos como petistas. Também por isso, tornou-se uma agremiação basicamente desprovida de plataforma própria, mas com um DNA programático implícito no fato de que o poder de suas lideranças decorre do exercício de influência peculiar sobre a alocação de rendas do Estado.

Dadas essas características, somente uma confluência imprevista de circunstâncias excepcionais impeliria o PMDB ao poder — e esta confluência se configurou na conjugação da crise econômica (que fez definhar o volume de rendas alocáveis) com a ameaça concreta a seus quadros materializada na assim chamada “Operação Lava Jato”, carro-chefe do choque acima aludido entre o sistema político e os órgãos de controle. Ascendendo ao poder compelido ao mesmo tempo pelos objetivos de “resfriamento” da Lava Jato e de reestabilização econômica, o PMDB se vê na contingência de operar simultaneamente duas pautas extremamente impopulares. Embora fortemente respaldado pelo Congresso Nacional (que afinal o empossou ao decidir-se por remover Dilma Rousseff — e em princípio via nele sua tábua de salvação contra a Lava Jato), o governo Temer permaneceu sempre frágil em seu lastro eleitoral para além de sua maioria no Legislativo.

Pressionado, por um lado, a entregar reformas econômicas (sobretudo um ajuste fiscal) pelos interesses econômicos que se associaram à empreitada do impeachment, Michel Temer tinha, do outro lado, de comprar sua estabilização pela moeda habitual dos recursos públicos junto a atores com poder de veto potencial sobre a sua estabilização. Daí seus aumentos a juízes e procuradores e a proteção oferecida a várias carreiras do Estado em sua proposta (afinal malograda) de reforma da Previdência. Ele só poderia fazer o esforço de ajuste sobre interesses que não o ameaçavam, ou que não seriam, de todo modo, aliados: fundamentalmente, a base da pirâmide social. Um governo eleito hesitaria nesse movimento, se pelo menos se interessasse pela própria reeleição; para Temer e seus correligionários no MDB, este foi sempre um cenário remoto, eventualmente substituível com vantagens pelo retorno à estratégia habitual de apoiar o vencedor, fosse qual fosse. Diluir, portanto, a resistência ao ajuste fazendo-o às custas da parcela mais vasta do eleitorado era uma opção que poderia ser mais facilmente adotada por Temer que por qualquer governo eleito.

Perspectivas
PT e PSDB constituíram, ao longo dos 20 anos mais estáveis da história política brasileira, as balizas em torno das quais se organizaram e se ancoraram a disputa eleitoral e o sistema partidário no país. Atingidos pelo choque em curso entre sistema eleitoral e burocracia de controle, neste preciso momento se encontram ambos ameaçados em sua posição — o que projeta sombras preocupantes sobre o estado do sistema partidário no futuro próximo e, portanto, sobre a própria estabilidade institucional democrática mais adiante. Talvez por terem se habituado, desde 1994, a um quase duopólio da aspiração presidencial viável, ambos os partidos têm exibido certos sinais de pânico com a fragilização relativa de suas posições. O PT na insistência semi-suicida de negar até a exaustão a cogitação de um “plano B” relativamente à candidatura Lula, que cedo ou tarde terá de se materializar (em que pese a compreensível indignação do partido com a condenação do ex-presidente, que abre jurisprudência inédita e de duvidosa sustentabilidade futura). O PSDB ao flertar em público, reiteradamente, com candidaturas externas ao sistema político como a do apresentador de TV Luciano Huck, que sequer é filiado ao partido. No entanto, embora a incerteza em 2018 seja muito superior à de qualquer pleito presidencial nas últimas décadas, ambos os partidos ainda contam com razoáveis perspectivas de sucesso na disputa presidencial que se aproxima — com Alckmin alicerçado na apreciável densidade da rede de compromissos políticos tecidos ao longo de quatro mandatos no governo do Estado de São Paulo e o PT dispondo ainda do mais poderoso (conquanto declinante) dispositivo sindical e associativo do país, bem como da perspectiva de transferência de votos a partir do nada desprezível espólio político do ex-presidente Lula.

Nesse gênero de conjectura sempre caminhamos em terreno incerto, mas a premissa do exercício aqui exposto é que a maior ou menor resiliência a ser exibida por PT e PSDB em 2018 em sua capacidade de sustentar suas posições balizadoras da disputa política será a variável-chave num esforço de prognóstico da dinâmica esperada para o sistema partidário e, por extensão, para estabilidade relativa das instituições democráticas no Brasil. A ironia triste de nossa situação corrente reside sobretudo em que talvez a vasta maioria do país deseje hoje sobretudo uma espécie de limpeza ou reboot do sistema político, cultivando a fantasia de uma depuração que é, na melhor das hipóteses, ingênua e impraticável nos termos em que se imagina (prender os “maus” e substituí-los pelos “bons”…) e, na pior, profundamente contraproducente do ponto de vista da democracia, se se materializa pelo deslocamento abrupto dos pontos de referência que balizam os alinhamentos políticos, desorganizando a paisagem e deixando o eleitorado disponível para o candidato a líder que parecer suficientemente enérgico ou obstinado — fazendo o país deslizar do esboço de pluralismo associativo e sindical vivido em anos recentes rumo às turbulências características das “sociedades de massas” a que costumávamos nos referir décadas atrás (Kornhauser 1959).

Como já pude frisar acima, sistemas partidários não se criam por decreto, antes decantam ao longo de décadas — se tudo der certo. E constituem um lastro social fundamental da estabilidade de uma democracia, na medida em que organizam a competição eleitoral e propiciam uma elite política interessada na manutenção do regime. Assim um traço preocupante do cenário atual reside no fato de que hoje boa parte da população ficaria feliz em mandar a todos embora, e portanto é possível que uma vasta fatia dos melhores e mais preparados quadros de nossas agências de controle esteja cotidianamente empenhada, de modo metódico, disciplinado, sincero e patriótico, em produzir, inadvertidamente, o pior resultado possível para o país. Não por acaso tem prosperado entre nós, nos últimos anos, a tese da viabilização de candidaturas avulsas, ativamente promovida justamente por atores politicamente identificados com a vaga causa da “renovação da política”, como por exemplo Marina Silva, ou por representantes dos órgãos de controle, como a nova Procuradora Geral da República, Raquel Dodge.

Esboçar cenários para o futuro próximo a partir de uma conjuntura tão fluida como a atual é uma tarefa nada trivial. Em certos aspectos pode ser mais difícil que para um horizonte mais largo, já que frequentemente as oscilações de curto prazo se mostram mais difíceis de prever do que processos com prazo de maturação mais longo. Contudo, o famoso “exercício de futurologia”, tantas vezes ironizado por todos nós, é uma tarefa incontornável para o analista político em sua relação com o público. Como nossa matéria se projeta historicamente no tempo, nossos diagnósticos do presente nos comprometem forçosamente com expectativas quanto ao futuro. Isso deve ser feito com a devida sobriedade e escrúpulo, naturalmente, como conjecturas dedutíveis de premissas explícitas. Fazemos isso em bases quase cotidianas, mas tipicamente de modo mais intuitivo do que seria estritamente desejável. Temos dificuldade na explicitação sistemática de nossas premissas, não por desonestidade intelectual, mas porque, socraticamente, é preciso reconhecer que o autoconhecimento implicado não é trivial: raramente temos consciência das premissas mais fortes com que operamos.

No plano parlamentar, o sistema brasileiro é tão extremo na fragmentação de seus plenários legislativos que poderia desautorizar como fútil qualquer tentativa de prognóstico. Contudo, talvez por essa mesma razão, acrescida da ameaça concreta produzida pela Lava Jato quanto aos destinos (e não apenas os destinos políticos) de dezenas de parlamentares, a Câmara dos Deputados exibiu em 2017 considerável clareza de propósitos em sua atuação na reforma política. Ainda que de maneira autointeressada (o que é sempre inevitável e será fatalmente exacerbado em tal conjuntura), a Câmara se moveu no ano passado com o propósito discernível de frear a crescente fragmentação parlamentar em curso. A crucial imposição de um teto nominal de dez salários mínimos para doações eleitorais terminou derrubada por veto presidencial. Mas, com a introdução de cláusula de barreira crescente nos próximos anos para acesso a recursos, o fim das coligações a partir de 2020 e a criação de um bilionário fundo público de financiamento eleitoral, a Câmara dos Deputados sinalizou resolução quanto a uma direção específica — traço que estivera ausente da dispersão que vinha marcando os esforços mais recentes de reforma eleitoral.

De maneira nada surpreendente, a direção sinalizada é conservadora, voltada para um reforço da posição dos atuais mandatários. Ademais, o fato de a propalada cláusula de barreira não limitar de fato o acesso ao mandato, mas apenas a recursos do fundo partidário e a tempo gratuito no rádio e na televisão, mostra os efeitos mitigadores que a fragmentação do plenário tende a impor a qualquer iniciativa de mudança do status quo. Isto retardará os prováveis efeitos reconcentradores do fim das coligações, que só poderão se fazer sentir em âmbito federal a partir da legislatura que se inaugurará em 2023. Talvez isto venha a se mostrar um horizonte longo demais, sobretudo se levarmos em conta que o aumento da dispersão partidária das prefeituras municipais observado em 2016 já “contratou” um aumento da fragmentação partidária no plenário da Câmara a partir de 2019.

Muito mais contestada, a criação de um fundo bilionário para financiamento das campanhas eleitorais com recursos públicos não seria desejável em si mesma, mas se impôs de maneira inevitável na atual circunstância, gerada por duas decisões sucessivas do Supremo Tribunal Federal que inviabilizaram um mercado privado idôneo de campanhas. A primeira foi a proibição das doações por pessoas jurídicas, que tornou ilegais as fontes de 75% das doações privadas feitas em 2014. Embora tenha sido uma reação bem recebida a um estado de coisas deplorável, a decisão careceu de um diagnóstico preciso, e deixou intocada a principal razão da imensa concentração das fontes de nosso financiamento eleitoral: o teto proporcional ao rendimento do doador.[2] Assim a cidadania perdeu uma informação politicamente importante (a identificação pública dos vínculos entre representantes e os setores produtivos que os apoiam) sem que haja razão para esperar a necessária desconcentração das fontes de financiamento.

A segunda decisão, bem mais grave, e sem precedente identificável em jurisprudência internacional, foi a admissão de doações legais, devidamente declaradas, como possíveis provas em processos criminais de corrupção, a partir do precedente firmado no processo contra o senador Valdir Raupp, do MDB de Rondônia. Isso emite um sinal claro, altamente indesejável, que é o desincentivo ao registro oficial das doações eleitorais. As duas decisões, tomadas num intervalo de menos de dois anos, inviabilizam na prática um mercado privado idôneo de financiamento de campanhas numa escala compatível com a magnitude das eleições brasileiras. A escassez de recursos lícitos, ainda mais num contexto que desencoraja a declaração das doações, tenderia a aumentar fortemente o peso relativo do crime organizado (estritamente considerado) nos bastidores do financiamento eleitoral — a menos que se aumentassem drasticamente os recursos públicos empregados nas campanhas. Mesmo que a motivação dos deputados favoráveis nem tenha sido essa, e eles tenham tentado simplesmente se proteger de concorrência externa em contexto adverso, pouco importa: decisões anteriores da Justiça tornaram desejável, no fim das contas, a criação de um fundo público bilionário que em condições normais teria sido melhor evitar.

O prognóstico mais provável para a próxima legislatura especificamente permanece sendo o aumento da fragmentação dos plenários no Congresso Nacional. Embora a reforma política de 2017 sinalize com uma reversão da fragmentação no horizonte, a relutância do Congresso quanto à cláusula de barreira e o adiamento para 2020 do fim das coligações indica um processo lento — e o aumento da dispersão partidária das prefeituras observado em 2016 já havia “contratado”, do outro lado, um aprofundamento da fragmentação partidária na Câmara dos Deputados. O efeito líquido para este ano segue relativamente imprevisível, mas parece pouco provável que as medidas aprovadas consigam efeito tão imediato de reversão da tendência em curso. Salvo por reversões drásticas de orientação em 2019, o número efetivo de partidos deve, porém, começar a cair de maneira consistente a partir de 2022.

Paradoxalmente, no mesmo momento em que passa a haver razões para esperar uma reversão da tendência de crescente fragmentação partidária dos plenários legislativos, a excepcional estabilidade de nossa disputa presidencial — há um quarto de século restrita a PT e PSDB — dá claros sinais de fadiga. Estou longe de cravar, porém, que a polarização tradicional tenha chegado ao fim. Neste momento, em abril de 2018, se permanece excepcionalmente incerta a polarização em que afinal se dará o segundo turno da eleição presidencial (e isso já é algo inédito em si mesmo), por outro lado não se pode descartar a possibilidade de que PT e PSDB terminem por reencenar a sétima edição consecutiva de sua disputa. O dado inequívoco é que ambos se encontram em posição mais vulnerável hoje que em qualquer momento desde 1994.

O ex-governador Geraldo Alckmin, candidato natural à Presidência em 2018 desde que retornou ao Palácio dos Bandeirantes em 2010, vê-se incomodamente confinado a menos de 10% das intenções de voto com menos de seis meses até a eleição, depois de quatro mandatos no governo do maior estado do país. Clara favorita na ausência do impeachment de Dilma Rousseff, num cenário de quatro anos de um governo do PT em crise permanente, a candidatura de Alckmin tornou-se desde então caudatária de um impopular governo Temer, passando a dividir com este o ônus da crise, com todas as incertezas decorrentes. Embora haja muitas razões para esperar seu crescimento com o início do período de convenções e da campanha eleitoral, quando as engrenagens do sistema político começam a se mover em todos os municípios para eleger deputados, senadores e governadores, de fato Alckmin se vê hoje acossado em vários flancos por candidaturas rivais que hoje aparecem à sua frente: de um lado a agitação online do proselitismo autoritário (mas sem máquina) dos seguidores do deputado Jair Bolsonaro, do outro o partido da Lava Jato encarnado em Joaquim Barbosa, agora abrigado numa base partidária de médio porte e que hoje parece estar em toda parte: o mesmo PSB, que em São Paulo abriga o atual governador e sucessor de Alckmin e no Nordeste é linha auxiliar do PT e de Lula, agora se move também para encarnar eleitoralmente a Lava Jato, na figura do ministro-relator do Mensalão no STF. Marina Silva, embora enfraquecida pelo fiasco aparente de sua Rede Sustentabilidade, também permanece por enquanto entre os líderes, sobretudo num cenário sem Lula no páreo. Por fim, a remissão à Justiça Eleitoral de uma denúncia de caixa 2 envolvendo o ex-governador a partir da delação acertada pela Odebrecht com o Ministério Público Federal exemplifica o tipo de dificuldade que todo político experiente tende a enfrentar nos dias que correm. Embora juridicamente acertada, a notícia expôs Geraldo Alckmin de modo desfavorável em momento delicado.

Se Alckmin se debate com um campo hiperpovoado e baixo apelo pessoal junto a lealdades eleitorais voláteis, o PT confronta o vazio apesar de seu lastro considerável, subtraído de seu incontrastável puxador de votos ao cabo de mais um contestado processo judicial. Neste momento, todos os nomes petistas alternativos são traço nas pesquisas, até porque o partido segue batendo bumbo por Lula. Mas, assim como Alckmin tende a crescer nas pesquisas quando girarem as engrenagens políticas do processo eleitoral, também o PT tem perspectivas concretas de sucesso a partir do Norte-Nordeste e das periferias de muitas capitais, quando afinal tomar a decisão de lançar seu plano B. Agora se vê presa do dilema de oferecer à disputa um nome sem ser acusado de abandonar seu líder, nem expor seu sucessor à artilharia judicial que, acredita, ele vai sofrer. Tudo indica que alguma candidatura alternativa será afinal lançada, embora talvez variadas circunstâncias empurrem o partido para postergar ao máximo essa decisão, com riscos para a viabilização da transferência de votos almejada pelo partido.

Depois que perdeu 60% de suas prefeituras em 2016 (de 638 em 2012 para 256 quatro anos depois), muitas vozes vaticinaram um recuo inevitável do PT à condição de partido médio, abandonando talvez irreversivelmente seu protagonismo na política brasileira. Convém cautela, porém. Com posição hegemônica no sindicalismo e um virtual monopólio do associativismo civil em boa parte do território nacional, acrescido da memória positiva dos governos Lula, o PT — se não entrar em pânico — tem muita lenha para queimar. De fato, uma queda tão drástica no número de prefeitos praticamente assegura uma redução de sua bancada na próxima legislatura da Câmara dos Deputados, mesmo considerando que os freios antepostos pela reforma política de 2017 talvez venham mitigar a força esperada desse efeito. Se ponderarmos, no entanto, a extrema impopularidade do presidente Michel Temer, é forçoso reconhecer que o PT viveu no biênio 2016–2018 um período menos desfavorável que nos turbulentos meses do segundo mandato de Dilma Rousseff, que antecederam as eleições municipais de 2016. A própria identificação partidária com o PT subiu em pesquisas recentes, voltando a alcançar 21% em dezembro de 2017, depois de ter girado próxima a 10% no auge de sua exposição negativa. Hoje, embora ninguém possa imaginar que o partido venha a manter a maior bancada da Câmara que conquistou em 2014 com 70 cadeiras, o PT tem uma chance bastante real de pelo menos assegurar seu lugar no segundo turno da disputa presidencial — se conseguir concatenar internamente o processo de unção do sucessor de Lula na candidatura ao Planalto.

O desempenho do PSDB em 2016, em contraste, com aumento de 15% em suas prefeituras (de 685 para 791), se não chegou a ser espetacular, pelo menos autoriza expectativa de aumento de sua bancada federal nas eleições de 2018. Como as mudanças feitas na reforma de 2017 reforçaram a posição dos principais partidos, elas podem intensificar ainda mais a eficácia das prefeituras no esperado aumento de cadeiras na Câmara relativamente às 54 obtidas em 2014. Contudo, o último biênio tem sido difícil para os tucanos. Avalista de um governo de baixo apelo eleitoral, o PSDB ainda assistiu à exposição fortemente negativa de Aécio Neves num áudio produzido pelo empresário Joesley Batista em conluio com a Procuradoria Geral da República. A legalidade da gravação deverá ser apurada no processo, mas o dano político já se produziu, pode aumentar e deve ser fatorado no eventual exercício de extrapolação, para 2018, dos resultados do partido em 2016. Ainda mais que — diferentemente do petismo — a base eleitoral tucana tende a ser simpática à Lava Jato.

Ambos os partidos precisarão nos próximos meses de uma boa dose de sangue frio, talvez escasso em situação tão incerta, ainda mais depois de décadas do conforto de um lugar garantido como os polos do segundo turno na disputa presidencial. Mas o pior que podem fazer agora é entregarem-se ao pânico que o fim daquela era pode ocasionar. A situação de ambos está longe de ser terminal, e — mais que em qualquer outro momento — o país tem a beneficiar-se da eventual capacidade que ambos exibam de atravessar a tempestade. Nesse momento de incerteza política e insegurança jurídica, em que a democracia brasileira deriva acossada por retórica abertamente autoritária, de um lado, e desqualificação burocrático-judicial da política, do outro, a manutenção de polos visíveis a balizar alinhamentos políticos programaticamente inteligíveis e legítimos em ambiente democrático pode vir a ser o bote salva-vidas que nos leve a alguma praia.

Para tanto, duras lições devem ser assimiladas. Acima de tudo, a desqualificação mútua não ajuda PT e PSDB a exercerem seu papel institucional, tampouco faz justiça a seu protagonismo histórico conjunto ao longo do mais estável e produtivo período da história política do Brasil. Ambos os partidos têm o direito de cultivarem e até de exacerbarem suas diferenças ao sabor de suas disputas. Mas serviriam melhor ao país se parassem de se referir um ao outro como o bando de criminosos que ambos sabem que o outro não é. Esse gênero de demagogia dissemina e legitima uma percepção cínica (e não crítica) da política junto ao público, com efeitos altamente corrosivos para a estabilidade do sistema político. A insensibilidade de todos os protagonistas de 2014 quanto a este problema deu contribuição não pequena à crise de legitimidade que hoje atravessamos. Essa prepotência autocomplacente de parte a parte torna-se ainda mais grave depois do abalo que o sistema já havia sofrido em 2013: as “Jornadas de Junho” deveriam ter induzido cautela na elite política, mas nossos líderes pareceram atuar sob a premissa ingênua de invulnerabilidade institucional.

Contemplada a cena a partir desta encruzilhada da História, é difícil descartar honestamente qualquer cenário para o sistema partidário nos próximos cinco anos. Ambos os partidos enfrentam um desafio inédito, mas têm recursos que deveriam, em tese, capacitá-los a sobreviver. O PT sofreu fogo mais intenso, mas exibe grande resiliência em sua identificação partidária, a partir não só da memória favorável quanto aos anos Lula, mas também de sua penetração nos sindicatos e no mundo associativo civil do país — constituindo fonte primária de ativação política para uma parcela substancial da população. O PSDB deixou escapar uma eleição que parecia ao seu alcance em 2014 e agora começa também a ser alcançado pelas marolas das ondas que atingiram o PT em 2015–2016; mas as conexões e afinidades naturais produzidas junto a atores econômicos relevantes em 24 anos no governo do estado mais poderoso do país compensam sua organização interna comparativamente mais rarefeita. Dependendo das decisões que se tomem agora, é possível imaginar as “torres gêmeas” (como chamou Werneck Vianna) da política brasileira recente reduzidas a um triste simulacro do que foram, com o sistema partidário à deriva talvez por décadas, fragmentado em busca de polos inteligíveis de identificação e alinhamento eleitoral. E é igualmente possível (ouso crer que é mais provável) que ambos os partidos basicamente sobrevivam como polos referenciais do nosso quadro eleitoral, ainda que seu protagonismo possa ser mitigado em relação ao duopólio da disputa presidencial exercido a partir de 1994.

Embora não se possa descartar sequer a possibilidade remota de que alguém queira investir na operação kamikaze de dissolver nossos partidos (principalmente o PT) com multas em processos de corrupção, em princípio as capacidades que PT e PSDB venham a exibir na viabilização de candidaturas competitivas à presidência em 2018 são hoje o parâmetro mais importante, ainda que não necessariamente decisivo, para a constituição de cada um dos dois cenários acima. Podemos imaginar infinitas gradações na plausibilidade relativa de ambos os cenários a partir de alguns parâmetros intuitivos básicos. Podem falhar ambos em ir ao segundo turno este ano; pode ir um deles, mas perder; pode ir um deles, e ganhar; podem ir ambos, mantendo pela sétima vez a disputa da Presidência entre os dois velhos adversários. O primeiro cenário empurraria com força o sistema partidário rumo à decomposição de seus parâmetros vigentes nas últimas décadas. O último praticamente asseguraria a continuidade do balizamento de nossos alinhamentos políticos em torno de petistas e tucanos — ainda mais que em 2017 o Congresso Nacional pareceu mais inclinado que em outros tempos pela redução do número de partidos representados em nossos plenários. Será uma ironia se desfizermos os parâmetros de nossas identidades eleitorais justamente quando o Congresso começa a se mover rumo a uma decantação da cena partidária intraparlamentar.
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Bruno P. W. Reis é vice-diretor e professor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Foi secretário adjunto da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) de 2010 a 2012. É doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ).

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