sábado, 11 de janeiro de 2020

Simon Schwartzman* - De volta ao futuro

- O Estado de S.Paulo (10/1/2020)

É preciso aproveitar o Future-se para lidar com os grandes problemas da educação

A nova versão do Programa Universidades e Institutos Empreendedores e Inovadores – Future-se, publicada no início de janeiro pela Casa Civil como projeto de lei e posto em consulta pública, é um grande avanço em relação à versão anterior, de julho, divulgada pelo Ministério da Educação. Essencialmente, o projeto prevê a criação de um fundo patrimonial para apoiar atividades de inovação, empreendedorismo e internacionalização das universidades e dos institutos federais, permite que as universidades criem e administrem os próprios fundos e introduz vários mecanismos modernos para a execução de projetos, pela criação ou associação das universidades com fundações de apoio e organizações sociais, contratos de gestão por resultados entre as universidades e a União e a criação de um comitê gestor do programa formado por representantes das universidades e dos Ministérios da Educação, da Ciência e Tecnologia e da Economia. Nesta versão fica claro que a autonomia das universidades permanece preservada e que os recursos do programa são adicionais, não substituem os recursos orçamentários regulares.

O ano de 2019 foi especialmente ruim para a educação brasileira, com o Ministério da Educação se perdendo em disputas ideológicas, que só servem para desviar a atenção, deixando de lado questões centrais como a implementação da reforma do ensino médio e da educação profissional, a reformulação do Enem, a renovação do Fundeb, a revisão do sistema de avaliação da educação superior, a política de formação de professores, o combate ao analfabetismo funcional e tantas outras. Em contraste, o projeto do Future-se mostra que uma equipe tecnicamente competente, ouvindo e dialogando com diferentes setores de dentro e fora da comunidade universitária, tem condições de avançar, da mesma forma que outras equipes vêm avançando nas áreas da economia e da infraestrutura.

Isso não significa que o projeto Future-se seja perfeito, e o processo de discussão pública que agora se renova serve não somente para que ele se aperfeiçoe, mas também para que seja mais bem entendido e ganhe legitimidade nas diversas áreas – universitária, científica e tecnológica, empresarial e governamental – em que deve atuar. Existem questões que precisam ser aprofundadas, como o relacionamento do programa com a Capes e um certo fetiche, que me parece ingênuo, com a internacionalização, a qual não deveria ser um fim em si mesmo, mas o resultado natural de uma ciência e tecnologia de padrão efetivamente internacional. Outras questões hão de surgir da leitura atenta da proposta.

Sem tirar o mérito do projeto, é importante lembrar sempre que a pesquisa, a inovação e o empreendedorismo são somente uma parte pequena do sistema federal da educação superior, que, por sua fez, é também uma parte pequena da educação superior brasileira. Dados recentes sobre publicações científicas elaborados pela Universidade de Leiden, na Holanda, mostram que 42% da produção científica brasileira de qualidade internacional provém das três universidades estaduais paulistas – USP, Unicamp e Unesp – e metade da produção das federais vem de apenas cinco universidades: URFJ, UFRGS, UFMG, Unifesp e UFSC. E só 23 das centenas de instituições de ensino superior no País aparecem nesses dados. Pelo Censo da Educação Superior de 2018, dos 8,4 milhões de estudantes de nível superior no País só 1,3 milhão, menos de 16%, estavam matriculados em instituições federais.

Em outras palavras, a maior parte das universidades brasileiras, públicas ou privadas, não faz ou faz muito pouco de inovação, empreendedorismo e internacionalização, mas faz outra coisa muito importante, que é formar milhões de pessoas para as diferentes profissões. Alguns conceitos introduzidos pelo Future-se, como os contratos de gestão, autonomia gerencial e avaliação por resultados, deveriam ser aplicados às universidades como um todo, para avaliação e acompanhamento do ensino, e, mais amplamente, para alinhar os orçamentos anuais com os resultados obtidos, e não com os custos históricos.

Por outro lado, se for possível efetivamente criar um fundo patrimonial significativo para o apoio à inovação e ao empreendedorismo – e ainda não está claro se existirão recursos para isso –, não há por que excluir do programa as universidades estaduais e particulares. A responsabilidade do Ministério da Educação para com a educação superior brasileira não se limita às instituições federais e é importante não confundir a administração da rede própria com as políticas de interesse geral para o País.

Não é por acaso que justamente na ponta de cima do sistema as coisas aparentemente comecem a andar. Essa tem sido a prática brasileira desde sempre – cuidar das instituições de elite e não conseguir lidar com as questões que afetam e interessam à grande maioria da população. Temos a melhor pós-graduação e pesquisa universitária da América Latina, mas uma graduação muito desigual. E um dos piores sistemas escolares. É ilusão achar que um pequeno conjunto de instituições inovadoras possa, com o tempo, melhorar o resto, que funciona com outras lógicas. A ideia de que todo o ensino superior brasileiro convergiria para o modelo da universidade de pesquisa, que vem da reforma de 1968, ainda não foi abandonada de vez, embora todos saibam que é um mito. Sem políticas específicas para os cursos de graduação, o mais provável é que as universidades vocacionadas para a pesquisa e a pós-graduação se distanciem cada vez mais do resto, ou simplesmente acabem refluindo para a vala comum.

É preciso aproveitar a experiência do Future-se para lidar também, com competência técnica, ideias inovadoras e diálogo, com os outros grandes problemas que a educação brasileira até agora não tem conseguido enfrentar.

*Sociólogo, é membro da Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior (CONAES)

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