domingo, 5 de maio de 2019

Bernardo Mello Franco: Os rejeitados no poder

- O Globo

Na campanha, Bolsonaro se vendeu como um “patinho feio”. No poder, transformou a vingança em política de Estado

Devoto da seita olavista, o chanceler Ernesto Araújo prometeu pautar a política externa pela “fé cristã”. Na sexta-feira, ele revelou uma leitura peculiar do Evangelho. Em discurso para novos diplomatas, o ministro comparou Jair Bolsonaro a Jesus Cristo. Citando o Novo Testamento, descreveu o presidente como um rejeitado que virou “pedra angular” do “novo Brasil”.

“A pedra que os órgãos de imprensa rejeitaram, que a mídia rejeitou, a pedra que os intelectuais rejeitaram, a pedra que tantos artistas rejeitaram, a pedra que tantos autoproclamados especialistas rejeitaram, essa pedra tornou-se a pedra angular do edifício, o edifício do novo Brasil”, exaltou.

O tema da rejeição não aparece só nas palavras do chanceler. Ao se lançar candidato, Bolsonaro disse ser um “patinho feio” na política. “Não sou um patinho feio. Sou um patinho horroroso”, corrigiu-se, quando já liderava as pesquisas. Em outra ocasião, ele se apresentou como um “ilustre desconhecido do baixo clero”.

A descrição era correta, mas também continha um cálculo eleitoral. Ao se vender como um outsider indesejado, o presidenciável buscava a simpatia do eleitor que se sente rejeitado pelo sistema. Bolsonaro apostou no ressentimento, uma receita que tem ajudado a eleger populistas de direita em todo o mundo.

No poder, o sentimento de rejeição costuma produzir ações de vingança. É o que se vê no governo atual, que transformou a revanche em política de Estado. Intelectuais, artistas e professores estão na mira do bolsonarismo. Viraram alvo de ameaças, perseguições e cortes de verba.

A Cultura já havia perdido o ministério. Agora ficou sem sua principal fonte de receita. A amputação da Lei Rouanet, demonizada pelo Planalto, põe em risco a sobrevivência de grupos teatrais e instituições de arte. O governo não disfarça o objetivo. Quer retaliar a classe artística, majoritariamente contrária aos valores do presidente.

No Itamaraty, Araújo instalou um clima de caça às bruxas. Demitiu um embaixador que criticou o seu guru e despachou desafetos para países distantes. Três ex-chanceleres foram deslocados para postos de segunda classe. O recado foi claro: quem não rezar pela cartilha bolsonarista vai para a geladeira.

Na Educação, a arma de revanche é a asfixia financeira. O ministro Abraham Weintraub, que se dizia perseguido por “comunistas” na Unifesp, resolveu descontar em todo o ensino superior. Anunciou um corte de 30% nas universidades que, segundo ele, promoveriam “balbúrdia” e “eventos ridículos”. Alertado para o risco de processo, ele estendeu a tesoura a todas as federais.

No governo dos rejeitados, o mau exemplo vem de cima. Desde a posse, Bolsonaro estimula a guerra ideológica contra inimigos reais e imaginários. Já censurou propaganda de banco, atacou a imprensa e incitou sua milícia virtual contra adversários.

A valentia só não é a mesma quando a ameaça vem de fora. Na sexta, ele cancelou uma viagem a Nova York para fugir de protestos. O jantar marcado para homenageá-lo já havia mudado de lugar duas vezes, e ao menos três empresas desistiram de patrocinar os comes e bebes.

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