sábado, 11 de janeiro de 2020

Guilherme Amado - A aliança com os Cartórios

- Revista Época

A futura sigla do presidente fez uma parceria com o Colégio Notarial do Brasil, que representa 9 mil notários em 24 estados do país, para que eles trabalhem por sua criação

Cem mil fichas de apoio em pouco mais de um mês de trabalho. O número divulgado em dezembro pelo Aliança pelo Brasil sobre o total de assinaturas coletadas para criar a sigla da família Bolsonaro impressiona: é mais de um quinto das 492 mil necessárias para criar uma legenda. Hoje, existem 80 aspirantes a partido na fila do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Nenhum capitaneado por uma figura carismática, nenhum tendo à frente um presidente da República e nenhum que tenha a seu dispor uma estrutura formada pela capilaridade de igrejas evangélicas, associações militares e, agora, também dos cartórios de notas.

O Aliança fez uma parceria com uma entidade privada, o Colégio Notarial do Brasil (CNB), que representa 9 mil notários em 24 estados do país, cerca de 90% da classe, para que eles trabalhem pela criação do partido. Não há nenhum documento formal que estabeleça as diretrizes da coisa, e o CNB tem colocado sua estrutura para trabalhar pelo capitão. Em troca, os cartórios ganham mais do que só uma graninha — a taxa cartorial de reconhecimento de firma é uma mixaria, geralmente menos de R$ 20. Conquistam a proximidade com o partido do presidente e, claro, com o Planalto. Mas a empreitada, inédita na história da criação de partidos no Brasil, pode ter problemas no TSE. O Código Eleitoral não a prevê, e portanto o tribunal nunca disse se usar uma estrutura privada para criar um partido é legal ou não.

Aos olhos de procuradores eleitorais, pode ser até abuso de poder econômico. A todo-poderosa Karina Kufa, advogada de Bolsonaro e representante jurídica do Aliança, não vê ilegalidade. “O que não está na lei não é proibido, não é?”, justificou.

Essa não é a primeira jabuticaba da formação do Aliança. A primeira tentativa do partido foi tentar se viabilizar por meio da certificação digital, o que agilizaria o burocrático processo de reconhecimento presencial de firmas. Aventava-se até usar o sensor biométrico dos smartphones para que os apoiadores autenticassem seus apoios. O TSE deu OK, afirmando que era juridicamente aceitável a autenticação por meio eletrônico, mas não detalhou como seria feito ou quanto custaria. Esperar essa regulamentação emperraria os planos de Bolsonaro, que precisa de um partido robusto em 2022 e, no melhor dos mundos, gostaria de ter logo uma sigla para hospedar seus candidatos a prefeito em outubro.

A sede do CNB fica num amplo escritório na cobertura de um prédio comercial em Brasília, a quatro quilômetros do Congresso. Funciona como uma espécie de sede do Aliança: lá é possível receber em mãos uma ficha de apoio, com timbre do partido. No documento há instruções didáticas para o preenchimento dos dados eleitorais e o comando para ir a um cartório de notas.

Em seu site oficial, a entidade oferece com destaque para download três documentos específicos sobre o Aliança: a ficha de apoio, uma procuração, assinada pela própria Karina Kufa, autorizando nominalmente representantes da futura sigla a recolherem essas fichas autenticadas em cartório, e outro, também subscrito pela advogada, que traz nome e número do documento de cerca de 130 representantes do Aliança por cidades mineiras, estado onde a coleta está mais organizada. Há nomes desde Vila Bicas, com 13 mil habitantes, até, claro, Belo Horizonte.

Cabe ao CNB organizar sua rede de notários no país para que estejam preparados para atender aos interessados em apoiar o Aliança, organizar as fichas nos cartórios para serem retiradas pelos representantes indicados do partido e organizar eventos para o reconhecimento de assinaturas, como em hotéis, praças e igrejas. O serviço inclui ainda usar a rede interna de comunicação do Colégio para comunicar os pormenores das necessidades do Aliança. Segundo Kufa, o partido não pagará nada à entidade pelo trabalho.

Quem está à frente da “parceria” — as aspas aqui cabem porque, segundo as duas partes, o que há é um contrato de boca, um acordo de cavalheiros — é Andrey Guimarães Duarte, tesoureiro do Colégio e ex-presidente da organização em São Paulo. Ele contou que, no começo de dezembro, foi procurado pessoalmente por advogados do Aliança, interessados desde o começo em algo informal, sem a necessidade de qualquer documento.

A coluna ouviu dois procuradores do Ministério Público Federal com vasta atuação em eleições sobre a regularidade da dobradinha. De fato, não há nada dizendo que é ilegal. Por nunca ter sido feito, ainda deve ser alvo do escrutínio dos ministros. “Pode configurar em último caso até abuso de poder econômico, ainda que não exista a previsão dessa infração na constituição de partidos. O Código Eleitoral a prevê apenas nas eleições”, explicou um deles, sob a condição de anonimato.

O outro procurador viu, além do aspecto eleitoral, também problemas de natureza civil para a associação. “Há um possível desvio da finalidade da associação, e aí cabe ao Ministério Público de onde fica a sede da entidade avaliar isso. Me parece que há violação do estatuto”, explicou, também sob sigilo. O estatuto do Colégio Notarial afirma que “é vedado ao CNB participar, apoiar ou difundir, ativa ou passivamente, quaisquer manifestações de caráter político”. É exatamente o que vem sendo feito.

“Nunca havíamos feito isso para a criação de partido. Mas é uma atividade completamente apartidária. Nesse tempo de polarização, temos muito receio de ter um viés”, alegou Guimarães Duarte, o representante do CNB.

Quatro meses antes de o Aliança bater à porta do Colégio, o então presidente da entidade, Paulo Gaiger, foi escolhido por Bolsonaro para um mandato de dois anos no Comitê Gestor da Infraestrutura de Chaves Públicas, órgão subordinado diretamente à Presidência da República e a quem cabe definir as políticas de certificação digital — a mesma tecnologia que o Aliança queria usar para se viabilizar. Guimarães negou que o cargo dado por Bolsonaro tenha levado a entidade a vestir a camisa do partido.

Quando fez o trato, Andrey Guimarães disse ter vislumbrado apenas, além de um fluxo maior de clientes aos cartórios, um ganho na imagem do serviço. “Foi gratificante, porque queremos também demonstrar uma utilidade em nosso serviço, que às vezes é muito criticado. A gente brinca que tem pessoas felizes vindo reconhecer firma. Talvez seja a primeira vez que isso acontece.”

Perguntada por que apenas o partido que o presidente da República quer fundar ganha essa ajuda, Kufa foi lógica: “Só porque o Aliança os procurou, não é?”.

A dúvida é se o CNB teria o mesmo brilho nos olhos para trabalhar, por exemplo, pelo Unidade Popular, o mais recente partido autorizado pelo tribunal, no mês passado, e que prega em seu manifesto “apoiar a luta pelo socialismo no Brasil e promover a unidade das forças populares para intervir no processo político do país”. Sem uma estrutura dessa a sua disposição, demorou dois anos para coletar suas assinaturas.

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