Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Desde a volta da democracia, nunca um evento será tão importante quanto a eleição de 2018. Claro que foi traumática a posse de Sarney, após a fatídica morte de Tancredo Neves. Mas não havia como retornar à ditadura, tão desprestigiados que estavam os militares na época. As crises econômicas de 1999 e 2008 foram graves, mas o poder político soube resolvê-las bem. Dois impeachments são episódios mais dramáticos. No primeiro, houve uma reconstrução do sistema político, que se tornou estável e bem-sucedido por 20 anos. A situação atual, para além do impedimento da presidente Dilma, representa o colapso de várias dimensões da vida brasileira. Por isso, o próximo presidente terá uma tarefa hercúlea pela frente.
Vive-se hoje uma soma de múltiplas crises, que gera uma combinação explosiva para o país. Tentar entender cada uma dessas dimensões é uma forma tanto de mostrar o tamanho gigantesco de nosso buraco, como também de compreender quais serão os desafios que terão de ser enfrentados pelo novo presidente.
Começo pela crise econômica, cujo termômetro mais visível está na estagnação econômica e no desemprego de quase 13 milhões de brasileiros. Qualquer mudança nessa seara será gradual. Será preciso reconstruir o Estado, seja no que se refere ao ajuste fiscal, seja no que tange à eficiência (fazer mais com menos) e efetividade (impacto) de sua intervenção. Em outras palavras, o governo terá que reduzir seu déficit e melhorar seu desempenho.
Sem mudar, com alguma rapidez, o cenário fiscal, demonstrando que o governo federal caminhará nos próximos anos para ter maior solvência, será difícil reativar a economia. Claro que é possível ter diferentes tipos de ajuste, mas o número de possibilidades é menor do que gostariam os candidatos. Será uma combinação de cortes de despesas com aumento de receita, mas as opções factíveis de cada lado são diminutas. Algum tipo de reforma previdenciária e venda de ativos estarão na pauta do presidente eleito, quem quer que seja ele. Aumento de tributação de lucros e dividendos e majoração de imposto das pessoas mais ricas (IR e sobre heranças, por exemplo), além da criação de um novo IVA, na linha proposta por Bernard Appy, são caminhos interessantes.
Sabe-se razoavelmente o que fazer, mas as condições políticas terão de ser construídas por um presidente legitimado pelo voto e que terá de ser, sobretudo, hábil nas negociações. Não se pense que a agenda de reformas econômicas será realizada porque o candidato a promete. Isso é conversa de quem não entende de política. A capacidade negociadora, do governante e dos líderes de sua coalizão, deveria ser uma das principais variáveis definidoras do voto, principalmente nesse momento em que a crise exige rapidez na mudança.
Uma transformação econômica mais profunda dependerá de algo além do ajuste fiscal. A infraestrutura, por exemplo, está muito sucateada, e sem um grande investimento nessa área o crescimento será limitado nos próximos anos. Vale destacar ainda que a produtividade está estagnada e, não conseguindo alterá-la, não teremos como competir com os países que têm se desenvolvido mais nos últimos anos. Aqui, a variável capaz de mudar mais estruturalmente a situação é a educação. A divulgação recente dos resultados do Ideb, particularmente em relação ao fraco desempenho no ensino médio, mostra que o próximo presidente terá de liderar uma revolução educacional. Aí está mais um elemento decisivo para definir o voto: saber se o candidato tem uma proposta sólida para mudar sistema educacional, baseada no conhecimento das melhores experiências internacionais e nacionais.
A educação faz a ponte com outra dimensão da crise: pior do que o colapso econômico é a enorme deterioração social do país. Claro que há impacto do desemprego e da estagnação neste cenário, porém, a maior parte do problema está em lacunas, fragilidades e falta de recursos (não só financeiros, mas também de capital humano) nas políticas sociais, nos campos educacional, de saúde, de combate à violência e de ataque às desigualdades e à pobreza. Sem melhorar a ação em tais setores, o próximo presidente perderá rapidamente a legitimidade, mesmo que consiga fazer as reformas econômicas.
É interessante que a opinião pública sempre pede um "dream team" para a área econômica e não faz o mesmo para os ministérios da área social. Aliás, foi essa estratégia que orientou o governo Temer, cuja popularidade está hoje quase embaixo da terra. A precarização crescente da vida social no país obriga o próximo presidente a escolher os melhores quadros, políticos e técnicos, para a saúde, educação, desenvolvimento social, segurança pública e políticas urbanas.
A dimensão mais ampla e relevante do colapso atual está na política. Sem resolvê-la, será muito difícil mudar todo o resto. A perda do eixo político começou em 2013 e se aprofundou cada vez mais de lá para cá. Os principais partidos perderam força, os políticos reduziram ao nível do chão (talvez do subsolo) sua credibilidade e a polarização ideológica inviabilizou o diálogo social, redundando em atos de violência, como os perpetuados contra a caravana de apoio ao presidente Lula, no assassinato de Marielle Franco (até hoje não elucidado) e no estúpido atentado contra Jair Bolsonaro. Mudar este clima e pacificar o país será condição sine qua non para conseguir governar minimamente o país. Quem ganhar terá de conversar com os principais perdedores e os grupos que eles representam, de modo que ao menos se evite que o ódio continue orientando boa parte da sociedade brasileira.
A reconstrução política passará por criar um novo eixo partidário de apoio ao eleito, bem como haverá uma reorganização da oposição. Não estamos mais no regime autoritário em que havia o partido do sim e o do sim, senhor. Será preciso montar uma base partidária orgânica, capaz de negociar e produzir consensos em relação aos projetos governamentais. A despeito de se vender a ideia que o governante pode falar e convencer os congressistas individualmente, é muito melhor, para o presidente e para a democracia, que a relação entre Executivo e o Legislativo seja feita com os partidos. Todos os países com sólida democracia fazem isso, sem que o resultado seja necessariamente apoiar negociatas que levem à corrupção.
A costura político-institucional passará, ainda, pela federação. Muitos governos estaduais (bem como os municipais) estão quebrados, e neles tomarão posse em janeiro de 2019 governadores eleitos por diversos partidos. O presidente precisará dialogar com eles, buscar apoio e levar também ajuda. Cabe lembrar que a cada crise num Estado, como mostram os exemplos recentes do Rio de Janeiro e em Roraima, o governo federal se enfraquece junto à população. Os principais serviços públicos são ofertados pelos governos subnacionais, de maneira que eles são o principal veículo de combate à crise social. Se esse processo de implementação descentralizada fracassa, o efeito é negativo para os governantes dos três níveis.
Há também um descompasso entre as instituições de Justiça e o sistema político. Propor um reequilíbrio não é uma forma de "parar a Lava-Jato", como gostam de dizer alguns. Efetivamente, o Supremo Tribunal Federal ultrapassou, em alguma medida, suas atribuições e logo será cobrado pelos problemas do país e pelo fracasso das políticas públicas. Haverá igualmente um limite para o Ministério Público, porque ao aumento do sentimento antipolítico poderá corresponder a eleição de um alguém que reduzirá dramaticamente o controle institucional para "responder mais rápido ao povo". Foi o que Erdogran fez na Turquia. Para evitar esse caminho, será preciso que as principais lideranças políticas e o alto escalão do Judiciário conversem para delimitar o que cabe a cada um.
E aqui nos encontramos com o impacto mais negativo que o colapso atual pode produzir: enfraquecer sensivelmente a democracia, ou mesmo levá-la ao ocaso. Quando o candidato a vice-presidente de Jair Bolsonaro diz, em entrevista à Globonews, que é possível um autogolpe executado pelas Forças Armadas, essa visão é mais nefasta do que uma má política econômica, porque a instauração do autoritarismo afeta todas as dimensões da vida humana, inclusive, mais dia ou menos dia, a economia, como o caso venezuelano expressa fielmente. E quando vários candidatos quase ignoram que precisarão do Congresso Nacional para governar, fica a pergunta: com quem e de que modo exercerão a democracia?
Pela primeira vez desde que Sarney conseguiu tomar posse, a democracia corre risco real no país. Para sairmos das crises econômica e social, precisaremos da boa política, baseada na negociação democrática. Para sairmos da polarização tresloucada, que só tem produzido ódio e violência, os principais líderes e partidos políticos terão de conversar, aceitar o outro lado e até mesmo buscar formas de compatibilização de ideias. Para sairmos do buraco e protegermos a democracia, teremos de lembrar da frase célebre de Max Weber, quando a Alemanha estava tão perdida como estamos atualmente: "fora da política não há salvação".
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Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP
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