- Valor Econômico | Eu & Fim de Semana
O sistema político construído desde a Nova República, e cuja consolidação foi resultado do processo de impeachment do presidente Collor, teve sua morte decretada na semana passada. É bem verdade que PMDB, PT e PSDB tendem a sobreviver como agremiações partidárias, mesmo que com um tamanho menor. Mas é difícil que tenham a centralidade dos últimos 25 anos, seja na definição da eleição presidencial, seja como peças principais da governabilidade. O que virá no seu lugar e com qual modus operandi são duas questões estratégicas para o futuro de nossa democracia. Nada diz que saíremos melhores ou piores da crise. Tudo vai depender da leitura correta e parcimoniosa do tsunami que nos atingiu.
A reformulação das estruturas que geraram a crise é essencial, embora as soluções institucionais não caibam numa fórmula mágica. O diagnóstico envolve vários elementos. Primeiro, as campanhas políticas tornaram-se muito caras, especialmente com a centralidade que o uso do tempo de rádio e TV ganhou no jogo político. Terminar com o horário eleitoral gratuito, pura e simplesmente, não seria o correto, porque acentuaria o poder de quem tem mais recursos financeiros e organizacionais prévios, ou de quem já é mais conhecido, geralmente por conta do uso dos meios de comunicação de massa.
Uma linha de ação mais consequente deve mudar as regras de acesso ao horário eleitoral gratuito, dando-lhe a quem tem representação social efetiva e reduzindo o seu papel de moeda de troca para as campanhas legislativas e, sobretudo, para cargos majoritários. Também precisa ser alterado o seu formato, voltando-o mais para a definição e o debate das diretrizes dos candidatos, em detrimento do aparato de marketing que é dominante hoje. Desse modo, todos os ilícitos realizados pelos marqueteiros serão reduzidos fortemente. Indiretamente, haverá outra consequência positiva: os candidatos e seus partidos não poderão terceirizar a responsabilidade pela estratégia eleitoral aos gurus de comunicação, que tanto mal causaram nas últimas eleições.
A vitória no primeiro round passa, portanto, pelo combate contra a dominância do marketing político, caro, corrompido e criador de campanhas vazias de conteúdo político. O segundo round tem seu foco nas regras do sistema político, em seu sentido mais amplo. Aqui é preciso ter cuidado com soluções sem um diagnóstico acurado ou consenso entre especialistas, políticos e a própria sociedade.
Um exemplo revela como devemos ter cuidado nas conclusões: a fragmentação partidária pode gerar estímulos a negociatas, mas a concentração do poder nos chefes dos principais partidos também tem esse efeito. Basta lembrar que o número de deputados presentes na lista da Odebrecht é proporcionalmente menor do que o de senadores. A razão disso está no fato de que lideranças e/ou dirigentes partidários concentravam os recursos em suas mãos e só depois distribuíam para os parlamentares - talvez esteja aí uma das fontes de seu poderio e da coesão partidária, num ângulo não explorado pela literatura de ciência política. Eduardo Cunha já tinha nos contado essa história que agora ficou mais crível: ele financiou a campanha - com dinheiro alheio - de pelo menos cem deputados. As barganhas fisiológicas mais importantes do baixo clero são intermediadas pelos oligarcas partidários.
Por essa razão, é preciso combater, ao mesmo tempo, tanto a fragmentação multipartidária excessiva como a concentração do poder nas mãos dos líderes e/ou dirigentes partidários. Não é fácil resolver, com uma resposta única e definitiva, essa equação. Um ponto de partida mais parcimonioso passa por aprovar medidas cujo debate esteja mais maduro, como o fim das coligações para eleições proporcionais e alguma cláusula de desempenho. Também podem ser propostas ações para ter maior controle e renovar as direções partidárias, bem como para estimular a vida partidária para além das eleições, em ambos os casos com potencial para motivar mais gente a atuar no jogo político.
A adoção desse rumo, somado às alterações no horário eleitoral gratuito, levaria a reformas mais certeiras - embora mais comedidas - em prol da transformação do sistema político. Propostas maiores de mudança do sistema eleitoral, seja para um modelo distrital ou para a chamada lista fechada, contêm perigos e incertezas demasiados. Para sair dessa enorme crise, não é preciso produzir uma solução tão grande quanto ela. O que é necessário é saber bem o diagnóstico e aonde se quer chegar.
Mudanças no sistema político representativo não serão suficientes para evitar processos generalizados de corrupção. O caso Odebrecht revelou uma forte conexão com o modus operandi da política subnacional. O número de governadores e obras estaduais que foram atingidos pelo esquema é impressionante. É preciso mudar o que intitulei, faz muitos anos, de ultrapresidencialismo estadual, para que o Poder Executivo seja mais "accountable" aos eleitores e as instituições de controle mais efetivas - e o TCE carioca certamente não é o único entre os entes federativos que vendiam proteção aos governantes. O Rio de Janeiro é a experiência em que essa lógica perversa mais teve sucesso. Porém, esse modelo concentrador de poder e pouco transparente é majoritário no país, fato que se torna mais grave pela constatação que os grandes caciques regionais têm no jogo político estadual sua base de poder. Que o digam Renan, Sarney e muitos outros que têm resistido à qualquer tentativa de renovação política nos últimos 20 anos.
Depois de ler e ouvir as delações da Odebrecht, fiquei mais convencido de algo que defendo há anos: a principal reforma institucional do país é a reformulação da administração pública. São suas regras e práticas que impediriam muitas das falcatruas encontradas. Por vezes é o excesso de procedimentos e controles desnecessários que cria um ambiente favorável a máxima "criar dificuldades para vender facilidades". Noutras circunstâncias, é a falta de transparência que permitiu a corrupção, somada à hipocrisia de não regulamentar o lobby. E ainda há o fato de que boa parte do Estado é loteado sem nenhum critério de mérito e "accountability" por parte de quem indica e de quem é indicado. O alto escalão engorda seu tamanho e se transforma numa verdadeira caixa preta, gerando as condições para o patrimonialismo predatório presente no casamento entre o Poder Executivo federal e os empresários.
A tsunami político revela que o leque de transformações necessárias para fortalecer a democracia não é pequeno nem trivial. A questão é saber quem as fará. Para liderar esse processo, não basta se colocar fora da lista da Odebrecht ou de outras que poderão surgir nos próximos meses. É importante, em primeiro lugar, ter consciência clara do diagnóstico dos problemas. Afinal, alguns vão dizer que o tamanho do Estado é a origem da crise, quando a maioria dos cidadãos brasileiros não tem serviços públicos básicos. Precisaríamos de mais professores, médicos, policiais e outros profissionais para reduzir a desigualdade no Brasil. O que não precisamos é do inchaço da máquina pública para defender e financiar os mais ricos, dentro e fora do aparelho estatal.
Dentro desse diagnóstico, é preciso reconhecer que foi o próprio aperfeiçoamento da democracia nos últimos anos que permitiu a descoberta dos escândalos, bem como a possibilidade de algum tipo de punição aos envolvidos. A corrupção também existia no regime militar, que foi o período áureo das empreiteiras e do crescimento de um conjunto de novos ricos que geraram aquela desigualdade representada pela ideia da "Belíndia". O que não havia era o sol democrático que desinfeta os sistemas políticos. Por isso, qualquer solução para a crise passa por rechaçar os líderes autoritários, saudosos de um passado trágico para o país.
Igualmente nefasta é a suposição de que precisamos de líderes e heróis messiânicos que vão tornar desnecessária a política. Como escreveu o sociólogo Max Weber em meio à crise alemã na 1ª Guerra Mundial, "fora da
política não há salvação". Os alemães não ouviram o seu conselho e anos depois produziram o nazismo. O que precisamos no Brasil é gente com vontade de fazer política. Obviamente que a boa política exige um comportamento ético melhor do que o adotado pela maioria dos nossos políticos. Mas isso só não basta.
Bons políticos combinam bem ideias com pragmatismo, reformulando suas propostas à medida que aprendem com as possibilidades da política e com os resultados das políticas públicas. Bons políticos conversam com todos os lados, negociam e encontram saídas que quase sempre precisam levar em conta a heterogeneidade da sociedade. Bons políticos são falíveis como todo ser humano, admitem seus erros e devem ser fiscalizados pela sociedade, não apenas para que não sejam corruptos, mas principalmente para que possam aperfeiçoar suas ações e sejam sensíveis às demandas da sociedade.
Se a saída da crise partir de uma visão idílica, meramente moralista, integrista - "só minhas ideias estão certas" - e personalista dos políticos, poderemos fazer da Lava-Jato a antessala do Berlusconi local. Uma concepção bem embasada e parcimoniosa da reforma das instituições e da renovação dos políticos é um remédio mais seguro diante do presente Tsunami.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e coordenador do curso de administração pública da FGV-SP,
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