domingo, 19 de julho de 2009

Como voam os rios

Míriam Leitão
DEU EM O GLOBO


O avião em que voa o suíço Gerard Moss parece laboratório. E é. Ao lado do piloto fica uma engrenagem que lembra uma coleção de grandes tubos de ensaio. Sua missão, a cada decolagem, é capturar a umidade externa, que depois vai ser condensada nos tubos e guardada em miúdas gotas que serão estudadas. Elas trazem informação preciosa: onde nascem as chuvas

Elas nascem na terra, no céu, nos rios, nos oceanos, e debaixo da terra. Árvores da Amazônia jogam um papel fundamental nesse complicado processo. Uma grande árvore consegue evaporar até 300 litros num dia. A floresta é inigualável na capacidade de concentrar umidade no ar. Os ventos empurram essas massas de vapor de água. Elas são imensas, comparáveis aos rios. Por isso, os cientistas as chamam de “rios voadores”.

Enquanto ouvia a explicação de cientistas e de Gerard Moss na reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), semana passada, em Manaus, não pensava em nada mais. Fascinada, acompanhava as explicações que transformava em notas rápidas para o meu b l o g ( w w w. m i r i a m l e i tao.com). Nas salas da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), a internet wireless funcionava, permitindo o fluxo de informação.

Já havia lido sobre os rios voadores, mas nada como ouvir de perto sobre os estudos que tentam desvendar mais um dos mistérios da Amazônia. Quanto da nossa chuva, devemos à floresta? Já se sabe que é grande parte.

— Um dos dados captados pela pesquisa é que a vazão de um dos rios voadores que estudamos, indo da Amazônia para a área mais degradada de São Paulo, foi de 3.200 metros cúbicos por segundo. Esse volume de água é 27 vezes a do Rio Tietê, é maior do que a do São Francisco. Não é perene.

Nem tudo será chuva.

Por isso, se diz que é vapor de água precipitável. Mas é água passando lá em cima — diz Moss.

Ele chegou no painel sobre rios voadores, na SBPC, avisando aos alunos e professores presentes que não é cientista e até já foi acusado de vulgarizar a ciência, mas que passar informação para a população é fascinante. Ajuda a proteger a Amazônia, ainda mais.

— Para mim, desmatamento não é uma estatística.

Eu voo no Brasil há 20 anos e vi a degradação avançando. Sou sentimental, eu sei, mas se tivéssemos noção do valor da Amazônia, lutaríamos para manter cada árvore em pé.

O Brasil é campeão das chuvas. Aqui, chove três vezes mais do que nos EUA.

Desorganizar esse regime de chuvas é o maior risco agora. O desequilíbrio de um sistema delicado e complexo que cria dependências mútuas — a chuva precisa da floresta, que precisa da chuva, que cai lá e no resto do Brasil — é um dos riscos neste momento de mudança climática. A Amazônia tem que ser estudada: cada árvore, cada fenômeno.

Por isso, sua ocupação pela ciência vai nos dar mais do que a ocupação pelos madeireiros, pelo fogo que prepara os pastos, pelo rebanho que ocupa os pastos, pela soja e outras culturas que podem vir depois.

Ou não. Pior é o aspecto da terra calcinada que fica na maioria dos casos após essa entrada predatória.

No Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) tem um bosque que se chama: Bosque da Ciência.

Nesse bosque, mora uma árvore mais velha que o Brasil. Tem 600 anos. O tronco já tem cavidades, mas ela está viva; quem sabe por ter um tronco assim é que sobreviveu tanto tempo, porque é espécie madeireira.

Os galhos têm poucas folhas, mas é pela época do ano, explicou o cinegrafista da Rede Amazonas. Em outras épocas fica mais frondosa. Mas foi debaixo dessa Tanimbuka que Juliana Rosa, produtora do Espaço Aberto, pôs quatro cadeiras de vime, emprestadas pelo instituto, para que a gente gravasse o programa desta semana, que vai ao ar na quinta. Sentaramse comigo o químico Ângelo da Cunha Pinto, da UFRJ, o biólogo Philip Fearnside, e Gerard Moss.

Fearnside é o segundo cientista mais citado no mundo quando o tema é aquecimento global. Seu sotaque não nega que é estrangeiro, mas sua história assegura que já é brasileiro.

Está no país desde 1974. É pesquisador do Inpa há 31 anos. Tanto ele quanto o suíço Gerard Moss usam o pronome “nós”, quando se referem aos brasileiros.

Fearnside acha que será um erro se optarmos por asfaltar a BR-319. Ele disse, no programa, que ela incentivará a ocupação da floresta mais preservada, não foi feito trabalho decente de proteger a área em volta, há alternativas melhores, e não foi feito estudo de viabilidade econômica. Será mais um dos desastres irracionais que acontecem na Amazônia.

Racional é pesquisá-la porque da sua biodiversidade exuberante quase nada sabemos, confirmou o professor Ângelo. Moss contou um pouco de como são feitos os difíceis e caros voos para se pegar no ar material para estudar os rios voadores. Ele chegou para a entrevista com uma camisa escrito, de um lado, “Brasil das Águas”, de outro, “Petrobras”.

O primeiro nome é de um projeto ao qual se dedicou por cinco anos, de recolher com voos rasantes de hidroavião água dos rios para analisar a qualidade. O segundo nome é da patrocinadora dos estudos.

O que vi e ouvi, na viagem da semana passada, confirma o que vi em outras. O dilema entre agronegócio e Amazônia não existe. Sem a floresta não seríamos o que somos em produção de alimentos.

Como disseram os professores com dados e ênfase: a floresta presta serviços ambientais ao país e ao mundo. É hoje o tempo de a economia ouvir o que a ciência tem a dizer. Amanhã pode ser muito tarde.

Com Alvaro Gribel

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