domingo, 5 de maio de 2019

Míriam Leitão: O passado não tem futuro

- O Globo

Há quem defina o governo como a aliança de liberais e conservadores. Liberais têm amargado derrotas e certas teses não são apenas conservadoras

Economistas do governo têm dito que chegou agora ao poder no Brasil uma aliança entre liberais na economia e conservadores nos costumes. É uma narrativa, mas não define esta administração. Liberais têm amargado derrotas. Certas decisões e declarações são contrárias ao progresso e à tendência dos tempos atuais. Quando o governo nega a mudança climática, dá o sinal verde para o desmatamento, demonstra preconceito contra a diversidade étnica e de gênero, anuncia que combaterá o feminismo, não está sendo conservador, está sendo reacionário.

A palavra é vista como ofensa política, mas tem definição precisa. O escritor Mark Lilla, professor de Columbia, no seu livro “A mente naufragada”, explica essa corrente do pensamento. “Os reacionários não são conservadores. Onde os outros veem o rio do tempo fluindo como sempre fluiu, o reacionário enxerga os destroços do paraíso. Ele é um exilado do tempo.”

Quando o presidente Bolsonaro manda tirar do ar uma propaganda, porque ela exibe a natural diversidade dos jovens, ele confessa a natureza da sua reação. Não é liberal um governo em que o chefe de Estado interfere em banco público e determina como deve ser a política de marketing. O Banco do Brasil não é estatal, tem sócios privados. A ordem custou os R$ 17 milhões da campanha fora as perdas intangíveis na imagem da instituição. É um sinal de que os economistas liberais terão que engolir que suas teses sejam ofendidas, no cotidiano da prática administrativa. A agenda liberal andou pouquíssimo, mas o governo já criou barreiras ao comércio de leite em pó, o presidente prometeu mais subsídios ao agronegócio e quis decidir o preço do diesel. Bolsonaro ainda não entendeu o que é ser um liberal na economia.

A política ambiental informa qual é a essência do governo. Defender a biodiversidade, proteger o patrimônio natural, ouvir os alertas da ciência, combater as causas das mudanças climáticas são imperativos do tempo atual. Isso não é de esquerda nem de direita. Está baseado em fatos e dados. Há ambientalistas e climatologistas de tendências políticas diversas e com propostas diferentes. O que os une é a compreensão de que o conceito de progresso evoluiu. O parlamento inglês, de maioria conservadora, rendeu-se à pressão da sociedade e aprovou uma proposta trabalhista. Decretou emergência climática no país, o que vai estimular o esforço para zerar as emissões dos gases do efeito estufa.

Joaquim Nabuco era monarquista até na República, Rui Barbosa era republicano desde o Império. Qual dos dois era reacionário? Nenhum deles. Membros do Partido Liberal, eram ambos ferrenhos abolicionistas. Estavam envolvidos na luta pela mudança mais importante daquele tempo. Na época, os clubes da lavoura defendiam a ordem escravocrata como sendo o sustentáculo da economia. O escritor José de Alencar, do Partido Conservador, lutava pela manutenção da escravidão, que chamava de “a instituição” nas cartas públicas a Dom Pedro II. José de Alencar, nesse ponto, foi um reacionário.

Hoje há integrantes do ruralismo convencidos de que é preciso respeitar a reserva legal, fazer o rastreamento do seu produto, combater o desmatamento ilegal. Sabem que isso abrirá portas e portos ao agronegócio brasileiro. Por ano, o Brasil derruba florestas na Amazônia, numa dimensão equivalente, em quilômetros quadrados, a cinco vezes o município de São Paulo. Uma grande parte dessa destruição é feita pela grilagem, a ocupação criminosa de terras públicas. Quem acha que essa selvageria deve ser estimulada repete nos dias de hoje a opção dos clubes da lavoura. Não é conservador, é reacionário.

Na sociedade, os tempos mudam sempre. As mulheres vêm seguindo uma trajetória de mais autonomia na vida pessoal e mais poder na esfera pública e profissional. A defesa da submissão da mulher não cabe nesse mundo. A diversidade étnica, cultural e de gênero é parte das mudanças sociais. Os que lutam contra elas querem um mundo que não existe. Como diz Mark Lilla. “Os reacionários da nossa época descobriram que a nostalgia pode ser uma forte motivação política.” Esse olhar para trás pode ter vitória, mas será sempre temporária. O passado não tem futuro.

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