No meio século que passou, o Brasil viveu três fases na relação entre os intelectuais
e o poder. Durante a longa ditadura militar, a maioria dos intelectuais esteve
na oposição, ou pelo menos a uma distância razoável do poder de exceção. Mas,
no governo FHC, parte razoável deles parou de enxergar o poder como seu
inimigo. Depois da eleição de Lula, aumentou o número de intelectuais que se
reconheciam no governo.
A grande mudança, do regime militar para o mais longo regime democrático de
nossa história, está no fato de que trinta anos atrás era impensável gostarmos de
um governo. Agora, é possível. Na verdade, tornou-se norma, mais que exceção.
Mesmo quem é contra o governo federal pode simpatizar com o governo mineiro ou
o paulista, há anos em mãos da oposição.
Passamos de um longo período, uma geração inteira, no qual achávamos que
todo governo era ruim por princípio, para um tempo em que os intelectuais
apoiam algum poder eleito.
Demoramos a nos reconhecer em governos eleitos
Muito disso se deve à democratização do país. Um governo eleito representa o
povo. Como os intelectuais destoariam por completo da sociedade? Mas não foi
fácil para os intelectuais, nem para quem se interessa por política, migrar de
uma situação em que falar mal do governo era esporte trivial e rotineiro, para
outra em que ele foi instituído por nós. Era confortável culpar o governo por
tudo de ruim. Mas, com o avanço da democracia, fica claro que a sociedade,
incluindo os intelectuais, é responsável pelos problemas do país.
Para mim foi um certo espanto, um dia de 1995 ou 96, numa conversa social
sem nenhuma importância, eu fazer uma crítica ao governo, tipo "o governo
é assim mesmo", uma frase irresponsável e irrefletida, e ouvir meu
interlocutor defender algum ministro de Fernando Henrique. Não é que eu
estivesse errado; na verdade, nem lembro o assunto; mas o que eu dizia estava
marcado por décadas de críticas a governos não representativos, ditatoriais e,
supunha eu, ineficientes nos assuntos que importavam. Meu maldizer não era
sequer meu; estava ancorado em trinta anos de experiências ruins: a ditadura
militar, o governo que era para ter sido do PMDB mas foi do ex-presidente do
partido da ditadura e, depois, o primeiro presidente eleito, que terminou
destituído por corrupção. Antes disso, séculos de autoritarismo, colônia,
escravidão, monarquia, fraude eleitoral, revolução liberal que culmina em
ditadura. Mesmo no único período que tivemos de democracia, entre 1945 e 1964,
tivemos repressão à esquerda e golpes militares. Desses governos todos, qual
admirar como democrático, representativo, capaz? Talvez só Juscelino cumprisse
os três quesitos. Portanto, meu escárnio presumia toda a história do Brasil, a
mágoa democrática ante o fracasso dos poucos democratas ou dos empenhados em
enfrentar o subdesenvolvimento e a miséria.
Os primeiros anos após a ditadura são difíceis. Os artistas gostaram da lei
Sarney, a primeira de incentivo à cultura. Mas Collor foi na direção contrária,
revogando-a (depois, editou a Lei Rouanet) e granjeando a oposição de artistas,
por sua errática política cultural, e de intelectuais, que o viam com horror.
As relações dos intelectuais com o poder só melhoram com Itamar e com a
tranquilidade democrática, que vivemos desde seu sucessor, FHC.
Em nossa história, como na de outros países, os intelectuais muitas vezes
aderiram ao injustificável. José de Alencar defendia a escravidão. Mas também
houve intelectuais de oposição - por exemplo, na Inconfidência Mineira. Na
verdade, a grande mudança começa na ditadura Vargas (e na luta contra ela),
quando a grande maioria dos intelectuais inclui entre seus valores a
democracia. Isso explica a oposição deles ao regime militar. Esta história, por
sua vez, explica por que custaram tanto a aceitar que um poder - mesmo eleito -
pudesse ser respeitado, mais que isso, apoiado. Manifestos de intelectuais,
apoiando algum candidato, vêm dessa aceitação a entrar na arena.
Estar num governo sempre traz vantagens, geralmente em termos de patrocínio
e prestígio, mas também um custo, que é o de se responsabilizar pelo que ele
faz. O ex-presidente da SBPC que é ministro da Ciência e Tecnologia tem de ser
solidário da construção de Belo Monte. Ganha a nossa comunidade científica com
sua presença no Planalto, mas não dá para estar no governo pela metade.
Parafraseando um primeiro-ministro do Canadá, a participação no governo
"não é um restaurante self-service, em que você escolhe o que quer e
rejeita o que não quer". No governo você engole sapos, mas realiza algo.
Você mede constantemente custos e benefícios, sapos e êxitos.
Talvez por isso, entre intelectuais, cientistas e artistas, os que mais
necessitam de dinheiro cobram mais do governo, criticam-no se forem
desatendidos e o apoiam se tiverem apoio. Certamente por isso, as áreas que
menos precisam de dinheiro - como as ciências humanas reunidas na minha
faculdade, a de Filosofia da USP - podem fazer mais oposição, porque as verbas
menores que usam lhes vêm de agências de pesquisa, que valorizam sobretudo o
mérito e não o engajamento na política do governo. Há aspectos positivos e
negativos nos dois grupos. Quem tem interesses - isto é, interesses econômicos,
materiais - em jogo pode abrir mão de princípios e valores, o que é ruim, mas
também é mais objetivo na avaliação dos fatos, o que é bom. Quem depende menos
do dinheiro pode se pautar mais por valores - isto é, valores éticos - e isso é
bom, mas também pode transformar os valores em ilusões. Daí que a discussão
sobre os intelectuais, na política, fique sempre em aberto.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na
Universidade de São Paulo.
Fonte: Valor Econômico
Nenhum comentário:
Postar um comentário