- Folha de S. Paulo
É hora de usar as leis da democracia para impedir que a serpente do terrorismo saia à luz
Na madrugada da véspera do Natal, coquetéis molotov atingiram o prédio onde funciona a produtora do grupo humorístico Porta dos Fundos, no Rio.
Logo depois, em um vídeo que circulou nas redes sociais, um grupo que se dizia pertencer à “família integralista” reivindicou a autoria do atentado. O vídeo era caseiro: a encenação —tendo como fundo o estandarte da organização, à frente a bandeira do Império do Brasil e um mascarado dando o recado— plagiava mensagens de grupos terroristas.
O texto pueril chamava os humoristas de militantes do “marxismo cultural” empenhados em “destruir o povo brasileiro, suas crenças e seu patrimônio imaterial”. Tudo tão malfeito e patético que o primeiro impulso seria minimizar o episódio, atribuindo-o a um bando de lunáticos, desejosos de exumar a Ação Integralista Brasileira de Plínio Salgado, dos anos 1930, importada da Itália fascista.
Afinal, já há algum tempo, grupos do gênero tem existência virtual nas profundidades mais lamacentas da internet, sem consequências perceptíveis. Entretanto ignorá-los seria um erro, pois os dias são outros. O terrorismo está firme e presente no mundo, ombro a ombro com os movimentos sociais de direita em ascensão e o crescimento eleitoral de partidos extremistas, nos Estados Unidos e na Europa.
Seus agentes constituem uma fauna variada formada de supremacistas brancos, islamofóbicos, antissemitas, racistas de todos os naipes ou anti-imigrantes, tendo em comum a prontidão para a violência contra seus alvos. Dados atualizados e análises fundamentadas do fenômeno foram reunidos pelo Start – Consórcio Nacional para o Estudo do Terrorismo e das Respostas ao Terrorismo, da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos (https://start.umd.edu//).
Estudiosos atribuem a multiplicação do terrorismo de direita ao aumento da polarização política e à alta do populismo nos Estados Unidos e na Europa. Também aqui é possível que isso esteja acontecendo, embora os alvos sejam outros: os artistas e todos quantos prezam a liberdade de criação.
A guerra ao chamado marxismo cultural declarada por Bolsonaro, alguns de seus ministros e auxiliares próximos e pelo guru terraplanista da família —que nada sabem nem de marxismo, nem de cultura— pode ter produzido seu primeiro fruto envenenado na véspera de Natal. Como no conhecido monólogo de Brutus, na tragédia “Júlio César” de Shakespeare o que vemos hoje é apenas o ovo da serpente que, “ao ser chocado, há de tornar-se peçonhento”.
É hora de usar as leis da democracia para impedir que a serpente do terrorismo saia à luz.
*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.
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