segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Os intelectuais e a política - Renato Janine Ribeiro


No meio século que passou, o Brasil viveu três fases na relação entre os intelectuais e o poder. Durante a longa ditadura militar, a maioria dos intelectuais esteve na oposição, ou pelo menos a uma distância razoável do poder de exceção. Mas, no governo FHC, parte razoável deles parou de enxergar o poder como seu inimigo. Depois da eleição de Lula, aumentou o número de intelectuais que se reconheciam no governo.

A grande mudança, do regime militar para o mais longo regime democrático de nossa história, está no fato de que trinta anos atrás era impensável gostarmos de um governo. Agora, é possível. Na verdade, tornou-se norma, mais que exceção. Mesmo quem é contra o governo federal pode simpatizar com o governo mineiro ou o paulista, há anos em mãos da oposição.

Passamos de um longo período, uma geração inteira, no qual achávamos que todo governo era ruim por princípio, para um tempo em que os intelectuais apoiam algum poder eleito.

Demoramos a nos reconhecer em governos eleitos

Muito disso se deve à democratização do país. Um governo eleito representa o povo. Como os intelectuais destoariam por completo da sociedade? Mas não foi fácil para os intelectuais, nem para quem se interessa por política, migrar de uma situação em que falar mal do governo era esporte trivial e rotineiro, para outra em que ele foi instituído por nós. Era confortável culpar o governo por tudo de ruim. Mas, com o avanço da democracia, fica claro que a sociedade, incluindo os intelectuais, é responsável pelos problemas do país.

Para mim foi um certo espanto, um dia de 1995 ou 96, numa conversa social sem nenhuma importância, eu fazer uma crítica ao governo, tipo "o governo é assim mesmo", uma frase irresponsável e irrefletida, e ouvir meu interlocutor defender algum ministro de Fernando Henrique. Não é que eu estivesse errado; na verdade, nem lembro o assunto; mas o que eu dizia estava marcado por décadas de críticas a governos não representativos, ditatoriais e, supunha eu, ineficientes nos assuntos que importavam. Meu maldizer não era sequer meu; estava ancorado em trinta anos de experiências ruins: a ditadura militar, o governo que era para ter sido do PMDB mas foi do ex-presidente do partido da ditadura e, depois, o primeiro presidente eleito, que terminou destituído por corrupção. Antes disso, séculos de autoritarismo, colônia, escravidão, monarquia, fraude eleitoral, revolução liberal que culmina em ditadura. Mesmo no único período que tivemos de democracia, entre 1945 e 1964, tivemos repressão à esquerda e golpes militares. Desses governos todos, qual admirar como democrático, representativo, capaz? Talvez só Juscelino cumprisse os três quesitos. Portanto, meu escárnio presumia toda a história do Brasil, a mágoa democrática ante o fracasso dos poucos democratas ou dos empenhados em enfrentar o subdesenvolvimento e a miséria.

Os primeiros anos após a ditadura são difíceis. Os artistas gostaram da lei Sarney, a primeira de incentivo à cultura. Mas Collor foi na direção contrária, revogando-a (depois, editou a Lei Rouanet) e granjeando a oposição de artistas, por sua errática política cultural, e de intelectuais, que o viam com horror. As relações dos intelectuais com o poder só melhoram com Itamar e com a tranquilidade democrática, que vivemos desde seu sucessor, FHC.

Em nossa história, como na de outros países, os intelectuais muitas vezes aderiram ao injustificável. José de Alencar defendia a escravidão. Mas também houve intelectuais de oposição - por exemplo, na Inconfidência Mineira. Na verdade, a grande mudança começa na ditadura Vargas (e na luta contra ela), quando a grande maioria dos intelectuais inclui entre seus valores a democracia. Isso explica a oposição deles ao regime militar. Esta história, por sua vez, explica por que custaram tanto a aceitar que um poder - mesmo eleito - pudesse ser respeitado, mais que isso, apoiado. Manifestos de intelectuais, apoiando algum candidato, vêm dessa aceitação a entrar na arena.

Estar num governo sempre traz vantagens, geralmente em termos de patrocínio e prestígio, mas também um custo, que é o de se responsabilizar pelo que ele faz. O ex-presidente da SBPC que é ministro da Ciência e Tecnologia tem de ser solidário da construção de Belo Monte. Ganha a nossa comunidade científica com sua presença no Planalto, mas não dá para estar no governo pela metade. Parafraseando um primeiro-ministro do Canadá, a participação no governo "não é um restaurante self-service, em que você escolhe o que quer e rejeita o que não quer". No governo você engole sapos, mas realiza algo. Você mede constantemente custos e benefícios, sapos e êxitos.

Talvez por isso, entre intelectuais, cientistas e artistas, os que mais necessitam de dinheiro cobram mais do governo, criticam-no se forem desatendidos e o apoiam se tiverem apoio. Certamente por isso, as áreas que menos precisam de dinheiro - como as ciências humanas reunidas na minha faculdade, a de Filosofia da USP - podem fazer mais oposição, porque as verbas menores que usam lhes vêm de agências de pesquisa, que valorizam sobretudo o mérito e não o engajamento na política do governo. Há aspectos positivos e negativos nos dois grupos. Quem tem interesses - isto é, interesses econômicos, materiais - em jogo pode abrir mão de princípios e valores, o que é ruim, mas também é mais objetivo na avaliação dos fatos, o que é bom. Quem depende menos do dinheiro pode se pautar mais por valores - isto é, valores éticos - e isso é bom, mas também pode transformar os valores em ilusões. Daí que a discussão sobre os intelectuais, na política, fique sempre em aberto.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.

Fonte: Valor Econômico

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