Daniel Piza
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO /Caderno 2
Gilberto Freyre é o autor mais influente do Brasil. Suas ideias se veem em muitos dos romancistas brasileiros (José Lins do Rego, Jorge Amado, até Chico Buarque e no tropismo sociológico de tantos mais), na música popular, no cinema (Glauber Rocha, Cacá Diegues, Walter Salles Jr.), na crônica como a esportiva (ele prefaciou O Negro no Futebol Brasileiro, de Mario Filho, irmão de Nelson Rodrigues, que sempre falava na "saúde de vaca premiada" dos jogadores brasileiros). Também se veem na mídia e no cotidiano, como quando as pessoas se gabam da miscigenação (Carlinhos Brown: "O brasileiro nasce com uns pontos a mais no QI por ser uma mistura de raças"). Mesmo a cordialidade que Sergio Buarque criticou como impedimento à necessária separação entre público e privado, três anos depois de Casa Grande e Senzala, foi, sob um ângulo freyriano, distorcida para um elogio da doçura nacional.
É claro que Freyre não é o inventor da noção do brasileiro como um povo diferente, especial, que se distingue do europeu por agir com o coração. "A civilização é triste", lemos ainda hoje de economistas sérios. E gente como José Sarney, o oligarca, garante: "A maior contribuição do Brasil ao mundo é a alegria." Oswald de Andrade, que andou às turras com Freyre nos anos 30, no conflito entre modernismo paulista e regionalismo nordestino, disse as mesmas coisas em seus manifestos, influenciado pelos conceitos de Freud como repressão. Esse espírito faz parte, claro, do período da formação moderna da nacionalidade, que seria sintetizado institucionalmente no governo getulista, quando samba e futebol viraram os símbolos ufanistas que são até agora. Mas Freyre foi quem fez a base conceitual de tudo isso.
É claro que tal formação foi um contraponto fundamental ao que se dizia até a República Velha, em ensaios como os de Paulo Prado e Oliveira Lima, cujo teor era que a mistura enfraquecia a raça brasileira e lhe dava melancolia. Como ser contra mestiçagem, alegria, etc.? Mas já está na hora de ultrapassar a idade mítica da identidade nacional e testar com rigor a veracidade dessa auto-imagem. Freyre, por sinal, como todo autor muito citado e pouco lido, é distorcido à beça. Sempre fez questão de dizer que não era a favor do "dionisíaco", como um Zé Celso, mas de uma combinação entre ele e o "apolíneo", ou seja, entre a cultura intuitiva e informal com a racional e dedutiva - o que até o fez cometer o equívoco de apoiar a ditadura militar de 1964. De qualquer modo, sua herança se tornou nociva principalmente porque coloca como vetor principal da cultura o perfil racial. E confundi-lo com os costumes, as artes e os esportes nunca fez bem a lugar nenhum.
Exemplo disso tudo é a visão que ainda parece dominante sobre Euclides da Cunha, essa visão "telúrica" (como diria Zé Celso, que adaptou Os Sertões para o teatro), que quer fazer dele um "advogado dos sertanejos" pura e simplesmente, pondo de canto sua visão determinista de progresso, suas contradições, seus dilemas em relação ao Brasil. Euclides continuou social-darwinista até a morte, acreditando que deveria haver um Darwin para a espécie humana e um Newton para a ordem moral. Mesmo no póstumo As Margens da História, por exemplo, ele elogia o bandeirante Raposo Tavares por ir desbravando o País e escorraçando os índios. No entanto, Freyre fez dele um precursor de sua obra, como se Os Sertões se resumisse a um encantamento pelo "Brasil profundo", sertanejo, rural. Não.
Como nota Marco Antonio Villa na antologia Os Sertões de Euclides da Cunha: Releituras e Diálogos (Editora Unesp), organizada por José Leonardo do Nascimento (que analisa a força das "frases-síntese" do autor), considerá-lo apenas como "livro de denúncia", quase como se Euclides tivesse se convertido aos conselheiristas, não dá. Villa descreve as diferenças entre as reportagens de Euclides em Canudos, para o Estado, e o texto final de Os Sertões, cinco anos mais tarde. Simpatias com figuras do Exército desaparecem, comoções com a dor dos sertanejos aumentam; nesse período em que redige o livro, a desilusão com a República brasileira o faz adotar um tom mais grave. Mas Euclides continua a dividir o mundo em raças "fortes" e "fracas". Que Freyre tente atenuar esse problema não deixa de ser absurdo.
Cada lado do espectro ideológico, na verdade, segue tentando "roubar" Euclides para si. Ele não era nem o panfletário quase bíblico que defende a cultura autóctone, nem o positivista empedernido que confunde progresso e autoridade. Se mostrou que a suposta civilização pode ser mais bárbara que os tais bárbaros, jamais deixou de vê-los assim, como "bárbaros", embora fortes e adaptados a seu meio. Euclides era mais contraditório, complexo - uma mescla intensa e genial de idealista e fatalista. Numa das frases coligidas em outro lançamento, Migalhas de Euclides da Cunha (editora Migalhas), organizado por Miguel Matos, ele diz com todas as letras: "Não é o bárbaro que nos ameaça, é a civilização que nos apavora." Aqui dá uma volta em Freyre, a quem a civilização também parecia apavorar, não por seus racismos e suas guerras, mas por suas exigências. Mistura racial não assegura vocação democrática. Democracia precisa ser construída duramente contra privilégios senhoriais.
CADERNOS DO CINEMA
Harry Potter é o tipo de obra que os críticos amam odiar. Li dois dos sete livros e acho que J.K. Rowling se apropria demais de narrativas alheias para contar a velha história folhetinesca do bem contra o mal. Mas em cinema a mistura de ambiente escolar, histórias de feitiços e ação funciona melhor. O quarto filme, Harry Potter e o Cálice de Fogo, extrai muita força da combinação de fantasia com esportes e das sugestões de que Harry e Valdemort são mais parecidos do que querem acreditar. Já nesse sexto filme, Harry Potter e o Enigma do Príncipe, a química aparece pouco. Ele se arrasta, sem ter diálogos ou situações que preencham o tempo com reflexão, e cenas agitadas como a do quadribol parecem repetição lá do primeiro episódio. A melhor parte da história, que conta a infância de Valdemort, pesa pouco no conjunto. Só as sequências finais, como a da caverna de cristais, assustadora para a criançada, quebram a monotonia, além de alguns efeitos especiais. O problema do filme não é falar de paixões adolescentes; é não ter quase nada a falar.
ZAPPING
A minissérie Som & Fúria é uma das melhores coisas da TV brasileira neste ano. Adaptada por Fernando Meirelles de um programa canadense, conta a quase improvável história de uma trupe shakespeariana no Teatro Municipal de São Paulo. Escrevo na quinta-feira, dia seguinte ao da exibição do sexto dos doze capítulos, em que a companhia finalmente encena Hamlet. Foi excelente. Andréa Beltrão comoveu até os ferros do Viaduto do Chá em seu monólogo. Felipe Camargo faz um doce amalucado, mais lúcido do que os que o cercam. Dan Stulbach atingiu um recurso raro, o de se deixar transformar pela força do teatro sem abandonar seu jeito de burocrata ambicioso. Todas as atuações mostraram autenticidade, adaptadas à agilidade da montagem, e a série prova que é possível fugir ao naturalismo sem cair no barroquismo. Ao contrário do que andei lendo, acho as gozações contra diretores e críticos reais muito legais, em oposição à cultura nacional do compadrio.
A série também aponta para os defeitos do cinema nacional, ainda dividido entre filmes de favela, comedinhas de situação e exercícios experimentais. Tomara que inspire mudanças no cinema e na TV: existe público, sim, para a inteligência.
POR QUE NÃO ME UFANO
Nhonhô Ribamar mandou anular todos os atos secretos do Senado, que antes dizia desconhecer. E deu sinal para a CPI da Petrobras, que, como vai ser controlada pelos governistas, só terá a função de dividir as atenções quando a nobre casa voltar do recesso. Seu filho foi indiciado, sua fundação será investigada, sua imagem está mais queimada que os marimbondos de fogo. Mesmo assim, continua no cargo (ou continuava até quinta passada), com apoio do presidente Lula e de sua candidata, Dilma Rousseff. Em outras palavras, o maior partido do Brasil, o PMDB, é um partido de aluguel, sem presidenciáveis, tão fisiológico quanto a menor das legendas. E ainda há quem chame isso de maturidade democrática.
INTÉ
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO /Caderno 2
Gilberto Freyre é o autor mais influente do Brasil. Suas ideias se veem em muitos dos romancistas brasileiros (José Lins do Rego, Jorge Amado, até Chico Buarque e no tropismo sociológico de tantos mais), na música popular, no cinema (Glauber Rocha, Cacá Diegues, Walter Salles Jr.), na crônica como a esportiva (ele prefaciou O Negro no Futebol Brasileiro, de Mario Filho, irmão de Nelson Rodrigues, que sempre falava na "saúde de vaca premiada" dos jogadores brasileiros). Também se veem na mídia e no cotidiano, como quando as pessoas se gabam da miscigenação (Carlinhos Brown: "O brasileiro nasce com uns pontos a mais no QI por ser uma mistura de raças"). Mesmo a cordialidade que Sergio Buarque criticou como impedimento à necessária separação entre público e privado, três anos depois de Casa Grande e Senzala, foi, sob um ângulo freyriano, distorcida para um elogio da doçura nacional.
É claro que Freyre não é o inventor da noção do brasileiro como um povo diferente, especial, que se distingue do europeu por agir com o coração. "A civilização é triste", lemos ainda hoje de economistas sérios. E gente como José Sarney, o oligarca, garante: "A maior contribuição do Brasil ao mundo é a alegria." Oswald de Andrade, que andou às turras com Freyre nos anos 30, no conflito entre modernismo paulista e regionalismo nordestino, disse as mesmas coisas em seus manifestos, influenciado pelos conceitos de Freud como repressão. Esse espírito faz parte, claro, do período da formação moderna da nacionalidade, que seria sintetizado institucionalmente no governo getulista, quando samba e futebol viraram os símbolos ufanistas que são até agora. Mas Freyre foi quem fez a base conceitual de tudo isso.
É claro que tal formação foi um contraponto fundamental ao que se dizia até a República Velha, em ensaios como os de Paulo Prado e Oliveira Lima, cujo teor era que a mistura enfraquecia a raça brasileira e lhe dava melancolia. Como ser contra mestiçagem, alegria, etc.? Mas já está na hora de ultrapassar a idade mítica da identidade nacional e testar com rigor a veracidade dessa auto-imagem. Freyre, por sinal, como todo autor muito citado e pouco lido, é distorcido à beça. Sempre fez questão de dizer que não era a favor do "dionisíaco", como um Zé Celso, mas de uma combinação entre ele e o "apolíneo", ou seja, entre a cultura intuitiva e informal com a racional e dedutiva - o que até o fez cometer o equívoco de apoiar a ditadura militar de 1964. De qualquer modo, sua herança se tornou nociva principalmente porque coloca como vetor principal da cultura o perfil racial. E confundi-lo com os costumes, as artes e os esportes nunca fez bem a lugar nenhum.
Exemplo disso tudo é a visão que ainda parece dominante sobre Euclides da Cunha, essa visão "telúrica" (como diria Zé Celso, que adaptou Os Sertões para o teatro), que quer fazer dele um "advogado dos sertanejos" pura e simplesmente, pondo de canto sua visão determinista de progresso, suas contradições, seus dilemas em relação ao Brasil. Euclides continuou social-darwinista até a morte, acreditando que deveria haver um Darwin para a espécie humana e um Newton para a ordem moral. Mesmo no póstumo As Margens da História, por exemplo, ele elogia o bandeirante Raposo Tavares por ir desbravando o País e escorraçando os índios. No entanto, Freyre fez dele um precursor de sua obra, como se Os Sertões se resumisse a um encantamento pelo "Brasil profundo", sertanejo, rural. Não.
Como nota Marco Antonio Villa na antologia Os Sertões de Euclides da Cunha: Releituras e Diálogos (Editora Unesp), organizada por José Leonardo do Nascimento (que analisa a força das "frases-síntese" do autor), considerá-lo apenas como "livro de denúncia", quase como se Euclides tivesse se convertido aos conselheiristas, não dá. Villa descreve as diferenças entre as reportagens de Euclides em Canudos, para o Estado, e o texto final de Os Sertões, cinco anos mais tarde. Simpatias com figuras do Exército desaparecem, comoções com a dor dos sertanejos aumentam; nesse período em que redige o livro, a desilusão com a República brasileira o faz adotar um tom mais grave. Mas Euclides continua a dividir o mundo em raças "fortes" e "fracas". Que Freyre tente atenuar esse problema não deixa de ser absurdo.
Cada lado do espectro ideológico, na verdade, segue tentando "roubar" Euclides para si. Ele não era nem o panfletário quase bíblico que defende a cultura autóctone, nem o positivista empedernido que confunde progresso e autoridade. Se mostrou que a suposta civilização pode ser mais bárbara que os tais bárbaros, jamais deixou de vê-los assim, como "bárbaros", embora fortes e adaptados a seu meio. Euclides era mais contraditório, complexo - uma mescla intensa e genial de idealista e fatalista. Numa das frases coligidas em outro lançamento, Migalhas de Euclides da Cunha (editora Migalhas), organizado por Miguel Matos, ele diz com todas as letras: "Não é o bárbaro que nos ameaça, é a civilização que nos apavora." Aqui dá uma volta em Freyre, a quem a civilização também parecia apavorar, não por seus racismos e suas guerras, mas por suas exigências. Mistura racial não assegura vocação democrática. Democracia precisa ser construída duramente contra privilégios senhoriais.
CADERNOS DO CINEMA
Harry Potter é o tipo de obra que os críticos amam odiar. Li dois dos sete livros e acho que J.K. Rowling se apropria demais de narrativas alheias para contar a velha história folhetinesca do bem contra o mal. Mas em cinema a mistura de ambiente escolar, histórias de feitiços e ação funciona melhor. O quarto filme, Harry Potter e o Cálice de Fogo, extrai muita força da combinação de fantasia com esportes e das sugestões de que Harry e Valdemort são mais parecidos do que querem acreditar. Já nesse sexto filme, Harry Potter e o Enigma do Príncipe, a química aparece pouco. Ele se arrasta, sem ter diálogos ou situações que preencham o tempo com reflexão, e cenas agitadas como a do quadribol parecem repetição lá do primeiro episódio. A melhor parte da história, que conta a infância de Valdemort, pesa pouco no conjunto. Só as sequências finais, como a da caverna de cristais, assustadora para a criançada, quebram a monotonia, além de alguns efeitos especiais. O problema do filme não é falar de paixões adolescentes; é não ter quase nada a falar.
ZAPPING
A minissérie Som & Fúria é uma das melhores coisas da TV brasileira neste ano. Adaptada por Fernando Meirelles de um programa canadense, conta a quase improvável história de uma trupe shakespeariana no Teatro Municipal de São Paulo. Escrevo na quinta-feira, dia seguinte ao da exibição do sexto dos doze capítulos, em que a companhia finalmente encena Hamlet. Foi excelente. Andréa Beltrão comoveu até os ferros do Viaduto do Chá em seu monólogo. Felipe Camargo faz um doce amalucado, mais lúcido do que os que o cercam. Dan Stulbach atingiu um recurso raro, o de se deixar transformar pela força do teatro sem abandonar seu jeito de burocrata ambicioso. Todas as atuações mostraram autenticidade, adaptadas à agilidade da montagem, e a série prova que é possível fugir ao naturalismo sem cair no barroquismo. Ao contrário do que andei lendo, acho as gozações contra diretores e críticos reais muito legais, em oposição à cultura nacional do compadrio.
A série também aponta para os defeitos do cinema nacional, ainda dividido entre filmes de favela, comedinhas de situação e exercícios experimentais. Tomara que inspire mudanças no cinema e na TV: existe público, sim, para a inteligência.
POR QUE NÃO ME UFANO
Nhonhô Ribamar mandou anular todos os atos secretos do Senado, que antes dizia desconhecer. E deu sinal para a CPI da Petrobras, que, como vai ser controlada pelos governistas, só terá a função de dividir as atenções quando a nobre casa voltar do recesso. Seu filho foi indiciado, sua fundação será investigada, sua imagem está mais queimada que os marimbondos de fogo. Mesmo assim, continua no cargo (ou continuava até quinta passada), com apoio do presidente Lula e de sua candidata, Dilma Rousseff. Em outras palavras, o maior partido do Brasil, o PMDB, é um partido de aluguel, sem presidenciáveis, tão fisiológico quanto a menor das legendas. E ainda há quem chame isso de maturidade democrática.
INTÉ
Tiro duas semanas de férias. Esta coluna volta em 9/8.
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