segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Alex Ribeiro - Riscos se acumulam no crédito imobiliário

- Valor Econômico

Hoje a TR é vista como um estorvo, porque é difícil securitizar créditos indexados por uma taxa definida com uma canetada pelo governo

Depois de criar uma linha de financiamento imobiliário indexada à inflação, o governo estuda agora adotar a repactuação de contratos para viabilizar empréstimos prefixados, segundo informações de técnicos que participam das discussões. Ambas concentram os riscos nos clientes, deixando-os vulneráveis no caso de eventual aceleração inflacionária ou alta de juros.

O sistema de repactuação de contratos, que é usado em países como o Reino Unido, permite cobrar juros menores, pois o banco não precisa adicionar um prêmio nas taxas para cobrir o risco de variação dos juros. O Reino Unido, porém, é uma economia muito mais estável que o Brasil, com menor nível de juros reais e menor volatilidade de taxas.

A Caixa Econômica Federal pretende lançar a nova linha prefixada ainda neste trimestre, ampliando o leque de opções a disposição de seus clientes que querem comprar a casa própria. Em agosto de 2019, entraram em operação seus financiamentos imobiliários vinculados ao Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).

A repactuação dos contratos provavelmente será aplicada a cada cinco anos. Para o mutuário, isso significa que, se os juros vigentes em mercado tiverem subido, o saldo devedor será corrigido por essa taxa mais alta. De forma análoga, se os juros baixarem, os encargos da dívida também diminuem.

As discussões ainda estão nas áreas técnicas, mas a adoção de cláusulas de repactuação parece inevitável para viabilizar linhas de financiamento prefixadas. Embora a curva de juros futuros chegue a dez anos, a liquidez é muito restrita em prazos superiores a cinco anos. É um horizonte muito curto comparado com os financiamentos imobiliários, que chegam a 20 ou 30 anos.

Muitos especialistas manifestaram preocupação com os empréstimos indexados ao IPCA. Hoje, a inflação está baixa e sob controle, mas o histórico brasileiro de estabilidade monetária é ainda recente. Em 2015, por exemplo, a inflação chegou a um pico de 11,7%. A aceleração da inflação foi um dos fatores por trás do colapso do Banco Nacional da Habitação (BNH), na década de 1980, e levaram à criação do Fundo de Compensação de Variações Salariais (FCVS), uma conta que vem sendo paga até hoje pelo Tesouro Nacional.

Os empréstimos prefixados com repactuação representam um risco ainda maior para os clientes. Neles, ficam expostos tanto ao risco de variação da inflação quando de mudanças na taxa real de juro.

A taxa Selic está testando sua mínima histórica há dois anos, o que tende a baratear os custos de quem tomar financiamento prefixado com repactuação. Mas como esses mutuários estarão dentro de cinco anos? Em boa medida, os juros estão baixos devido a fatores cíclicos: a economia ainda não se curou da recessão e o desemprego é muito alto, por isso o Banco Central tem mantido juros estimulativos para impedir que a inflação caia abaixo da meta. Em algum momento, porém, os estímulos serão retirados.

O nível estrutural de juros, por outro lado, é hoje desconhecido. Os economistas acreditam que a taxa que mantém a economia em equilíbrio no longo prazo tenha caído para algo em torno de 3,5% reais ao ano. Mas essa é uma estimativa precária. Com o ajuste fiscal ainda incompleto, parece cedo para afirmar que os juros baixos vieram para ficar.

O sistema de crédito imobiliário se tornou um pouco mais arriscado, também, devido à mudança na fórmula de amortização. Depois de sofrer prejuízos com financiamentos habitacionais na virada do século, que obrigaram um aporte de recursos pelo Tesouro, a Caixa havia adotado o sistema de amortização constante (SAC) para mitigar riscos. Nele, as prestações no começo do contrato são mais altas e caem ao longo do tempo. Junto com a indexação do IPCA, voltou a amortização pela tabela price, com prestações menores, mas com valores constantes.

Com a indexação ao IPCA e tabela price, as prestações de novos contratos habitacionais ficaram cerca de 30% menores. Bancos privados que relutavam em correr os riscos dessa nova modalidade de empréstimos tiveram que oferecê-la, pressionados pela competição da Caixa, líder do mercado. Hoje, 10% dos contratos habitacionais já são fechados nessas condições; o estoque de operações chega a R$ 6 bilhões em apenas cinco meses e há algo como R$ 15 bilhões em empréstimos engatilhados para contratação.

Não existe mágica: as prestações são mais baixas porque os mutuários estão arcando com mais riscos. É como cortar o seguro do carro para conseguir um respiro no orçamento doméstico. Funciona bem até ocorrer um sinistro que leve à perda total. O Banco Central tem afirmado que, de forma geral, preços de imóveis sobem junto com a inflação, por isso essa seria uma espécie de proteção. A crise do “subprime” nos Estados Unidos, no entanto, mostra como em alguns períodos essa relação se quebra, ora com os preços de imóveis subindo mais forte (e levando a mais endividamento), ora caindo fortemente.

Em entrevista à repórter Talita Moreira, do Valor, na segunda-feira passada, o presidente da Caixa, Pedro Guimarães, defendeu a mudança do indexador da caderneta de poupança, que também corrige financiamentos habitacionais. Em vez da taxa referencial (TR), “por que não um percentual do CDI ou da inflação?”. Originalmente, a TR foi criada exatamente assim, como uma taxa que flutuava automaticamente de acordo com os juros de mercado, baseado nos custos médios de captação dos maiores bancos em papéis como o Certificado de Depósitos Bancários (CDBs).

Na década de 1990, porém, o Banco Central subiu fortemente os juros, para manter a âncora cambial num período em que o Brasil foi atingido por choques externos. Os juros altos encareceram as prestações da casa própria, aumentando a inadimplência. Para evitar o colapso do sistema, o governo criou um redutor para a TR, que é definido pelo Conselho Monetário Nacional (CMN).

Hoje, a TR é vista como um estorvo, porque é difícil securitizar créditos indexados por uma taxa definida com uma canetada pelo governo. Mas, para mudá-la, é preciso o devido sequenciamento, garantindo antes uma sólida estabilidade macroeconômica.

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