sexta-feira, 26 de setembro de 2008

A crise financeira: e agora, quem pagará a conta?


Yoshiaki Nakano
DEU NO VALOR ECONÔMICO


A crise financeira nos EUA parece ter atingido o chamado "momento Minsky". O presidente Bush anunciou, pela TV, que se as medidas de socorro não forem tomadas imediatamente, as consequências para a economia americana serão severas. Com o colapso dos preços dos ativos financeiros, seus efeitos negativos sobre os consumidores poderão ser amplificados pelo "acelerador financeiro" com contração generalizada de crédito, desacelerando a demanda agregada já em queda. A proposta do secretário de Tesouro, que pediu ao Congresso plenos poderes para gastar US$ 700 bilhões para comprar "ativos podres", deverá ser aprovada, mas encontra resistências, pois não define quem pagará o prejuízo.

A atual crise foi inaugurada com o pedido de falência do Ownit Mortgage Solutions no dia 28 de dezembro de 2006, quando a bolha imobiliária estoura e os preços dos imóveis começam a cair. Chega também o momento em que milhares e milhares de famílias, no segmento subprime, não conseguem pagar as suas prestações e começam a perder as suas casas com a execução de hipotecas (as chamadas foreclosures). O governo republicano tanto permitiu a criação da bolha, como assistiu, com indiferença, o colapso do subprime, e ainda permitiu a sua propagação para os bancos, pelo canal da securitização de hipotecas e transferência de riscos. Estes passam a anunciar prejuízos, desencadeando uma crise de confiança e contração de liquidez.

Grandes instituições financeiras que carregavam títulos com garantias hipotecárias problemáticas, como Bear Stearns, Fannie Mae, Freddie Mac, entram em colapso, e o governo intervém massivamente injetando liquidez, quando o problema não era só de liquidez. Havia originalmente problemas de solvência e de supervisão do sistema. Assim, entra-se num processo em que a perda de valor das garantias (valor do imóvel) desencadeia um círculo vicioso de desconfiança por problemas de regulação/supervisão e informação, provocando queda no preços dos ativos e levando as pessoas a venderem seus ativos - e, em consequência, os preços caem mais ainda. As instituições financeiras não conseguem mais se financiar no mercado e, com crescente aversão ao risco e incerteza, entra-se na armadilha da liquidez. Por mais que o Fed injete liquidez, o mercado para estes ativos não volta, nem se estabelece um piso de preços; ninguém quer assumir riscos, todos preferem acumular liquidez. As instituições financeiras, sofrendo prejuízos, assistem seus balanços e capital próprio encolherem, não conseguem mais se recapitalizar e precisam se desalavancar.

Assim, a crise entra numa nova fase, atingindo, por contágio, instituições sadias, e uma contração generalizada de crédito atinge o setor real da economia. Agora, é preciso um enfrentamento do verdadeiro problema e um tratamento de todo o sistema, e não de suas partes. Na proposta Paulson/Bernanke, o Tesouro compraria os ativos ilíquidos/podres, retirando-os dos balanços das instituições financeiras, o que poderia devolver-lhes a confiança, recompondo a liquidez no mercado ao restituir a eles a capacidade de criação de crédito. O grande problema aqui é como estabelecer os preços destes ativos podres. Se for por leilão bem conduzido, supervisionado e transparente, como querem os democratas, é provável que o deságio seja enorme. Uma referência de mercado são os preços atingidos no leilão de ativos da Merrill Lynch, que foi de 22% do preço de face. Neste caso, é provável que os bancos não participem - se participarem, vão para falência e o custo, em impostos para o cidadão, será pequeno. Os acionistas e investidores pagarão a conta. Se o preço de compra dos ativos podres for próximo ao valor de face, como quer o secretário do Tesouro, quem pagará a conta é o cidadão. O Tesouro subsidiará os acionistas e investidores. Qualquer destas escolhas terá também efeitos diferenciados na futura trajetória da economia.

Walter Bagehot, editor da revista The Economist no Século XIX, propôs uma regra de política respeitada até hoje. O Banco Central deve emprestar livremente para bancos em dificuldade, mas com garantia de alta qualidade - como títulos do Tesouro - e sempre cobrando taxas de juros punitivas. Algo próximo aconteceu com o Bear Stearns. O Fed emprestou US$ 30 bilhões para salvá-lo e transferi-lo para o JP Morgan Chase. Se as garantias forem boas, o cidadão não pagará nada. Os acionistas perderam praticamente tudo e os administradores foram certamente substituídos.

O Fed vem aplicando uma variante desta regra, que certamente Bagehot não concordaria. Criou novos programas, emprestando livremente aos bancos em dificuldades com baixas taxas de juros e grande flexibilidade nas garantias, visando preservar o mercado, isto é, o investidor. Se este se sentir mais seguro, os bancos poderão voltar a operar, recompor seu capital, sua solidez e voltar a emprestar normalmente. Evidentemente, quem paga a conta inicialmente é o contribuinte, mas o argumento é de que, no final, ele também sairá ganhando, se forem evitadas a crise e a recessão. Os recentes casos de Fannie Mae, Freddie Mac, Morgan Stanley e Goldman Sachs representam socorros flexíveis e generosos casos desta categoria. Na verdade, é preciso lembrar que o Fed, ao abaixar dramaticamente a taxa de juros, está dando um subsídio para os acionistas, além do custo que terá o cidadão, com uma taxa de inflação muito mais elevada, já captada pelos investidores que a embutiram nas taxas mais longas.

No caso do Lehman Brothers, o tratamento foi bem diferente. A crise foi resultado da ganância por bônus milionários de administradores irresponsáveis, e os acionistas fecharam os olhos para obter dividendos polpudos. Assim, abusaram da alavancagem e de operações que não constam em seus balanços, comprando títulos lastreados em hipotecas subprime com elevados retornos e financiando-os com emissão "comercial papers". E ainda desconfia-se que tenham praticado fraudes. Falência e FBI para os responsáveis!

Mas agora a crise avançou e não são alguns bancos que estão em dificuldade, mas todo o sistema está ameaçado. As políticas acima não se aplicam mais. É preciso muito mais. O socorro proposto por Paulson/Bernanke não resolverá o problema da recapitalização dos bancos, muito menos a questão da supervisão e gestão de risco. Certamente, será o primeiro socorro sistêmico, mas tentativo e improvisado. Outros virão, mas, aparentemente, o atual modelo de negócio bancário é que foi colocado em cheque.


Yoshiaki Nakano é ex-secretário da Fazenda do governo Mário Covas (SP), professor e diretor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas - FGV/EESP, escreve hoje excepcionalmente.

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