Já têm sido salientadas, embora não se tenham ainda suficientemente compreendido, a significação e importância que têm no Brasil a legislação rural-trabalhista e sua efetiva aplicação para a solução do problema agrário e a reforma de nossa economia rural. Esse aspecto da reforma agrária tem sido subestimado, inclusive e particularmente pelas correntes políticas de esquerda que acentuam quase unicamente o outro aspecto dessa reforma que vem a ser o parcelamento da propriedade rural e a eliminação do latifúndio. Costuma-se mesmo, freqüentemente, reservar a esta última categoria de medidas, a qualificação de “reforma agrária”, excluindo dela expressa ou implicitamente a aplicação da legislação trabalhista que é relegada a um papel secundário e apagado. Haja vista os pronunciamentos a respeito das reformas de base, e da agrária em particular, onde se trata sempre do combate ao latifúndio, da divisão das terras, e não se toca senão incidentemente nas medidas de proteção do trabalhador rural e reguladoras das relações de trabalho no campo. É sintomático desse descaso o fato de ter passado a um primeiro e quase exclusivo plano dos debates em torno do assunto, a questão da desapropriação das propriedades rurais para o fim de loteamento e distribuição aos trabalhadores. É essa inclusive a posição dos comunistas que desde sempre se colocaram e ainda se colocam na liderança da questão. No documento mais recente em que definem sua posição em frente às reformas de base (a posição dos comunistas diante das Reformas de Base, Abril de 1963, publicado em Novos Rumos, 1 a 9 de Maio de 1963) o ponto relativo à legislação trabalhista não é incluído no texto que se ocupa da reforma agrária propriamente e das medidas destinadas à promovê-la. E sim é arrolado entre as “medidas parciais que melhorem a situação das massas camponesas, incrementem a produção de gêneros alimentícios e matérias-primas”. E assim mesmo essa inclusão é feita em último e mais que apagado e discreto lugar.
Nada justifica essa subestimação, e pelo contrário, os últimos desenvolvimentos da questão, particularmente no Nordeste onde o problema agrário se apresenta de maneira mais aguda, vêm em confirmação da outra tese, a saber, que é na aplicação efetiva da legislação trabalhista, sua ampliação e necessária correção em muitos pontos em que se vem mostrando insuficiente e defeituosa, bem como na adoção de providências complementares destinadas a consolidar e tirar todos os efeitos econômicos e sociais da nova situação criada pela melhoria das condições de vida do trabalhador obtidas com a aplicação daquela legislação trabalhista, é nisso sobretudo que deve consistir, no momento atual, a luta pela reforma e renovação de nossa economia agrária. É daí que se poderão esperar os melhores e mais profundos e imediatos reflexos de ordem econômica e social, e mesmo política, no conjunto da situação brasileira. O que vem ocorrendo no Nordeste constitui experiência preciosa e evidencia que a frente decisiva da luta pela reforma agrária se situa hoje sobretudo na implantação geral e definitiva, no campo, das normas reguladoras do trabalho. Pode-se dizer que aí reside o centro nevrálgico e ponto principal de partida da reforma que deve ser imediata e intensamente atacado. Não é por certo o único, mas sem dúvida o essencial e que oferece melhores perspectivas para a ação reformadora e seu sucesso.
Quais são esses fatos recentemente ocorridos no Nordeste, e particularmente em sua região de maior expressão econômica que vem a ser a área açucareira de Pernambuco? Um amplo e poderoso movimento dos trabalhadores da cana, movimento esse amparado e estimulado pelo governo do Sr. Miguel Arraes, governador do Estado, que assim mostra bem claramente sua inspiração democrática e renovadora da obsoleta estrutura das relações econômicas e sociais imperantes no campo brasileiro, logrou obter no correr do ano findo completa vitória no que diz respeito a pelo menos um dos ítens essenciais da legislação rural-trabalhista que são os níveis de remuneração do trabalhador. Hoje, a totalidade dos trabalhadores da cana que há menos de ano se contavam entre os setores mais explorados e miseráveis dessa já em conjunto tão miserável população rural brasileira, estão percebendo uma remuneração que, embora não tenha em si nada de extraordinário (se bem que ultrapasse o mínimo legal), representa para eles mais ainda que uma simples melhoria quantitativa, pois assume caráter de verdadeira transmutação em suas condições de vida. Basta citarmos os dados: há menos de um ano, percebiam de 80 a 120 cruzeiros diários. Hoje estão recebendo 900!
A explicação desse considerável progresso e magnífica vitória obtida em tão curto lapso de tempo e que subverteu por completo os tradicionais padrões e a escala de valores do interior pernambucano se encontra, a par do fator político que em outras áreas do país não foi ainda devidamente aproveitado e mobilizado para o mesmo fim, encontra-se na rapidez e eficiência com que os trabalhadores pernambucanos lograram se organizar e sindicalizar. É quase um milagre essa pronta e larga mobilização de trabalhadores rurais somente possível porque nela se concentrou a ação e direção política, o que mostra o grave erro de não se conceder a esse propósito, em outros lugares, a primazia no plano político da reforma agrária, em benefício de outros propósitos no momento ainda de remotas possibilidades práticas, como sejam a abolição do latifúndio e a divisão da grande propriedade rural. Conhecemos o interior pernambucano de longa data, e ainda em maio do ano passado, quando lá estivemos, nada fazia crer que de um momento para outro aqueles humildes e submissos trabalhadores da cana, jungidos à sua miserável existência de verdadeiros párias sociais e inteiramente passivos em frente aos usineiros e senhores de engenho seus patrões, fossem capazes de levantar a cabeça e levar de vencida os seus exploradores.
Mas assim foi, e mudou com isso a fisionomia da região pelos efeitos diretos e indiretos da brusca elevação dos padrões de vida da população local constituída em sua maioria de trabalhadores da cana e suas famílias. Modificou-se não apenas a existência dos trabalhadores diretamente beneficiados pela melhoria dos salários, e que começavam já a apresentar os primeiros sinais visíveis, embora ainda muito débeis, de sua integração nos padrões de vida de uma sociedade civilizada – o que não ocorria anteriormente –, mas já se estão sentindo os efeitos da nova situação criada com a brusca elevação do poder aquisitivo dos trabalhadores, nas atividades comerciais da região. Em dezembro do ano passado estivemos entre outros lugares em Palmares, centro da região canavieira sul do Estado e obtivemos aí informações concludentes a respeito em inquérito a que procedemos junto ao comércio local. Não encontramos duas opiniões nem informações divergentes. Grandes e pequenos comerciantes – tivemos contato com muitas e variadas pessoas, inclusive o gerente de uma agência bancária local –, foram unânimes em reconhecer e proclamar que o comércio e a cidade em geral se estão largamente beneficiando com o grande afluxo de seus novos consumidores que são os trabalhadores da cana com seus salários valorizados. O movimento comercial cresceu de várias vezes, e o fato se vem acentuando de mês para mês, não podendo, pois, ser atribuído simplesmente às festas de fim de ano. Está-se vendendo em Palmares – e trata-se evidentemente aí somente de uma amostra, pois o fato é geral em toda zona canavieira –, como nunca se vendeu antes. Não foi possível naturalmente, dada a rapidez da visita e sua improvisação, recolher dados precisos. É, aliás, de estranhar que as agências e organismos oficiais voltados para os problemas de desenvolvimento do Nordeste, como em especial a Sudene, não se tivessem, até agora, mostrado particularmente interessados no assunto, e não procurassem acompanhar atenta e sistematicamente a sua evolução. Encontra-se aí uma experiência evidentemente da maior importância e significação para a análise e interpretação dos problemas de desenvolvimento econômico, e que mereceria por isso uma atenção que infelizmente ainda não lhe foi concedida. Faltam por isso dados quantitativos precisos do fenômeno. Mas o fato aí está para quem quiser observá-lo: o interior pernambucano passa indubitavelmente por transformação de grande alcance no que se refere à vida local, graças ao consumo crescente, pelos trabalhadores rurais, de artigos que até há pouco ignoravam completamente ou adquiriam em quantidades mínimas, como sejam camas, colchões, tecidos, calçados (na zona rural pernambucana era excepcionalíssimo encontrar alguém calçado), artigos de toucador, louça, até mesmo pequenos rádios de pilha. O comércio não tem mãos a medir para atender a esse brusco aumento de sua clientela e os pedidos que lhe vem de um setor até ontem praticamente ausente do mercado, embora constituísse o maior contingente demográfico local.
Trata-se por certo de um processo ainda em começo, e demorará ainda algum tempo – mesmo porque depende também de outros fatores mais complexos – até que a massa rural pernambucana se integre efetivamente e por completo na vida normal de uma sociedade civilizada de que na realidade sempre viveu praticamente afastada. Mas os primeiros sintomas e índices do que significa o processo em início já são suficientes para alcançar algumas conclusões de ordem econômica, social e mesmo política, da maior relevância.
A ampliação do mercado que resulta da irrupção nele de um considerável contingente de novos consumidores antes dele afastados, constitui sem dúvida um poderoso estímulo às atividades produtivas, em particular da indústria. Já se fala em Palmares na eventualidade da transformação do insignificante centro urbano que é hoje a cidade, em importante praça comercial e centro de grande atividade econômica e vida social. Verifica-se com isso que um dos principais, e podemos dizer que fundamentalmente o principal ponto de estrangulamento da economia nordestina e grande responsável do subdesenvolvimento da região, começa a apresentar as primeiras perspectivas de solução. É possível prever o rompimento do tão conhecido círculo vicioso do subdesenvolvimento, que consiste na deficiência de iniciativas e de atividades produtivas por efeito da insuficiência de estímulos num mercado restrito; restrição essa por seu turno decorrente da falta daquelas mesmas iniciativas e baixo nível de atividades econômicas.
De outro lado, o encarecimento da mão-de-obra rural terá necessariamente por efeito – trata-se de uma lei invariável da economia capitalista – estimular a produtividade agrícola pela introdução de melhoramentos tecnológicos (mecanização, adubação, etc.) Ao mesmo tempo esse encarecimento da mão-de-obra e aumento de custos contribuirá para a concentração da lavoura canavieira nas áreas mais favoráveis para essa cultura, liberando-se por essa forma as áreas menos favoráveis que poderão ser aproveitadas para outras atividades produtivas. É graças principalmente ao baixo custo da mão-de-obra que até hoje sempre prevaleceu no Nordeste, que foi possível à cana absorver e monopolizar a quase totalidade das terras, com todas as nefastas conseqüências de ordem econômica e social que daí decorrem. A liberação de áreas deixadas pela cultura canavieira constituirá inclusive estímulo para o parcelamento de grandes propriedades que se mostrarem menos propícias à grande lavoura. Note-se que já começam a aparecer algumas das primeiras iniciativas particulares de loteamento para venda de grandes propriedades. Essas iniciativas poderão e deverão ser estimuladas através de medidas fiscais e outras a fim de se incrementar esse processo de divisão expontânea de grandes propriedades, o que por certo constituirá importante fator do outro objetivo da reforma agrária que vem a ser proporcionar ao trabalhador rural que puder e quiser fazê-lo, maiores oportunidades de acesso à propriedade da terra.
Em suma, as conseqüências da valorização do trabalho rural observado nesta principal zona agrícola do Nordeste que vem a ser a da lavoura canavieira, são multiformes e se projetam em futuro mais ou menos próximo em transformações consideráveis e profundas da economia nordestina em geral. Não pode haver dúvidas que o Nordeste está ingressando agora, e graças sobretudo à elevação dos padrões de vida do trabalhador rural, em nova fase de desenvolvimento bem distinta do passado.
Evidencia-se nesse exemplo concreto que nos oferece o Nordeste e que aí está em pleno desenvolvimento para quem quiser observá-lo e dele extrair as lições que proporciona, a grande força potencial renovadora da economia agrária brasileira e estimuladora do processo de reforma agrária que se encerra na luta dos trabalhadores rurais pelas suas reivindicações imediatas e melhores condições de vida. O que plenamente confirma a tese a que nos referimos no início deste artigo, contra aqueles que teimam em acentuar quase unicamente o aspecto da reforma agrária que diz respeito à divisão de terras. Tem sido esta última, infelizmente, a posição dominante das forças de esquerda, como já notamos, com grande prejuízo, sem a menor dúvida, para a marcha da reforma agrária. Apegando-se unicamente a um aspecto dessa reforma que apresenta menores perspectivas de ação prática no momento, os seus defensores vêm contribuindo, embora inconscientemente no mais das vezes, para fazer da palavra de ordem da reforma cada vez mais um simples pretexto de agitação política de cúpula, traduzida em slogans que não atingem a massa trabalhadora rural (como sejam “reforma agrária radical”, “eliminação do latifúndio”, “terra para quem a trabalha”, etc.), e que se oferecem algum rendimento demagógico em restritos setores completamente afastados dos problemas do campo, pouco ou nada tem dado de prático no terreno da luta efetiva pelas reformas. Para comprová-lo é bastante observar a diminuta audiência e receptividade que tais slogans têm na massa dos trabalhadores rurais que deveriam naturalmente ser os primeiros a ouvi-los e os entender. Isso apesar de não faltar aos mesmos “slogans” a mais aparatosa orquestração, inclusive de círculos oficiais e do próprio Presidente da República. De efetivo e concreto, a campanha em favor da divisão da terra pouco ou nada tem produzido, nem despertou maior atenção da massa rural, circunscrevendo-se até hoje a luta pela terra quase unicamente a regiões e situações excepcionais, como é o caso dos posseiros das zonas pioneiras (oeste paranaense, Goiás...) e dos foreiros de algumas restritas zonas de importância secundária do Nordeste. Nas regiões de real e fundamental expressão na economia agrária brasileira, e onde se concentra a larga maioria da população trabalhadora rural – na lavoura canavieira do Nordeste e do Centro Sul, nos cafezais de São Paulo e Paraná, nos cacauais da Bahia, etc. –, nessas regiões e reivindicação da terra não encontra eco, e não se esboçou aí, em proporções dignas de nota, nenhum sintoma de luta social. O que contrasta vivamente com a agitação, luta e abertura de amplas perspectivas de reforma e renovação econômica, social e podemos até dizer política, que se apresentam no setor das reivindicações trabalhistas. Contraste que ainda seria maior se nesta última direção se tivesse acentuado e concentrado a ação das forças políticas de esquerda, seja através da propaganda, organização e mobilização dos trabalhadores, seja na luta parlamentar pelo aperfeiçoamento e ampliação da legislação social-trabalhista aplicável ao campo; bem como pela adoção de medidas legais complementares destinadas a facilitar e estimular a organização dos trabalhadores rurais, promover e consolidar o novo estatuto material e social deles.
Em vez disso, as forças políticas de esquerda, inclusive os comunistas, se desgastam em estéril agitação que serve muito mais os propósitos do carreirismo político que os verdadeiros interesses das camadas trabalhadoras do campo e os objetivos econômicos e sociais da revolução brasileira. Na raiz dessa falseada orientação política está a incompreensão da realidade brasileira e do sentido profundo do nosso processo revolucionário, o que leva a distorções produzidas por erradas concepções teóricas que consiste ou inconscientemente se inspiram em situações econômicas e sociais completamente estranhas ao Brasil e aqui inexistentes. Decalcou-se simplesmente e sem maior espírito crítico e científico, o inaplicável modelo da reforma e revolução agrária dos países europeus. E se transportou para cá, encaixando arbitrariamente na evolução histórica brasileira, a situação da Europa egressa da Idade Média e do feudalismo cuja economia agrária, tão distinta da nossa, se caracterizava essencialmente pela presença de uma economia e classe camponesa, isto é, uma estrutura econômica e social de pequenos produtores individuais constituída de unidades familiares voltadas essencialmente para a produção de subsistência e onde o mercado representava papel secundário e subsidiário. Essa economia camponesa dos países europeus se encontrou até os tempos modernos – e na Europa oriental, inclusive na Rússia tzarista, até o séc. XX – oprimida, explorada e sufocada pela grande propriedade fundiária de origem feudal. Propunha-se assim a reforma agrária em termos de libertação dessa economia e classe camponesa. Isso se traduzia, em termos sociais, na abolição das restrições de ordem pessoal que pesavam sobre os camponeses e que nos casos extremos consistiam na servidão da gleba; restrições essas que em maior ou menor grau lhes tolhiam a liberdade jurídica e a livre disposição dos produtos de que dependia sua subsistência. E significava, no plano econômico, abrir passo no campo para uma economia mercantil, isso é, de produção para o mercado; bem como para o estabelecimento de relações capitalistas de produção e trabalho, o que representava condição necessária, no momento, para o progresso e desenvolvimento das forças produtivas da agricultura.
Completamente distintas, como logo se vê, são as condições brasileiras, tanto no que se refere à formação histórica de nossa economia, como em conseqüência, no que diz respeito à situação nos dias de hoje. A economia agrária brasileira não se constituiu na base da produção individual ou familiar, e da ocupação parcelária da terra, como na Europa, e sim se estruturou na grande exploração agrária voltada para o mercado. E o que é mais, o mercado externo, o que acentua ainda mais a natureza essencialmente mercantil da economia agrária brasileira, em contraste com a dos países europeus. Não se constituiu assim uma economia e classe camponesa, a não ser em restritos setores de importância secundária. E o que tivemos foi uma estrutura de grandes unidades produtoras de mercadorias de exportação trabalhadas pela mão-de-obra escrava. Situação essa que no fundamental se conservou até hoje. Manteve-se praticamente intacta a grande exploração agrária, operando-se nela, com a abolição da escravidão, a substituição do trabalho escravo pelo livre sem afetar com isso a natureza estrutural da grande exploração. Até mesmo, em alguns e importantes casos, a grande exploração se ampliou e integrou ainda mais. É o que se deu recentemente com a lavoura canavieira no Nordeste onde os antigos engenhos foram sendo progressivamente absorvidos e concentrados e pela usina; bem como em São Paulo, onde a produção açucareira se vem aceleradamente desenvolvendo a ponto de constituir hoje o Estado o principal produtor do país, e onde essa produção se acha altamente concentrada.
Nessa perspectiva da economia do açúcar é muito fácil observar as incoerências e inconseqüências das interpretações mais em voga acerca da economia agrária brasileira difundidas nos meios de esquerda. Segundo essas interpretações, o latifúndio constituiria uma sobrevivência “arcaica” de natureza “feudal ou semifeudal”, hoje inteiramente obsoleta e ultrapassada pelas exigências do desenvolvimento econômico. No entretanto no caso da economia açucareira que constitui sem dúvida um dos principais setores da agricultura brasileira, e certamente aquele em que se encontra a maior concentração fundiária, observa-se, sem margem para dúvidas, que essa concentração, nas proporções em que se verifica e continua se ampliando, representa fato recente e da maior atualidade, nada tendo de “arcaico” e “obsoleto”. Bem pelo contrário, ela não somente tem por estímulo fatores de natureza essencialmente capitalista (em que sobrelevam as exigências dessa grande unidade industrial moderna que é a usina de açúcar), mas ainda proporcionou e foi mesmo condição necessária do aumento de produtividade verificado e do desenvolvimento econômico. Como se enquadraria esse fato tão notório e tão fácil de ser observado e analisado, nos esquemas teóricos correntes acerca da natureza da economia agrária brasileira? É claro que tal enquadramento somente se faz e pode fazer à custa de uma completa distorção dos fatos reais, e mesmo desconhecimento e desprezo dos de maior relevo. E teremos então, como era fatal, erros grosseiros nas conclusões práticas derivadas de tal interpretação falseada, acerca do sentido das reformas propostas. Como exemplificação, lembremos o mesmo documento acima citado, a posição dos comunistas diante das Reformas de Base, onde num capítulo especial acerca da política de desenvolvimento do Nordeste se propõe como meta da luta pela reforma agrária, a “desapropriação das terras dos latifúndios na faixa úmida do litoral (isto é, zona açucareira) e a distribuição das terras aos camponeses”. O que se está efetivamente verificando na prática é coisa muito diferente; mas nem por isso os próprios autores do documento em questão porão em dúvida, estamos seguros, o considerável impulso no sentido da reforma e renovação da economia agrária verificado na zona açucareira do Nordeste, embora isso se esteja dando por vias que a interpretação teórica e a orientação prática deles não previra nem propusera.
Nesse caso da lavoura açucareira do Nordeste, uma falseada concepção teórica não impediu, embora tenha por vezes embaraçado o progresso realizado. De um comunista local ouvi a afirmação que não concordava muito com o caminho que estava seguindo a luta dos trabalhadores da cana porque isso os desviava do objetivo que devia teoricamente ser o seu, a saber, a “reforma agrária radical” nos termos propostos pelo documento e programa comunistas que citamos. Eis aí como uma errada teoria pode desorientar a prática e embaraçar com restrições descabidas e hesitações a marcha da reforma. Não houve, contudo, no caso que estamos considerando, maior prejuízo, porque na situação particular do Nordeste era tal a pressão das contradições presentes – a que se aliou a circunstância particularmente favorável de um governo estadual que deu seu apoio à luta dos trabalhadores –, que foi possível superar quaisquer insuficiências teóricas que se supriram com o empirismo da ação prática. Em outros lugares, todavia, onde tais estímulos e fatores favoráveis à reforma não ocorreram, ou não lograram se manifestar de maneira tão forte, o erro teórico e a desorientação conseqüente da prática deram como resultado o esmorecimento da ação. Não pode ser contestado que nas condições altamente favoráveis do momento presente, tanto no que respeita à situação econômica, social e política geral, como no que se refere à compreensão e ânimo de luta dos trabalhadores rurais brasileiros, a questão agrária marcha muito lentamente na generalidade do País. E continuará assim por muito tempo, até que as forças políticas populares e de esquerda se decidam intervir acertadamente no assunto, deixando de lado a estéril agitação por objetivos que se acham no mais das vezes, na situação do país e no momento que atravessamos, muito além e mesmo inteiramente fora do realizável, a fim de se concentrarem naquelas tarefas da reforma que efetivamente respondem à sua fase e etapa atuais. Essa é a condição para o apressamento da transformação e renovação da economia agrária brasileira, preliminar necessária de novo Brasil de amanhã que se está construindo.
Revista Brasiliense, n. 51, jan/fev., 1964. (último número da revista)
Nada justifica essa subestimação, e pelo contrário, os últimos desenvolvimentos da questão, particularmente no Nordeste onde o problema agrário se apresenta de maneira mais aguda, vêm em confirmação da outra tese, a saber, que é na aplicação efetiva da legislação trabalhista, sua ampliação e necessária correção em muitos pontos em que se vem mostrando insuficiente e defeituosa, bem como na adoção de providências complementares destinadas a consolidar e tirar todos os efeitos econômicos e sociais da nova situação criada pela melhoria das condições de vida do trabalhador obtidas com a aplicação daquela legislação trabalhista, é nisso sobretudo que deve consistir, no momento atual, a luta pela reforma e renovação de nossa economia agrária. É daí que se poderão esperar os melhores e mais profundos e imediatos reflexos de ordem econômica e social, e mesmo política, no conjunto da situação brasileira. O que vem ocorrendo no Nordeste constitui experiência preciosa e evidencia que a frente decisiva da luta pela reforma agrária se situa hoje sobretudo na implantação geral e definitiva, no campo, das normas reguladoras do trabalho. Pode-se dizer que aí reside o centro nevrálgico e ponto principal de partida da reforma que deve ser imediata e intensamente atacado. Não é por certo o único, mas sem dúvida o essencial e que oferece melhores perspectivas para a ação reformadora e seu sucesso.
Quais são esses fatos recentemente ocorridos no Nordeste, e particularmente em sua região de maior expressão econômica que vem a ser a área açucareira de Pernambuco? Um amplo e poderoso movimento dos trabalhadores da cana, movimento esse amparado e estimulado pelo governo do Sr. Miguel Arraes, governador do Estado, que assim mostra bem claramente sua inspiração democrática e renovadora da obsoleta estrutura das relações econômicas e sociais imperantes no campo brasileiro, logrou obter no correr do ano findo completa vitória no que diz respeito a pelo menos um dos ítens essenciais da legislação rural-trabalhista que são os níveis de remuneração do trabalhador. Hoje, a totalidade dos trabalhadores da cana que há menos de ano se contavam entre os setores mais explorados e miseráveis dessa já em conjunto tão miserável população rural brasileira, estão percebendo uma remuneração que, embora não tenha em si nada de extraordinário (se bem que ultrapasse o mínimo legal), representa para eles mais ainda que uma simples melhoria quantitativa, pois assume caráter de verdadeira transmutação em suas condições de vida. Basta citarmos os dados: há menos de um ano, percebiam de 80 a 120 cruzeiros diários. Hoje estão recebendo 900!
A explicação desse considerável progresso e magnífica vitória obtida em tão curto lapso de tempo e que subverteu por completo os tradicionais padrões e a escala de valores do interior pernambucano se encontra, a par do fator político que em outras áreas do país não foi ainda devidamente aproveitado e mobilizado para o mesmo fim, encontra-se na rapidez e eficiência com que os trabalhadores pernambucanos lograram se organizar e sindicalizar. É quase um milagre essa pronta e larga mobilização de trabalhadores rurais somente possível porque nela se concentrou a ação e direção política, o que mostra o grave erro de não se conceder a esse propósito, em outros lugares, a primazia no plano político da reforma agrária, em benefício de outros propósitos no momento ainda de remotas possibilidades práticas, como sejam a abolição do latifúndio e a divisão da grande propriedade rural. Conhecemos o interior pernambucano de longa data, e ainda em maio do ano passado, quando lá estivemos, nada fazia crer que de um momento para outro aqueles humildes e submissos trabalhadores da cana, jungidos à sua miserável existência de verdadeiros párias sociais e inteiramente passivos em frente aos usineiros e senhores de engenho seus patrões, fossem capazes de levantar a cabeça e levar de vencida os seus exploradores.
Mas assim foi, e mudou com isso a fisionomia da região pelos efeitos diretos e indiretos da brusca elevação dos padrões de vida da população local constituída em sua maioria de trabalhadores da cana e suas famílias. Modificou-se não apenas a existência dos trabalhadores diretamente beneficiados pela melhoria dos salários, e que começavam já a apresentar os primeiros sinais visíveis, embora ainda muito débeis, de sua integração nos padrões de vida de uma sociedade civilizada – o que não ocorria anteriormente –, mas já se estão sentindo os efeitos da nova situação criada com a brusca elevação do poder aquisitivo dos trabalhadores, nas atividades comerciais da região. Em dezembro do ano passado estivemos entre outros lugares em Palmares, centro da região canavieira sul do Estado e obtivemos aí informações concludentes a respeito em inquérito a que procedemos junto ao comércio local. Não encontramos duas opiniões nem informações divergentes. Grandes e pequenos comerciantes – tivemos contato com muitas e variadas pessoas, inclusive o gerente de uma agência bancária local –, foram unânimes em reconhecer e proclamar que o comércio e a cidade em geral se estão largamente beneficiando com o grande afluxo de seus novos consumidores que são os trabalhadores da cana com seus salários valorizados. O movimento comercial cresceu de várias vezes, e o fato se vem acentuando de mês para mês, não podendo, pois, ser atribuído simplesmente às festas de fim de ano. Está-se vendendo em Palmares – e trata-se evidentemente aí somente de uma amostra, pois o fato é geral em toda zona canavieira –, como nunca se vendeu antes. Não foi possível naturalmente, dada a rapidez da visita e sua improvisação, recolher dados precisos. É, aliás, de estranhar que as agências e organismos oficiais voltados para os problemas de desenvolvimento do Nordeste, como em especial a Sudene, não se tivessem, até agora, mostrado particularmente interessados no assunto, e não procurassem acompanhar atenta e sistematicamente a sua evolução. Encontra-se aí uma experiência evidentemente da maior importância e significação para a análise e interpretação dos problemas de desenvolvimento econômico, e que mereceria por isso uma atenção que infelizmente ainda não lhe foi concedida. Faltam por isso dados quantitativos precisos do fenômeno. Mas o fato aí está para quem quiser observá-lo: o interior pernambucano passa indubitavelmente por transformação de grande alcance no que se refere à vida local, graças ao consumo crescente, pelos trabalhadores rurais, de artigos que até há pouco ignoravam completamente ou adquiriam em quantidades mínimas, como sejam camas, colchões, tecidos, calçados (na zona rural pernambucana era excepcionalíssimo encontrar alguém calçado), artigos de toucador, louça, até mesmo pequenos rádios de pilha. O comércio não tem mãos a medir para atender a esse brusco aumento de sua clientela e os pedidos que lhe vem de um setor até ontem praticamente ausente do mercado, embora constituísse o maior contingente demográfico local.
Trata-se por certo de um processo ainda em começo, e demorará ainda algum tempo – mesmo porque depende também de outros fatores mais complexos – até que a massa rural pernambucana se integre efetivamente e por completo na vida normal de uma sociedade civilizada de que na realidade sempre viveu praticamente afastada. Mas os primeiros sintomas e índices do que significa o processo em início já são suficientes para alcançar algumas conclusões de ordem econômica, social e mesmo política, da maior relevância.
A ampliação do mercado que resulta da irrupção nele de um considerável contingente de novos consumidores antes dele afastados, constitui sem dúvida um poderoso estímulo às atividades produtivas, em particular da indústria. Já se fala em Palmares na eventualidade da transformação do insignificante centro urbano que é hoje a cidade, em importante praça comercial e centro de grande atividade econômica e vida social. Verifica-se com isso que um dos principais, e podemos dizer que fundamentalmente o principal ponto de estrangulamento da economia nordestina e grande responsável do subdesenvolvimento da região, começa a apresentar as primeiras perspectivas de solução. É possível prever o rompimento do tão conhecido círculo vicioso do subdesenvolvimento, que consiste na deficiência de iniciativas e de atividades produtivas por efeito da insuficiência de estímulos num mercado restrito; restrição essa por seu turno decorrente da falta daquelas mesmas iniciativas e baixo nível de atividades econômicas.
De outro lado, o encarecimento da mão-de-obra rural terá necessariamente por efeito – trata-se de uma lei invariável da economia capitalista – estimular a produtividade agrícola pela introdução de melhoramentos tecnológicos (mecanização, adubação, etc.) Ao mesmo tempo esse encarecimento da mão-de-obra e aumento de custos contribuirá para a concentração da lavoura canavieira nas áreas mais favoráveis para essa cultura, liberando-se por essa forma as áreas menos favoráveis que poderão ser aproveitadas para outras atividades produtivas. É graças principalmente ao baixo custo da mão-de-obra que até hoje sempre prevaleceu no Nordeste, que foi possível à cana absorver e monopolizar a quase totalidade das terras, com todas as nefastas conseqüências de ordem econômica e social que daí decorrem. A liberação de áreas deixadas pela cultura canavieira constituirá inclusive estímulo para o parcelamento de grandes propriedades que se mostrarem menos propícias à grande lavoura. Note-se que já começam a aparecer algumas das primeiras iniciativas particulares de loteamento para venda de grandes propriedades. Essas iniciativas poderão e deverão ser estimuladas através de medidas fiscais e outras a fim de se incrementar esse processo de divisão expontânea de grandes propriedades, o que por certo constituirá importante fator do outro objetivo da reforma agrária que vem a ser proporcionar ao trabalhador rural que puder e quiser fazê-lo, maiores oportunidades de acesso à propriedade da terra.
Em suma, as conseqüências da valorização do trabalho rural observado nesta principal zona agrícola do Nordeste que vem a ser a da lavoura canavieira, são multiformes e se projetam em futuro mais ou menos próximo em transformações consideráveis e profundas da economia nordestina em geral. Não pode haver dúvidas que o Nordeste está ingressando agora, e graças sobretudo à elevação dos padrões de vida do trabalhador rural, em nova fase de desenvolvimento bem distinta do passado.
Evidencia-se nesse exemplo concreto que nos oferece o Nordeste e que aí está em pleno desenvolvimento para quem quiser observá-lo e dele extrair as lições que proporciona, a grande força potencial renovadora da economia agrária brasileira e estimuladora do processo de reforma agrária que se encerra na luta dos trabalhadores rurais pelas suas reivindicações imediatas e melhores condições de vida. O que plenamente confirma a tese a que nos referimos no início deste artigo, contra aqueles que teimam em acentuar quase unicamente o aspecto da reforma agrária que diz respeito à divisão de terras. Tem sido esta última, infelizmente, a posição dominante das forças de esquerda, como já notamos, com grande prejuízo, sem a menor dúvida, para a marcha da reforma agrária. Apegando-se unicamente a um aspecto dessa reforma que apresenta menores perspectivas de ação prática no momento, os seus defensores vêm contribuindo, embora inconscientemente no mais das vezes, para fazer da palavra de ordem da reforma cada vez mais um simples pretexto de agitação política de cúpula, traduzida em slogans que não atingem a massa trabalhadora rural (como sejam “reforma agrária radical”, “eliminação do latifúndio”, “terra para quem a trabalha”, etc.), e que se oferecem algum rendimento demagógico em restritos setores completamente afastados dos problemas do campo, pouco ou nada tem dado de prático no terreno da luta efetiva pelas reformas. Para comprová-lo é bastante observar a diminuta audiência e receptividade que tais slogans têm na massa dos trabalhadores rurais que deveriam naturalmente ser os primeiros a ouvi-los e os entender. Isso apesar de não faltar aos mesmos “slogans” a mais aparatosa orquestração, inclusive de círculos oficiais e do próprio Presidente da República. De efetivo e concreto, a campanha em favor da divisão da terra pouco ou nada tem produzido, nem despertou maior atenção da massa rural, circunscrevendo-se até hoje a luta pela terra quase unicamente a regiões e situações excepcionais, como é o caso dos posseiros das zonas pioneiras (oeste paranaense, Goiás...) e dos foreiros de algumas restritas zonas de importância secundária do Nordeste. Nas regiões de real e fundamental expressão na economia agrária brasileira, e onde se concentra a larga maioria da população trabalhadora rural – na lavoura canavieira do Nordeste e do Centro Sul, nos cafezais de São Paulo e Paraná, nos cacauais da Bahia, etc. –, nessas regiões e reivindicação da terra não encontra eco, e não se esboçou aí, em proporções dignas de nota, nenhum sintoma de luta social. O que contrasta vivamente com a agitação, luta e abertura de amplas perspectivas de reforma e renovação econômica, social e podemos até dizer política, que se apresentam no setor das reivindicações trabalhistas. Contraste que ainda seria maior se nesta última direção se tivesse acentuado e concentrado a ação das forças políticas de esquerda, seja através da propaganda, organização e mobilização dos trabalhadores, seja na luta parlamentar pelo aperfeiçoamento e ampliação da legislação social-trabalhista aplicável ao campo; bem como pela adoção de medidas legais complementares destinadas a facilitar e estimular a organização dos trabalhadores rurais, promover e consolidar o novo estatuto material e social deles.
Em vez disso, as forças políticas de esquerda, inclusive os comunistas, se desgastam em estéril agitação que serve muito mais os propósitos do carreirismo político que os verdadeiros interesses das camadas trabalhadoras do campo e os objetivos econômicos e sociais da revolução brasileira. Na raiz dessa falseada orientação política está a incompreensão da realidade brasileira e do sentido profundo do nosso processo revolucionário, o que leva a distorções produzidas por erradas concepções teóricas que consiste ou inconscientemente se inspiram em situações econômicas e sociais completamente estranhas ao Brasil e aqui inexistentes. Decalcou-se simplesmente e sem maior espírito crítico e científico, o inaplicável modelo da reforma e revolução agrária dos países europeus. E se transportou para cá, encaixando arbitrariamente na evolução histórica brasileira, a situação da Europa egressa da Idade Média e do feudalismo cuja economia agrária, tão distinta da nossa, se caracterizava essencialmente pela presença de uma economia e classe camponesa, isto é, uma estrutura econômica e social de pequenos produtores individuais constituída de unidades familiares voltadas essencialmente para a produção de subsistência e onde o mercado representava papel secundário e subsidiário. Essa economia camponesa dos países europeus se encontrou até os tempos modernos – e na Europa oriental, inclusive na Rússia tzarista, até o séc. XX – oprimida, explorada e sufocada pela grande propriedade fundiária de origem feudal. Propunha-se assim a reforma agrária em termos de libertação dessa economia e classe camponesa. Isso se traduzia, em termos sociais, na abolição das restrições de ordem pessoal que pesavam sobre os camponeses e que nos casos extremos consistiam na servidão da gleba; restrições essas que em maior ou menor grau lhes tolhiam a liberdade jurídica e a livre disposição dos produtos de que dependia sua subsistência. E significava, no plano econômico, abrir passo no campo para uma economia mercantil, isso é, de produção para o mercado; bem como para o estabelecimento de relações capitalistas de produção e trabalho, o que representava condição necessária, no momento, para o progresso e desenvolvimento das forças produtivas da agricultura.
Completamente distintas, como logo se vê, são as condições brasileiras, tanto no que se refere à formação histórica de nossa economia, como em conseqüência, no que diz respeito à situação nos dias de hoje. A economia agrária brasileira não se constituiu na base da produção individual ou familiar, e da ocupação parcelária da terra, como na Europa, e sim se estruturou na grande exploração agrária voltada para o mercado. E o que é mais, o mercado externo, o que acentua ainda mais a natureza essencialmente mercantil da economia agrária brasileira, em contraste com a dos países europeus. Não se constituiu assim uma economia e classe camponesa, a não ser em restritos setores de importância secundária. E o que tivemos foi uma estrutura de grandes unidades produtoras de mercadorias de exportação trabalhadas pela mão-de-obra escrava. Situação essa que no fundamental se conservou até hoje. Manteve-se praticamente intacta a grande exploração agrária, operando-se nela, com a abolição da escravidão, a substituição do trabalho escravo pelo livre sem afetar com isso a natureza estrutural da grande exploração. Até mesmo, em alguns e importantes casos, a grande exploração se ampliou e integrou ainda mais. É o que se deu recentemente com a lavoura canavieira no Nordeste onde os antigos engenhos foram sendo progressivamente absorvidos e concentrados e pela usina; bem como em São Paulo, onde a produção açucareira se vem aceleradamente desenvolvendo a ponto de constituir hoje o Estado o principal produtor do país, e onde essa produção se acha altamente concentrada.
Nessa perspectiva da economia do açúcar é muito fácil observar as incoerências e inconseqüências das interpretações mais em voga acerca da economia agrária brasileira difundidas nos meios de esquerda. Segundo essas interpretações, o latifúndio constituiria uma sobrevivência “arcaica” de natureza “feudal ou semifeudal”, hoje inteiramente obsoleta e ultrapassada pelas exigências do desenvolvimento econômico. No entretanto no caso da economia açucareira que constitui sem dúvida um dos principais setores da agricultura brasileira, e certamente aquele em que se encontra a maior concentração fundiária, observa-se, sem margem para dúvidas, que essa concentração, nas proporções em que se verifica e continua se ampliando, representa fato recente e da maior atualidade, nada tendo de “arcaico” e “obsoleto”. Bem pelo contrário, ela não somente tem por estímulo fatores de natureza essencialmente capitalista (em que sobrelevam as exigências dessa grande unidade industrial moderna que é a usina de açúcar), mas ainda proporcionou e foi mesmo condição necessária do aumento de produtividade verificado e do desenvolvimento econômico. Como se enquadraria esse fato tão notório e tão fácil de ser observado e analisado, nos esquemas teóricos correntes acerca da natureza da economia agrária brasileira? É claro que tal enquadramento somente se faz e pode fazer à custa de uma completa distorção dos fatos reais, e mesmo desconhecimento e desprezo dos de maior relevo. E teremos então, como era fatal, erros grosseiros nas conclusões práticas derivadas de tal interpretação falseada, acerca do sentido das reformas propostas. Como exemplificação, lembremos o mesmo documento acima citado, a posição dos comunistas diante das Reformas de Base, onde num capítulo especial acerca da política de desenvolvimento do Nordeste se propõe como meta da luta pela reforma agrária, a “desapropriação das terras dos latifúndios na faixa úmida do litoral (isto é, zona açucareira) e a distribuição das terras aos camponeses”. O que se está efetivamente verificando na prática é coisa muito diferente; mas nem por isso os próprios autores do documento em questão porão em dúvida, estamos seguros, o considerável impulso no sentido da reforma e renovação da economia agrária verificado na zona açucareira do Nordeste, embora isso se esteja dando por vias que a interpretação teórica e a orientação prática deles não previra nem propusera.
Nesse caso da lavoura açucareira do Nordeste, uma falseada concepção teórica não impediu, embora tenha por vezes embaraçado o progresso realizado. De um comunista local ouvi a afirmação que não concordava muito com o caminho que estava seguindo a luta dos trabalhadores da cana porque isso os desviava do objetivo que devia teoricamente ser o seu, a saber, a “reforma agrária radical” nos termos propostos pelo documento e programa comunistas que citamos. Eis aí como uma errada teoria pode desorientar a prática e embaraçar com restrições descabidas e hesitações a marcha da reforma. Não houve, contudo, no caso que estamos considerando, maior prejuízo, porque na situação particular do Nordeste era tal a pressão das contradições presentes – a que se aliou a circunstância particularmente favorável de um governo estadual que deu seu apoio à luta dos trabalhadores –, que foi possível superar quaisquer insuficiências teóricas que se supriram com o empirismo da ação prática. Em outros lugares, todavia, onde tais estímulos e fatores favoráveis à reforma não ocorreram, ou não lograram se manifestar de maneira tão forte, o erro teórico e a desorientação conseqüente da prática deram como resultado o esmorecimento da ação. Não pode ser contestado que nas condições altamente favoráveis do momento presente, tanto no que respeita à situação econômica, social e política geral, como no que se refere à compreensão e ânimo de luta dos trabalhadores rurais brasileiros, a questão agrária marcha muito lentamente na generalidade do País. E continuará assim por muito tempo, até que as forças políticas populares e de esquerda se decidam intervir acertadamente no assunto, deixando de lado a estéril agitação por objetivos que se acham no mais das vezes, na situação do país e no momento que atravessamos, muito além e mesmo inteiramente fora do realizável, a fim de se concentrarem naquelas tarefas da reforma que efetivamente respondem à sua fase e etapa atuais. Essa é a condição para o apressamento da transformação e renovação da economia agrária brasileira, preliminar necessária de novo Brasil de amanhã que se está construindo.
Revista Brasiliense, n. 51, jan/fev., 1964. (último número da revista)
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