A ressaca latino-americana – Editorial | O Estado de S. Paulo
Um espírito reformista é o único meio para a América Latina emergir em paz da ressaca em que se afundou
A América Latina sofre uma inquietação social generalizada. Na raiz dos protestos violentos no Peru, Chile, Bolívia e Equador estão disfunções políticas e transtornos econômicos mais ou menos comuns aos seus vizinhos, que podem deflagrar novos conflitos civis. Dois estudos diagnosticam e prognosticam este mal-estar.
O relatório da divisão de análise e investigação do Grupo Economist (Intelligence Unit– EIU) traz um enredo conhecido. O superciclo das commodities, iniciado em 2004 e turbinado pela ascensão da China, trouxe uma era de abundância, marcada pelo declínio da pobreza, melhoras nos indicadores de saúde e expansão da classe média. O processo foi anabolizado pela distribuição de créditos e subsídios pelos governos de esquerda (a “onda rosa”), que, no entanto, investiram mal em instrumentos elementares para um crescimento sustentável de longo prazo, como educação, infraestrutura e diversificação econômica.
Com o fim do boom das commodities em 2014, a economia se desacelerou a tal ponto que, segundo balanço da Comissão Econômica para a América Latina da ONU (Cepal), entre 2014 e 2020 o PIB per capita da região terá encolhido 3,7%, com queda anual média de 0,5%. Será o setênio de menor crescimento em 70 anos, e isso num contexto global de baixo dinamismo e crescente vulnerabilidade. Segundo pesquisa da ONG chilena Latinobarómetro a percepção dos latino-americanos sobre seu futuro econômico está no ponto mais baixo em 23 anos.
A queda no consumo per capita e a deterioração do emprego, associadas às medidas de austeridade fiscal, levaram a uma mistura tóxica de frustrações públicas que rebentaram em 2019 nas ruas de países como Chile e Equador. Concomitantemente, a corrupção, somada a legislações fragmentárias e intrincadas, gerou um desapontamento crescente com o sistema político, considerado hoje parte do problema e não da solução. Num círculo vicioso, a deterioração das instituições democráticas é causa e consequência dos protestos contra a classe política, que no Brasil eclodiram já em 2013, e em 2019 inflamaram a Bolívia e o Peru. A resposta ao populismo e ao autoritarismo que levaram a este mal-estar tem sido com frequência mais autoritarismo e mais populismo com o sinal ideológico trocado.
Segundo a Cepal, a região não está totalmente desprovida para reverter a estagnação econômica: os níveis de inflação estão baixos e as reservas internacionais relativamente altas; as economias seguem tendo acesso aos mercados financeiros e as taxas de juros internacionais estão baixas. São condições que permitem implementar políticas fiscais que reativem a economia, reduzam as desigualdades estruturais e assegurem uma trajetória sustentável da dívida pública, combinadas a políticas monetárias que se encarreguem da volatilidade cambial e do manejo dos riscos financeiros.
Esse saneamento terá de ser feito num ambiente de alta instabilidade social, cujos principais ingredientes, segundo o prognóstico da EIU, são a desigualdade de renda; a inadequação da seguridade social; a ineficácia dos governos; a corrupção; o desemprego entre os jovens; a erosão do poder de compra; e o retrocesso democrático. Quase todos os países apresentam “risco altíssimo” de convulsões relacionado a pelo menos uma dessas categorias. No caso do Brasil são três: desigualdade, desemprego juvenil e precarização da economia familiar. No cômputo geral, Venezuela e Nicarágua são apontados como os países mais vulneráveis, seguidos por Guatemala, Brasil, Honduras, Chile, México e Paraguai.
“Para 2020 prevê-se um caminho de baixo crescimento”, conclui a Cepal, enquanto para a EIU “há uma grande chance de que seja mais um ano volátil para América Latina”. Ceder às tentações antagônicas de uma ruptura revolucionária ou de uma contração reacionária só desencadearia mais divisão social. Um espírito reformista, informado por um olhar realista e animado por um coração idealista, é o único meio para a América Latina emergir em paz da ressaca em que se afundou.
Caminho seguro – Editorial | Folha de S. Paulo
No combate à violência, não há oposição entre gasto social e reforço policial
Causa consternação descobrir, em pesquisa Datafolha, que quase três quartos (72%) dos brasileiros aptos a votar têm medo de sair às ruas depois do anoitecer. Entre as mulheres, sentem-se ameaçadas 79% das ouvidas.
No primeiro semestre de 2019, houve 22% menos vítimas de homicídios do que no período correspondente de 2018. Não deixa de ser preocupante constatar índices tão elevados de percepção de insegurança mesmo quando as estatísticas apontam uma redução sustentada da criminalidade, o que acontece desde o final de 2017.
Assim como a evolução do número de delitos, a sensação de insegurança se condiciona por um grande número de fatores, como tantos fenômenos sociais que não se deixam reduzir a causas únicas. A própria população parece intuir que a criminalidade não aumenta nem diminui em consequência de uma só medida governamental.
O maniqueísmo imperante no debate nacional, no que respeita à segurança pública, costuma opor investimento social, numa antípoda, ao fortalecimento do aparelho de segurança, na outra. Em especial com a eleição do presidente Jair Bolsonaro, ganhou tração na sociedade a ideia de que só a repressão policial pode conter a violência.
O Datafolha mostra que essa visão fica distante de ser majoritária. É verdade que 41% opinam ser mais eficaz destinar recursos ao setor de segurança, como prover mais treinamento e melhores equipamentos aos policiais.
Contingente considerável, mas significativamente inferior aos 57% que priorizam os investimentos sociais para diminuir o desemprego ou melhorar a educação.
Outra maneira de interpretar a pesquisa apontaria que a própria divisão entre entrevistados, não muito desequilibrada, reflete o caráter multifatorial da criminalidade. Parece quase impossível alcançar um consenso quando se trata de assinalar sua causa principal e, por consequência, eleger a política certeira que pudesse dar cabo dela.
A razão é simples: não existe bala de prata, nessa matéria como em tantas outras. Aliás, uma das dificuldades para enfrentar a questão de modo eficiente está na própria disjuntiva —ou investimento social, ou investimento na repressão.
O governante dotado de bom senso sabe que não pode prescindir da seguridade e do ensino público de qualidade, o que independe de consequências futuras na redução da violência urbana.
No curto e no médio prazo, os delitos não diminuirão sem um trabalho de investigação e inteligência policial, acompanhado do patrulhamento ostensivo com objetivo de dissuadir e não de aterrorizar.
Prevalece otimismo para 2020, apesar da economia – Editorial | Valor Econômico
A melhora de alguns indicadores econômicos nos últimos meses de 2019 animou as previsões para 2020. A estimativa para o Produto Interno Bruto (PIB) do próximo ano passou de menos de 2% para até 2,5% e já se fala em 3%. O Banco Central (BC), que projetava no Relatório Trimestral de Inflação de setembro que o PIB crescerá 1,8%, elevou o percentual para 2,2%. Se isso se confirmar, a economia vai ter o melhor desempenho desde 2013, quando cresceu 3%, antes de mergulhar na crise que se prolongou de 2014 a 2016, seguida por três anos de crescimento de pouco mais de 1%.
Mas o que pode dar errado nessas previsões otimistas? Um dos índices que alimentou essas projeções foi a reação do mercado de trabalho, evidenciada na redução da taxa de desocupação para 11,2% no trimestre terminando em novembro em comparação com 11,6% no trimestre anterior, segundo o IBGE. Embora ainda existam 11,86 milhões de desempregados e os informais somem 38,8 milhões, a queda superou as expectativas.
Com as contratações do comércio, a expansão dos contratos intermitentes e da ocupação informal, o desemprego diminuiu. A melhoria pode ter sido em parte apenas sazonal e acaba revertida quando os trabalhadores temporários do varejo são demitidos.
Não deixou de surpreender a previsão feita pelo próprio secretário especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia, Rogério Marinho, que disse ao Valor (26/12) que a taxa de desemprego só cairá para um dígito no fim do mandato de Jair Bolsonaro, em 2022, e ainda assim estará no patamar elevado de 9,5%, mais alto do que em 2015. A deterioração foi rápida, mas a recuperação demora a chegar, dada a mudança de perfil do emprego provocada pela tecnologia e as novas relações de trabalho.
A expansão prevista para o crédito é um ponto positivo na recuperação. O estoque de operações de crédito chegou a R$ 3,4 trilhões em novembro, alta de 6,3% em 12 meses. A previsão do BC, expressa no Relatório Trimestral de Inflação, é que vai crescer mais em dezembro, acumulando 6,9% no ano, acima dos 5% de 2018. Para 2020, o BC estima aumento de mais 8,1%, puxado pelo crédito livre, que deve aumentar 13,9%, embora as operações direcionadas mostrem pela primeira vez uma reação, com aumento de 1,6%.
Mas há o grande desafio de levar adiante as reformas econômicas no Congresso, especialmente por conta das eleições municipais. Depois das mudanças na aposentadoria, outras medidas ficaram empacadas.
A reforma tributária, por exemplo, nem chegou a ser encaminhada e as idas e vindas do governo em torno da tributação das operações financeiras e os interesses conflitantes causam apreensão. A reforma administrativa também está pendente. O ambicioso programa de privatização limitou-se em 2019 a 67 empresas, 10% do total de 627 estatais das quais o governo federal participa. A promessa para 2020 é privatizar 300 empresas.
Está claro que o ajuste fiscal precisa continuar, principalmente em um cenário de pressão pelo lado de Estados e municípios. A lista é ampla e inclui a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) emergencial de controle das despesas, a da descentralização de recursos e a autonomia do Banco Central entre outras. O ex-presidente do Banco Central, Gustavo Franco, escreveu recentemente que o déficit fiscal ao redor de R$ 70 bilhões, em 2019, mesmo inferior aos R$ 132 bilhões previstos, pode não ser suficiente para sustentar o juro nos 4,5% atuais (Estadão 29/12).
E há o cenário internacional instável. 2019 terminou com a perspectiva de acerto entre Estados Unidos e China. A tensão comercial internacional influenciou a revisão do saldo da balança comercial, ao lado da desaceleração da economia argentina, da peste suína que afeta o mercado chinês e da oscilação do câmbio. A demanda de Pequim por proteína animal favorece as exportações brasileiras, mas pode pressionar a inflação ao elevar os preços domésticos. O superávit esperado para a balança comercial foi reduzido de US$ 43 bilhões previstos em setembro para US$ 39 bilhões. Em 2020, o saldo deve encolher mais, para US$ 32 bilhões. Em consequência, o déficit em conta corrente esperado aumentou de US$ 36,3 bilhões para US$ 51,1 bilhões nas projeções para 2019, devendo chegar a US$ 57,7 bilhões ao final de 2020. O número equivalente a 3,1% do PIB surpreendeu, mas ainda não preocupa dado que se conta com US$ 80 bilhões em investimentos diretos no país (IDP) nos dois anos. Com tantos pontos duvidosos em jogo não dá para endossar cegamente as expectativas otimistas para o Ano Novo.
Educação tem de ser protegida da ‘guerra cultural’ – Editorial | O Globo
É no mínimo falta de inteligência e de civismo envolver a área em batalhas vazias de cunho ideológico
O enfrentamento ideológico que o bolsonarismo move contra adversários políticos convertidos em inimigos, como faz todo movimento radical e autoritário, infelizmente atinge a área da educação, vital para o futuro da sociedade. E pior, quando o Brasil patina na instrução de uma população jovem ainda numerosa. Por fatalidade demográfica, sua representatividade no conjunto dos brasileiros tende a diminuir, enquanto aumenta a dos idosos. Fenômeno universal, esta tendência ao envelhecimento da maioria tem várias implicações. Na educação, significa que começa a se esgotar o tempo a fim de que o país instrua da melhor forma possível seus jovens, para que, ao entrarem no mercado de trabalho, aumentem a produtividade da economia. É a fórmula do desenvolvimento.
O Brasil corre risco de não aproveitar esta oportunidade única. A janela demográfica começa a se fechar. Enquanto isso, a qualidade do ensino básico não avança. O último Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) manteve o Brasil na parte de baixo do ranking em Leitura, Matemática e Ciências. O exame, aplicado periodicamente pela Organização para o Desenvolvimento e Cooperação Econômica (OCDE), em que se congregam países ricos, e da qual o Brasil deseja ser membro pleno, testa estudantes na faixa dos 15 anos de idade.
A virtual estagnação dos brasileiros no Pisa é péssimo sinal. Mas o país não está na estaca zero. Desde a gestão de Fernando Henrique Cardoso, passando pelas de Lula e Dilma, cujo mandato foi completado pelo vice Michel Temer, até janeiro de 2019, foram 24 anos de razoável continuidade.
A educação conseguiu unir forças políticas e partidos diversos em torno de uma pauta comum. Neste período de quase duas décadas e meia foi alcançada a universalização na matrícula, criaram-se sistemas de acompanhamento da evolução da qualidade do ensino e lançaram-se os fundos (Fundef e Fundeb) que melhoraram a distribuição dos recursos em estados e municípios. Primeiro, no ensino fundamental, e depois, no básico como um todo.
O êxito da democratização da matrícula no ciclo fundamental trouxe uma queda no aprendizado, porque milhões de crianças das faixas mais pobres chegaram à escola. Um progresso que pressiona as estruturas de ensino para que não deixem esses jovens para trás. Esta barreira ainda está para ser vencida. Continua difícil, mas é preciso persistir.
Há várias experiências bem-sucedidas no país, também apoiadas por organizações da sociedade. Não existe fórmula secreta para a boa educação. Ela é conhecida. A dificuldade está em replicá-la na velocidade e extensão necessárias, em um país continental, com desníveis variados.
O Brasil está neste estágio, quando é deflagrada a “guerra cultural”. Ela atrapalha o difícil enfrentamento do problema da qualidade do ensino brasileiro, que vem acontecendo por meio de uma frente política mais ampla do que a visão estreita que reduz a realidade ao conflito entre “direita” e “esquerda”.
Não deve importar a tendência política do educador, mas como ele pode contribuir para ajudar o Brasil a sair deste estágio de virtual estagnação na melhoria do padrão de ensino. Não se trata de falta de um projeto. Sabe-se a direção a seguir. Até porque parte do caminho já foi percorrida. Mas é insuficiente. Há o currículo único e a reforma do ensino médio, por exemplo, a serem implementados. Converter a educação em campo de batalha entre extremistas é no mínimo falta de inteligência e de civismo.
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