- Valor Econômico
Reforma administrativa no RS pode servir de exemplo
“Sirvam nossas façanhas de modelo a toda a Terra”. Assim diz o refrão do hino gaúcho, que tem origem na Revolução Farroupilha (1835-1845), quando a então província de São Pedro do Rio Grande do Sul se levantou contra o Império brasileiro, reivindicando maior autonomia, menor tributação de sua produção e, ao fim, proclamando-se uma república independente. Não por acaso, “Novas façanhas” foi o lema escolhido pelo governador Eduardo Leite (PSDB) para ser a marca da sua gestão.
Na semana passada, o jovem governador conseguiu um feito que merece ser cantado em verso e prosa. O tucano convocou extraordinariamente a Assembleia Legislativa e, num esforço concentrado de apenas três dias, conseguiu aprovar um pacote de sete medidas que incluem a aplicação das novas regras da Previdência no Estado, uma reforma administrativa para os servidores e novos planos de carreira para professores e policiais civis e militares.
Enquanto a maioria dos Estados brasileiros, mesmo diante de uma grave crise fiscal, enfrenta uma paralisia decisória, esperando soluções vindas da União, Eduardo Leite vem mostrando resultados expressivos. A que podemos atribuir um desempenho legislativo tão superior a outras administrações que se elegeram igualmente com o discurso da renovação e da necessidade de adoção de medidas duras de ajuste, como Romeu Zema (Novo-MG) e Wilson Witzel (PSC-RJ)?
Três fatores parecem ter contado para a bem-sucedida gestão de Eduardo Leite até o momento: 1) uma equipe de excelente qualidade técnica, alguns deles recrutados em outros Estados do país, 2) a construção de uma ampla base de apoio na Assembleia, envolvendo deputados de todos os partidos representados, com exceção de PT, PDT e Psol; e 3) o empenho pessoal do governador em enfrentar categorias com grande poder de mobilização e pressão, como professores e militares. Com relação a esse terceiro tópico, a aprovação das reformas no Rio Grande do Sul indica que algo está mudando na correlação de forças na sociedade brasileira.
Começou com a PEC da Previdência de Paulo Guedes e Rodrigo Maia. A maioria dos analistas prevíamos uma tramitação demorada, dada a tradicional resistência do funcionalismo público contra o aumento da idade mínima e a elevação das alíquotas de contribuição.
No entanto, a reforma passou em poucos meses e com escassas concessões ao lobby corporativista. O sucesso na Previdência foi tanto que a equipe econômica de Bolsonaro logo se animou a propor a chamada PEC Emergencial - cuja principal medida é a possibilidade de redução da carga horária e dos salários dos servidores em até 25% - e a elaborar um projeto de reforma administrativa.
Os governantes em geral sempre tiveram medo de enfrentar os privilégios do funcionalismo público. Além de organizados em sindicatos e associações fortes, algumas carreiras têm condições de paralisar o funcionamento da máquina pública caso cruzem os braços e outras podem azucrinar a vida de políticos com o vazamento de informações ou a abertura de investigações. Por que motivo então esses grupos de interesses tão articulados, mobilizados e com grande poder de barganha vêm sofrendo seguidas derrotas, inclusive em nível local, como acabou de ocorrer nos pampas?
A explicação pode residir numa combinação de elementos que indicam como a sociedade brasileira tem mudado nos últimos tempos.
Circunstâncias demográficas, econômicas e políticas parecem indicar que a maré se tornou desfavorável para os servidores públicos.
De um lado, os protestos de 2013 vocalizaram uma percepção que estava latente entre os cidadãos: a má qualidade dos serviços prestados pelo Estado. O sentimento de revolta expresso nos cartazes que pediam saúde, educação e segurança “padrão Fifa” foi muito bem captado por uma nova geração de políticos que ascendeu ao poder com promessas de renovação e foco na gestão em lugar da velha política.
Para completar, a disseminação de ferramentas de transparência colocou sob holofotes, quase cotidianamente, situações de servidores ganhando muito acima da realidade brasileira. Nas eleições de 2018, o combate aos privilégios no serviço público fez parte do programa de governo de todos os principais candidatos, de Amoêdo a Boulos, passando por Bolsonaro, Alckmin, Meirelles, Marina, Haddad e Ciro.
Por outro lado, a precarização das relações de trabalho - expressa tanto pela terceirização de atividades quanto pela uberização dos serviços - fez com que uma parcela expressiva da população migrasse da categoria de trabalhadores para “empreendedores”. De acordo com a Pnad Contínua divulgada na sexta-feira, são 29 milhões brasileiros atuando como empregadores ou trabalhadores por conta própria - o que representa quase um terço da mão de obra ocupada no país.
Soma-se a isso o fato de que várias pesquisas têm apontado o crescimento das denominações evangélicas, que além de preceitos religiosos vêm disseminando uma mentalidade de maior protagonismo pessoal visando o progresso, inclusive material, de seus fiéis.
Para boa parte da sociedade, o Estado brasileiro - com seu excesso de burocracia, tributação elevada e péssimos serviços públicos - passou a ser visto como um obstáculo, e não como uma proteção.
Não é de se surpreender, portanto, como o discurso liberal vem ganhando força na população brasileira, embalado pelas promessas de que um Estado menor e mais eficiente estimulará o crescimento do país. E na esteira desse pensamento, a indignação contra os privilégios de algumas categorias de servidores públicos tem se generalizado.
A ascensão ao poder, no âmbito federal e em muitos Estados e municípios, de uma nova leva de dirigentes e parlamentares comprometidos com uma agenda liberal, combinada com uma sociedade cada vez mais contaminada pelo espírito empreendedor, representa uma tempestade perfeita contra o funcionalismo público. E a façanha do governador gaúcho de aprovar uma reforma administrativa com tanta facilidade pode servir de exemplo a todo o país, como diz seu hino.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário