Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
No ABC, subúrbio industrial de São Paulo, lugar de brasileiros de todos os cantos, síntese e expressão do Brasil das diferenças, da prosperidade e das desigualdades e injustiças sociais, ninguém se lembrará daquela tarde de 7 de setembro de 1822. De que, pouco mais de meia hora antes do sagrado momento da inesperada proclamação da Independência do Brasil, o príncipe dom Pedro de Alcântara, herdeiro do trono português, por ali passou. Voltava de Santos. Fora visitar a família do culto cientista José Bonifácio de Andrada e Silva, o verdadeiro articulador e patriarca da independência que se avizinhava e começaria a ser proclamada dali a alguns minutos.
Seria ela definida dentro de algumas horas, já à noite, quando um grupo de jovens andradistas, todos com menos de 28 anos de idade, revelaria ao jovem compositor dom Pedro que seu gesto na colina do Ipiranga, naquela tarde, fora de fato o da decisão pela Independência do Brasil e pela fundação de uma pátria e nação. Tudo muito cauteloso e lento. Sempre fomos um país sem pressa, onde quem tem pressa e ânsia de poder e riqueza nunca chega a lugar nenhum. E, se chega, cai do cavalo.
Ali na região do ABC ninguém se lembrará de que, pela estrada das Lágrimas, um antigo caminho do mar, o príncipe atravessou São Bernardo e o bairro dos Meninos. Cruzou a parte sul de São Caetano em direção à colina do Ipiranga naquela derradeira hora de espera e de esperança. Ali, naquele recanto antigo de Piratininga e da Borda do Campo, antigos tropeiros e caipiras da roça testemunhavam, sem o saber, os minutos que antecediam o nascimento da pátria.
Pouco adiante, na favela de Heliópolis, já na entrada de São Paulo, ninguém se lembrará de que, ali ao lado, em frente a um ponto de ônibus e vizinha, hoje, à casa número 515, o príncipe passou sob a galhada da bicentenária e cansada figueira, que ficou conhecida como Árvore das Lágrimas, a poucos minutos do nosso momento decisivo. Árvore que já foi musa dos poetas da Academia de Direito e perece agora no esquecimento injusto dos paulistanos. Campos de futebol de várzea, ao redor, distraem nesse dia a consciência de seus vizinhos.
Ao longo dos remanescentes desse trajeto, ninguém se lembrará da mulinha que o príncipe montava. No solene quadro que celebra a Independência do Brasil, hoje no salão nobre do Museu do Ipiranga, Pedro Américo a substituiu por garboso cavalo de epopeia. A mulinha marchadeira foi apagada da memória do mais importante evento da história brasileira. Não era digna de ser lembrada numa época em que a memória das coisas históricas era uma memória napoleônica. Mulas não carregam príncipes nem fazem história.
O povo, também anônimo como aquela mula, está ausente daquele quadro pintado em Paris. Povo que, na lenta marcha dos passantes era, naquela hora derradeira, gente da Borda do Campo, da borda de tudo, escravos de origem africana, pardos administrados originários da escravidão indígena, que falavam dialeto caipira, o português com sotaque nheengatu, a língua do povo. De várias dessas pessoas se tem o nome, o das que moravam à beira do caminho, algumas das quais viram a passagem da comitiva pelo bairro dos Meninos Novos, em São Bernardo, e pelo bairro dos Meninos Velhos, em São Caetano. História que só se vê no microscópio da consciência crítica. Não a dos recortes e omissões, de quem vê os de cima e não enxerga os de baixo, os ínfimos.
Ninguém se lembrará do padre Ildefonso Xavier Ferreira, que, naquela noite, na modesta Casa da Ópera, no Pátio do Colégio, em São Paulo, incumbido pelo grupo da conspiração, aproximou-se da tribuna em que estava o príncipe e proclamou: "Viva o rei do Brasil: Independência ou morte!". Na crônica oficial, a proclamação do padre foi parar na boca do futuro imperador. Ninguém acenderá uma vela de gratidão ao pé do túmulo do padre Ildefonso, na via de entrada do cemitério da Consolação, em São Paulo.
O que é contado às crianças e aos adolescentes, do Brasil inteiro, e, também, aos da favela de Heliópolis e do Ipiranga, os que vivem à beira do que ainda é e do que, já não sendo, foi a estrada das Lágrimas, no dia 7 de setembro do sem graça ano da graça de 2018? Os que vivem não só à beira da estrada, mas também à beira da vida, à beira da história, à beira da verdade?
Quem dirá às novas gerações que nossa memória é a memória do silêncio e da perplexidade dos simples, o que não se esquece nos detalhes daquilo que foi porque de vários modos continua sendo, o nós que somos e gostamos de sentir no peito? Quem se lembrará de que a memória sem autenticidade é fabricação, montagem, conveniência e poder? Quem? Quem nos ensinará que, se esquecêssemos menos, seríamos mais?
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José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “A Sociologia como Aventura” (Contexto).
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