- Folha de S. Paulo / Ilustríssima
É difícil definir tanto o começo quanto o fim de uma democracia
Nos anos 1980, havia um aceso debate entre cientistas sociais brasileiros sobre o marco inaugural da democracia. Agora, conversa-se sobre seu encerramento.
Então se discutia se a vitória eleitoral do MDB para os governos estaduais, a campanha das Diretas, a eleição de Tancredo Neves ou a posse de José Sarney seriam o ponto inicial da redemocratização.
Dúvidas sobre o pendor democrático de bom punhado de políticos alimentaram longas querelas sobre a “transição democrática”, metamorfoseadas em outras acerca da “consolidação da democracia”.
Vieram, em seguida, pendengas quanto ao ritmo da redemocratização e a desconfiança de que seríamos sempre democracia incompleta. Por fim, nos acostumamos a uma democracia como a de todo mundo, imperfeita. Passamos a tratar de qualidade e adjetivos, se participativa, se socialmente justa, se plena.
Seja como for, a democracia brasileira tirou nota 5 ou mais em provas cabeludas.
Sobreviveu a solavancos econômicos bravos sob Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso. Resistiu a crises políticas medonhas, quando não se sabia se vice podia assumir lugar de presidente morto antes da posse, se confiscar a poupança era retroagir ao autoritarismo, se a vitória da esquerda derrubaria os mercados, se a Comissão da Verdade tiraria militares dos quartéis.
Isso sem contar a gangorra do mensalão à Lava Jato, uma Constituinte e dois impeachments. A democracia saiu mais forte desta maratona, dirão uns. Ou será que não?
Tão difícil como definir a inauguração de uma democracia é identificar o ponto sem volta de sua desagregação. A nossa ficou combalida desde os protestos de junho de 2013 ou desde a contestação dos resultados eleitorais pelo perdedor em 2014? O passo em falso foi a prisão de Lula, o afastamento de Dilma, a eleição de Bolsonaro ou a montagem de seu governo?
Há tempos afundamos no que o sociólogo francês Michel Dobry chamou de “conjuntura política fluida”: alinhamentos políticos costumeiros desabaram, Poderes trombaram entre si, leis claudicaram. A imprevisibilidade política se espalhou, não se sabe que rumo tomará o Parlamento, que dirá o Executivo.
Os atores políticos oscilam entre atônitos e erráticos, as regras se esgarçaram e a confiança em acordos se esvaiu.
Desde que Jair Bolsonaro assumiu a Presidência, o que parecia a salvo de intempéries na democracia brasileira entrou em zona de tiro: dos direitos individuais à vigência das leis.
O fato de o presidente ser partidário apaixonado do regime militar e do coronel Ustra, o rei dos torturadores, é, por si, uma evidência. As tentativas de controle de pensamento, ensino e pesquisa, outra. A incerteza subiu ao nível da estratosfera —para os que ainda consideram a Terra redonda e dotada de uma.
Daqui em diante, o raciocínio pode bifurcar. Uma interpretação é que as instituições se sobreporão a seus ocupantes e sobreviverão a eles. Uma democracia é justamente o regime político no qual as regras se impõem às vontades, capazes de conter mesmo líderes autoritários. Aliás, é seu grande teste.
Assim, embora a palavra presidencial ultrapasse o limite legal, o governo viva de amadorismo e namore o autoritarismo, exorbite competências ou deixe de exercê-las, a democracia seguiria de pé.
Se for assim, a eternidade de 3 anos e 8 meses que nos separam de um novo mandatário será sombria, mas sem reduzir a pó o muito que se edificou em favor da cidadania.
Leitura mais pessimista é que as instituições não andam na plena forma necessária para o serviço de contrabalançar rompantes presidenciais. Ao longo da crise que nunca acaba, os partidos que governaram o país nas últimas duas décadas foram às cordas, cada qual por seus motivos.
O PSDB virtualmente acabou, o PT não renovou suas lideranças. O Supremo Tribunal Federal, antes prestigiado como poder moderador da República, imergiu em debates menores, vaidades individuais, decisões fortuitas e suspeições. Faz crescer a incerteza, em vez de controlá-la.
Diante da desfaçatez do governo, que acena para a guerra externa, ameaçando avançar sobre a Venezuela, e atiça os brios de quem se anime à interna, incentivando o armamento da população, cabe perguntar se há alguém para pôr o guizo no gato.
Que a Nova República acabou é um fato. A questão é que democracia ainda temos e se a teremos por muito tempo. Não se sabe bem quando e como regimes democráticos terminam. Mas bem é que não é.
*Angela Alonso, professora de sociologia da USP, preside o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. É autora de “Flores, Votos e Balas”.
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