- Folha de S. Paulo
A tecnologia promete maravilhas, mas elas terão de conviver com a Idade Média
Sempre me considerei um viajante leve. Saindo do Rio a trabalho, chego ao aeroporto com uma mala mínima, que despacho no balcão, e embarco munido apenas de um livro de bolso e uma Bic preta. E, então, sentado em minha poltrona, observo fascinado o espetáculo das pessoas entrando no avião com uma colossal mochila às costas, uma descomunal mala-baú e um objeto comprido embalado, que pode ser uma vara de pesca, uma pá de remo ou um berimbau, e tentam enfiar tudo nos contêineres superiores.
Estou sendo informado agora de que, em breve —o que pode significar o fim da década ou o fim deste ano—, tudo isso vai acabar. Bilhetes, passaportes, documentos de identidade, nada será necessário. Você chegará ao aeroporto e, pelo simples reconhecimento facial, fará o check-in, atravessará alfândegas, cruzará fronteiras. É só não se esquecer de levar o rosto.
Passará também a viajar sem malas. Bastará mandar de véspera uma mensagem ao hotel, informando suas medidas —altura, pescoço, ombros, abdômen, número do sapato. Impressoras 3D lhe fabricarão as peças de roupa, que você usará pela duração da viagem e, quando sair, deixará para trás, que serão recicladas ou dadas aos pobres. Sim, continuará havendo pobres.
As roupas e os acessórios, como óculos, brincos e pulseiras —os chamados “vestíveis”—, obedecerão aos nossos comandos de voz. Não sei que ordens se darão a um sutiã ou a uma cueca, mas é assim que será. Esses comandos substituirão os próprios smartphones, que, com seus arcaicos teclados e telas, também ficarão obsoletos, porque todos os objetos obedecerão às nossas ordens: “Cheesebúrgueres, fritem-se”. Se você for gago, um nanomicrofone embutido num de seus caninos ou molares converterá a sua gagueira numa fala fluente e nítida.
Bem, este é o futuro próximo. Ficará bem no país quase medieval em que estamos vivendo.
*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.
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