A
CPI do óbvio
O
Estado de S. Paulo
Os fatos estão claros para todos, restando à comissão o trabalho de organizá-los, para que o País entenda quais foram os erros e quem deve responder por isso.
Ohistórico
das Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIS) mostra que o sucesso das
investigações costuma depender do surgimento de alguma testemunha bombástica.
No caso da recéminstalada CPI da Pandemia isso não será necessário: os fatos
essenciais são abundantes e estão claros para todos, restando à comissão o duro
trabalho de organizá-los, para que o País entenda quais foram os terríveis
erros que resultaram em tantas mortes evitáveis e quem deve responder por isso.
Do ponto de vista estritamente institucional, a CPI terá cumprido seu papel se dela resultarem medidas legislativas destinadas a impedir que esses erros se repitam e, também, se encaminhar às autoridades competentes os elementos necessários para a responsabilização civil e criminal dos infratores.
Mas
a CPI é também um foro político, em que a oposição exerce seu direito
constitucional de fiscalizar o governo. Por isso, é inevitável que, ao longo
dos trabalhos da comissão, os depoimentos e provas trazidos ao escrutínio
público sirvam para constranger o presidente Jair Bolsonaro – cuja patente
irresponsabilidade inspirou, quando não determinou, o comportamento omisso e
inconsequente das autoridades sanitárias federais no combate à pandemia.
Ciente
dos estragos que a CPI causará a seu projeto de reeleição, Bolsonaro tratou de
mobilizar boa parte de seus ministros para organizar sua defesa. Se o
presidente tivesse usado no combate à pandemia a mesma energia que está
gastando para se safar da CPI, o
País
não teria quase 400 mil mortos e um sistema de saúde em frangalhos.
Mas
a incompetência, produto da mediocridade que é a segunda pele do governo
Bolsonaro, mais uma vez se impôs. A título de se antecipar aos questionamentos
da CPI, os ministros produziram uma lista de acusações mais completa e
detalhada do que a formulada por integrantes da comissão.
Além
disso, no afã de tentar impedir que o senador Renan Calheiros, desafeto de
Bolsonaro, fosse nomeado relator da CPI, bolsonaristas recorreram à Justiça e
obtiveram uma liminar absurda que interferia em decisão exclusiva do Congresso.
Enquanto a liminar vigorou, os governistas a usaram para tumultuar a CPI. Mas a
desarticulação da base governista, já célebre, mais uma vez cobrou a conta. O
senador independente Omar Aziz (PSD-AM), apoiado pela oposição, elegeu-se
presidente da CPI inclusive com o voto de um governista, o senador Ciro
Nogueira (Progressistas-pi). Ato contínuo, o senador Aziz escolheu Renan
Calheiros como relator.
Profundo
conhecedor dos desvãos do Congresso e expert em chicanas para esquivar-se da
Justiça, Renan é o nome ideal para a relatoria. Sua notória competência servirá
para inibir manobras governistas destinadas a tirar o foco da CPI, isto é, a
administração delinquente do Ministério da Saúde sob as ordens de Bolsonaro.
O
fato é que a perspectiva de uma CPI dominada pela oposição e com relatoria de
Renan Calheiros preocupa muito o governo. E isso fica claro diante do
nervosismo de Bolsonaro, que voltou a fazer ameaças citando as Forças Armadas e
a ofender governadores. Essas declarações reafirmam o autoritarismo de
Bolsonaro, mas, sobretudo, expõem a tática manjada de desviar a atenção do que
realmente importa: a desídia e a inépcia do governo diante do vírus.
“Por
que tanto medo?”, perguntou o senador Renan Calheiros nas redes sociais ante a
inquietação bolsonarista. A pergunta, claro, é retórica. Quando os muitos
ministros da Saúde de Bolsonaro forem questionados na CPI, o País afinal saberá
como foram tomadas as decisões cruciais que resultaram no atraso da vacinação,
na falta de campanha nacional para a adoção de medidas preventivas, na
sabotagem do distanciamento social e no desabastecimento de equipamentos e
drogas para o atendimento de doentes.
A
rigor, nem seria necessária uma CPI. Quando Bolsonaro escarnece da inteligência
alheia, dizendo que o intendente Eduardo Pazuello “fez o dever de casa” ao não
comprar vacinas em 2020, ou quando o próprio ex-ministro da Saúde faz chacota
dos brasileiros ao aparecer sem máscara e todo pimpão, num shopping de Manaus,
a responsabilidade pela tragédia nacional fica óbvia.
Um passo rumo à tributação global
O
Estado de S. Paulo
O governo de Joe Biden apresentou sua proposta para uma nova arquitetura tributária internacional. É um passo substancioso e possivelmente decisivo para impedir a balcanização tributária global com a proliferação de tarifas unilaterais e, ao mesmo tempo, coibir a evasão para “paraísos fiscais”.
Há
décadas o sistema internacional de tributação não agrada a ninguém, exceto os
acionistas das multinacionais e os países com baixas taxas de tributação. A
insatisfação atingiu um ponto de saturação com a dilatação do mercado digital.
A
composição atual de tratados internacionais foi construída com base no comércio
de bens físicos. Para evitar a dupla tributação, as empresas tipicamente
recolhem tributos na sua sede e os importadores arcam com as tarifas de
importação. As Big Techs, contudo, comercializam bens “intangíveis” em todo o
mundo, mas os impostos ficam concentrados na origem.
Paralelamente,
a falta de um piso global para as alíquotas precipitou uma “corrida para
baixo”, com diversos países oferecendo taxas mínimas para atrair
multinacionais. Mais uma vez, as maiores beneficiadas são as Big Techs, que
podem com facilidade deslocar formalmente sua sede, desfrutando de uma espécie
de dupla “não tributação” ao não recolher impostos nem onde vende seus produtos
nem onde os produz. A OCDE estima que a média dos tributos corporativos nas
economias avançadas caiu de 32% em 2000 para 23% em 2018. As Big Techs pagam em
média 16%.
Desde
2019 a OCDE promove a negociação de um novo quadro baseado em dois “pilares”. O
primeiro estabelece direitos de tributação com base nas vendas de serviços
digitais no território de cada país. O segundo propõe uma taxa global mínima.
O
governo de Donald Trump mostrou-se favorável à taxa mínima, mas bloqueou as
negociações, alegando que as taxas territoriais retirariam parcelas expressivas
da tributação dos EUA sobre suas Big Techs. Ante esse impasse, países como
França e Reino Unido lançaram novos tributos digitais, ao que os EUA retaliaram
com novas tarifas sobre seus produtos.
A
proposta de Biden está em consonância com os pilares da OCDE. Ela oferece aos
demais países a possibilidade de tributar suas empresas de tecnologia. Em
contrapartida, amplia o escopo do pacote da OCDE para outras multinacionais
(não só as de tecnologia), o que lhes permitirá tributar produtos europeus,
desde carros alemães a artigos de luxo franceses. Além disso, propõe uma taxa
mínima de 21% – essencial para que Biden possa viabilizar o aumento das taxas
domésticas a fim de financiar seu plano trilhardário de infraestrutura.
A
proposta foi bem recebida pelas autoridades europeias, que acenam com a
possibilidade de fechar um acordo em meados do ano. Mas o sucesso não está
garantido. Biden precisará enfrentar não só eventuais resistências no
Congresso, como as pressões corporativas. No plano internacional, os críticos
apontam que, ao mesmo tempo que a proposta amplia o escopo dos negócios,
restringe o alcance da medida tributária apenas aos grandes negócios. “Os
espólios (do aumento) nas receitas tributárias devem ficar extremamente
concentrados nos países do norte”, disse Tommaso Fascio, da Comissão
Independente para a Reforma da Tributação Internacional.
Muitos
sugerem que a taxa mínima de 21% é muito alta – a OCDE propõe algo em torno dos
13% –, restringindo demais a autonomia dos governos para modular suas políticas
econômicas. De resto, um aumento excessivo pode ser repassado aos consumidores
(pelo aumento nos preços) e aos empregados (pela redução dos salários).
Mas
ao menos a negociação foi reaberta e, mesmo que as cartas em jogo sejam mais
restritas do que muitos gostariam, ela se move na direção correta, prometendo
mais estabilidade ao sistema tributário internacional; menos incentivos para a
evasão fiscal; e contribuições mais expressivas das grandes multinacionais,
especialmente as Big Techs. Colateralmente, a proposta também pode revigorar em
diversos setores a cooperação multilateral, tão depreciada na era Trump, quanto
valiosa neste momento de crise global.
A
negociação para um novo sistema internacional de tributação foi reaberta
O genocídio armênio
O
Estado de S. Paulo
Reconhecer
o genocídio armênio é fundamental para evitar a repetição de atrocidades.
“Todos
os anos, neste dia, nós lembramos as vidas de todos aqueles que morreram no
genocídio armênio durante a era otomana e reafirmamos o compromisso de evitar
que tal atrocidade jamais ocorra novamente”, disse o presidente dos Estados
Unidos, Joe Biden, no dia 24 passado.
A
declaração é histórica. Foi a primeira vez que um presidente norte-americano
chamou pelo nome a brutal política de extermínio dos armênios empreendida pelo
então Império Otomano desde antes da 1.ª Guerra Mundial. A palavra “genocídio”
ainda seria empregada mais uma vez por Biden no discurso em memória das
vítimas, quando ele enfatizou que “o povo americano honra todos os armênios que
pereceram no genocídio que começou 106 anos atrás”.
A
bem da verdade, antes de Joe Biden, muitos presidentes americanos criticaram
com firmeza o extermínio dos armênios, jamais reconhecido pelos turcos, porém,
sem classificálo como genocídio; não porque descabido fosse, mas para evitar
ferir suscetibilidades da Turquia, país que Washington considera um frágil aliado
na delicada geopolítica na região do Oriente Médio.
Por
razões diametralmente opostas, o genocídio é uma questão que toca a identidade
nacional de turcos e armênios.
A
reação de Ancara após a fala de Biden mostra por que presidentes americanos
antes dele tanto evitaram falar em genocídio armênio e quão corajosa foi a
inflexão do democrata, que, diga-se, cumpriu uma promessa de campanha com o
reconhecimento público da tragédia. Em pronunciamento transmitido pela TV, o
presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, afirmou que a declaração de Biden
“afunda” as relações entre seus países.
Erdogan,
que classificou como “insultuoso” o discurso de Biden, pediu que o presidente
americano “corrija a tempo este passo errado” nas relações entre Turquia e
Estados Unidos, que, em sua visão, atingiram “um novo ponto negativo”. Não
haverá recuo por parte de Washington, evidentemente. Primeiro, como já dito,
porque Biden cumpriu uma promessa de campanha. Segundo, por questão de
coerência. O primeiro passo para “evitar que tal atrocidade jamais ocorra
novamente” é tratar as coisas como são, sem subversões da realidade. O que a
política pode distorcer, o registro da História aponta como o primeiro caso de
genocídio do século 20, décadas antes da tentativa do extermínio dos judeus
pelo regime nazista, não por acaso também negado ainda hoje por aqueles que não
só se põem a espancar a História, mas também a memória das vítimas da barbárie.
De
fato, era inconcebível que o genocídio armênio não fosse tratado como tal, não
obstante todas as evidências da deliberada política de matança e deportação em
massa implementada pelo Império Otomano, principalmente, a partir de 1915.
Então premidos entre os impérios otomano e russo, no Cáucaso, o movimento de
identidade nacional dos armênios sofreu toda a sorte de violência, muito antes
da eclosão da 1.ª Guerra, que, em seu término, levou ao fim do Império Otomano
e à fundação da Turquia.
Lamentavelmente,
o governo brasileiro ainda não reconhece oficialmente o genocídio armênio. Foi
para cá que acorreram muitos armênios da diáspora. Aqui vivem milhares de seus
descendentes.
Em
2015, o Senado aprovou requerimento dos senadores Aloysio Nunes Ferreira e José
Serra, ambos do PSDB de São Paulo, e emitiu uma moção de solidariedade aos
armênios por ocasião do centenário do genocídio. O emprego correto da palavra
motivou reação da Turquia, que convocou para consultas o então embaixador em
Brasília, Hüseyin Diriöz.
Os
armênios estimam em 1,5 milhão os mortos entre 1915 e 1917. Tramita no Senado
um projeto do falecido senador Major Olímpio (PSL-SP) para que se institua o
dia 24 de abril como o “Dia de Homenagem às Vítimas e de Reconhecimento do
Genocídio do Povo Armênio”. A rápida tramitação deste projeto de lei seria uma
justa homenagem à memória dos armênios que pereceram no massacre.
Reconhecer
o genocídio armênio é fundamental para evitar a repetição de atrocidades
Batalha política
Folha de S. Paulo
Bolsonaro
sofre derrotas na CPI, mas discurso contra palanque tem seu apelo
A
política esteve na berlinda no primeiro dia da CPI da Covid. Acossado, o
governismo deu mostra de que pretende estigmatizar a comissão instalada pelo
Senado como mero palanque parlamentar. Saiu derrotado na batalha inicial, mas o
argumento tem seu apelo.
“Aquele
parlamentar que estiver nesta CPI e quiser subir nos caixões dos quase 400 mil
mortos para fazer política rasteira e barata, para atacar o presidente
Bolsonaro, o governo federal, antecipar o palco de 2022, esse a população vai
saber identificar, avaliar e julgar”, discursou
o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ).
Deixando-se
de lado a súbita e mais que duvidosa preocupação do filho do presidente com as
vítimas brasileiras da pandemia, trata-se de ofensiva de impacto perceptível
entre os designados para a cúpula da comissão de inquérito.
Não
foi por acaso, decerto, que tanto o presidente do colegiado, Omar Aziz
(PSD-AM), como o relator, Renan
Calheiros (MDB-AL), repetiram com insistência que não haverá
politização dos trabalhos.
Jair
Bolsonaro, outrora apenas uma esquisitice na Câmara dos Deputados, chegou ao
Palácio do Planalto graças a uma desilusão geral com a política, na esteira dos
protestos populares de 2013, do impeachment de Dilma Rousseff (PT) e das
revelações da Lava Jato.
Seu
discurso antissistema farsesco, embora já bastante desmoralizado, ainda
encontra eco em parcela considerável do eleitorado —a aprovação ao governo
marcava 30% em março, segundo o Datafolha.
Se
ainda tem força nas ruas, Bolsonaro é uma negação na arena brasiliense.
Fracassou, previsivelmente, a canhestra tentativa de impedir que Calheiros
assumisse a relatoria da CPI por meio de uma decisão judicial; o candidato
governista à presidência do colegiado perdeu por 8 votos a 3.
É
fato que comissões parlamentares de inquérito pecam costumeiramente por
politização excessiva e contraproducente. Cabe repetir, entretanto, que a
investigação dos desmandos na gestão da pandemia contará com rara fartura de casos
graves e evidentes a explorar.
A
estratégia do confronto se mostra arriscada para um presidente que dispõe de
sustentação partidária volátil. O centrão vive a elevar o preço por seu apoio,
que dificilmente ficará incólume em caso de piora dos humores populares.
O
poder do cargo, da caneta e do Orçamento não bastou para evitar a instalação da
CPI. A oportunidade de fazer a melhor política —à base de diálogo,
convencimento e negociação— já foi perdida por Bolsonaro há muito tempo.
Antes tarde
Folha de S. Paulo
Biden
arrisca ao usar genocídio armênio para ter apoio europeu e isolar Turquia
Um
dos contenciosos narrativos mais dolorosos do século 20, o genocídio armênio
sempre foi usado pelas grandes potências como instrumento diplomático na sua
complexa relação com a Turquia.
Situada
na encruzilhada da Europa com a Ásia, a antiga sede do Império Otomano tem
papel crucial para o Ocidente —ameaça no passado, hoje integrante da Otan, o
clube militar liderado pelos EUA.
Ao
longo dos anos, europeus e americanos foram mais ou menos críticos ao papel
turco na morte de talvez 1,5 milhão de armênios nas perseguições iniciadas em
1915.
Como
elementos fundadores da República da Turquia em 1922 já davam as cartas no
ocaso otomano, o país sempre rejeitou a noção de extermínio, colocando as
atrocidades na conta das agruras da guerra mundial que se desenrolava.
Com
o advento da União Soviética, absorvendo a Armênia, a causa do genocídio foi
integrada à disputa geopolítica com a Turquia.
Um
novo capítulo dessa história se deu no sábado (24), quando o americano Joe
Biden tornou-se o primeiro
presidente do país a reconhecer o genocídio como tal.
Washington
e Ancara se estranham desde que Donald Trump se recusou a extraditar o clérigo
muçulmano que inspirou o golpe fracassado contra o presidente Recep Tayyip
Erdogan em 2016.
O
turco aproximou-se de Moscou e comprou sofisticados sistemas antiaéreos, o que
irritou os EUA, que expulsaram Ancara do projeto do avançado caça F-35.
Como
os atritos na Síria, na Líbia e no Cáucaso mostram, no último caso com o
tempero de envolver a aliada russa Armênia, a relação com Moscou é instável,
mas ao fim dá mais cacife a Ancara.
Sob
a vista grossa de Trump, que espezinhava a Otan, Erdogan atormenta seus
colegas, em especial a rival histórica Grécia —ambos os países disputam
recursos energéticos em torno de Chipre.
A
França chegou a pedir a expulsão da Turquia do grupo, algo difícil na prática:
quase toda intervenção ocidental recente no Oriente Médio passou pela base
turca de Incirlik, onde há bombas nucleares americanas armazenadas.
Biden
sinaliza agora apoio a seus colegas europeus, após anos de insultos de Trump, e
reafirma sua política de falar grosso quando há direitos humanos envolvidos.
Foi
assim com aliados como o príncipe saudita Mohammed bin Salman e adversários
como o presidente russo, Vladimir Putin.
Com
Erdogan, Biden arrisca um pouco mais, talvez considerando que a assertividade
externa turca seja a de um tigre de papel.
CPI da Covid deve trabalhar com independência
O Globo
Depois de 14 meses do primeiro caso do novo coronavírus no Brasil e quase 400 mil mortos, a CPI da Covid começou ontem os trabalhos sob intensa pressão do Planalto, como esperado. Sem conseguir barrar a instalação da comissão — determinada pelo Supremo —, o presidente Jair Bolsonaro e aliados passaram a jogar duro para minar desde o nascedouro a investigação sobre ações e omissões do governo na pandemia.
A
instalação já começou tumultuada. Na segunda-feira, a Justiça Federal concedera
liminar impedindo que Renan Calheiros (MDB-AL), desafeto de Bolsonaro,
assumisse a relatoria. O pedido fora feito pela deputada Carla Zambelli
(PSL-SP), aliada do presidente, que alegou afronta à moralidade administrativa
(Renan responde a processo por corrupção passiva e lavagem de dinheiro). Ontem
o TRF-1 cassou a liminar, e Renan foi escolhido relator, em mais uma derrota
para Bolsonaro. A CPI será presidida pelo senador Omar Aziz (PSD-AM).
A
tentativa de judicializar a questão é sinal da desorientação que tomou conta do
Planalto diante das ameaças representadas pela CPI. O governo tenta criar
antídotos para enfrentar uma investigação que se mostra inexorável. A Casa
Civil enviou aos ministérios documento listando 23 possíveis acusações que
deverão ser feitas na CPI — maior que a lista da oposição, que reunia 18 pontos.
De forma desastrada, na tentativa de criar uma força-tarefa para neutralizar as
denúncias, o Executivo acabou fornecendo um roteiro robusto para os trabalhos
da comissão, mostrando ter conhecimento de suas vulnerabilidades.
Os
senadores viram pressão também na decisão da subprocuradora da República
Lindôra Araujo, que, um dia antes da abertura da CPI, denunciou o governador do
Amazonas, Wilson Lima (PSC), e mais 17 pessoas por corrupção no combate à
pandemia. O grupo é acusado de desviar recursos para compra de respiradores A
denúncia foi vista por parlamentares como forma de desviar o foco das
investigações para os estados, como quer Bolsonaro.
A
CPI tem oportunidade de jogar luz sobre um dos períodos mais tenebrosos da
história do país. É preciso explicar por que rumamos hoje para os 400 mil
mortos, mais que dobrando o pior cenário traçado no início da pandemia pela
equipe do então ministro Luiz Henrique Mandetta (180 mil).
A
lista elaborada pelo governo é certeira sobre os pontos a investigar. Estão ali
os equívocos na compra das vacinas; o colapso em Manaus; o incentivo ao uso de
drogas ineficazes contra a Covid-19 (cloroquina, ivermectina etc.); o desprezo
pelas medidas de restrição, essenciais para conter a disseminação do vírus; e a
negligência em relação à gravidade da pandemia, tratada como “gripezinha”. Não
se pode perder de vista que o cenário devastador de hoje está intimamente
ligado às ações e omissões do governo Bolsonaro desde o início.
A despeito das pressões, que só tendem a aumentar no decorrer dos trabalhos, a CPI da Covid, em que o governo é minoria, precisa investigar com independência, transparência e sem revanchismo, com o objetivo de esclarecer por que milhares de vidas não foram salvas durante a mais letal pandemia em cem anos. É preciso apontar erros, omissões e eventuais crimes. E identificar os responsáveis pelo morticínio. Nem mais, nem menos.
Renda básica universal exige que Congresso escolha quem perderá
O
STF determinou que o governo comece a pagar a renda básica universal
estabelecida por lei em 2005. Aprovada no governo Lula, ela dá a todos os
brasileiros e residentes no país direito a receber um benefício monetário mensal,
suficiente para atender “às despesas mínimas de cada pessoa com alimentação,
educação e saúde”. Cabe ao Executivo estabelecer o valor desse benefício.
É
uma ideia nobre em sua essência. Seria sem dúvida uma contribuição para aliviar
a miséria, num momento em que insegurança alimentar atinge, pelas estimativas,
117 milhões de brasileiros. Esbarra, porém, em dificuldades de formulação
simples e solução complexa. Quanto custará? Quem receberá? Quem pagará?
O
auxílio emergencial, que pagou parcelas entre R$ 300 e R$ 600 ao longo do ano
passado, custou R$ 300 bilhões aos cofres públicos. Um estudo de economistas da
Universidade Federal de Pernambuco falava num custo na ordem de R$ 1 trilhão em
2017, ou 15% do PIB, para criar uma renda básica na faixa de R$ 400 estendida a
toda a população (no caso das faixas mais ricas, ela seria abatida do imposto
de renda). Em versões mais comedidas, que conferem o benefício apenas aos mais
necessitados, o custo anual ficaria reduzido a até R$ 58 bilhões, dobrando a
base de beneficiários do Bolsa Família.
Em
qualquer uma dessas versões, será preciso tirar o dinheiro de algum lugar. Na
teoria, para criar um programa minimamente decente de renda básica — se não
universal, ao menos para quem tem necessidade —, bastaria cortar parte dos
subsídios que o governo concede em vários formatos. Pelo último relatório do
Ministério da Economia, com dados relativos a 2019, subsídios e renúncias
fiscais somavam R$ 348 bilhões. Candidatos a cortes não faltam.
Que
tal os R$ 22,1 bilhões destinados à Zona Franca de Manaus? Ou os quase R$ 76
bilhões de isenção concedidos por meio do programa Simples nacional? Ou os R$
53,3 bilhões em isenções e deduções no imposto de renda de pessoas físicas? Os
R$ 28,5 bilhões de isenções a entidades sem fim lucrativo? Os R$ 32,2 bilhões
de desoneração da cesta básica (comprovadamente um dos programas sociais mais
ineficazes do governo)?
São
inúmeras as opções. Cabe ao Congresso Nacional, que criou a renda básica universal,
fazer a escolha. Por que não faz? Porque sempre é mais fácil acenar com mais
uma bondade genérica a todos do que enfrentar a resistência de lobbies e
corporações específicos, incrustados no Orçamento da União. Ninguém no
Parlamento parece se esforçar para fazer qualquer um dos grupos de interesse
abrir mão de seu quinhão — tanto que o déficit primário deste ano está estimado
em quase R$ 250 bilhões, e as despesas fora do teto de gastos poderão passar de
R$ 125 bilhões. Nunca houve, da parte de nossos congressistas, a coragem para
enfrentá-los. A maior dificuldade sempre esteve — e continua a estar —
exatamente aí.
CPI da Pandemia começa com governo na defensiva
Valor Econômico
CPI
trará um desgaste diário, público, de Bolsonaro e uma erosão lenta, segura e
gradual de seu cacife eleitoral
A cronologia das palavras cheias de som e fúria ditas pelo presidente Jair Bolsonaro significam tudo - um roteiro inescapável de provas públicas de que o chefe do Executivo, por sua própria vontade, nada de relevante fez para combater a maior crise sanitária da história brasileira. Ontem foi instalada a Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado sobre a Pandemia, que averiguará como o governo agiu contra a covid-19 e, o que parece mais fático, o que deixou de fazer. Além dos discursos de Bolsonaro, a CPI ganhou também um roteiro alternativo, feito pela própria turma do Planalto. São 23 acusações que poderão ser feitas durante a CPI - uma contribuição substancial, embora incompleta.
A
simples lógica leva à conclusão de que se o Executivo se opôs, em todas as
etapas e de várias formas, a ações recomendadas por cientistas e médicos, a
máquina federal seria imobilizada em decorrência do negacionismo presidencial.
Não se tratou de inércia, no entanto, mas de um consciente ativismo contra
todos os meios para a proteção da população contra um vírus mortífero,
incluindo a vacina. Cabe à CPI a tarefa de avaliar o que o presidente, pelo
cargo que ocupa, é legalmente obrigado a fazer para proteger a saúde dos
brasileiros, e o que de fato fez.
Na
linha do tempo da pandemia há fases distintas, mas a atitude do presidente não
mudou. No início, sem qualquer perspectiva de haver vacinas contra o vírus a
curto prazo, Bolsonaro desdenhou a “gripezinha” e, preocupado com os lockdowns
dos Estados, disse que a economia ia ser arruinada deste jeito e, com ela, seu
governo. Para ele, o melhor a fazer era nada, isto é, a imunização de rebanho e
seu cortejo gigantesco de mortes.
O
presidente foi ao STF contra as ações dos Estados e perdeu. Entendeu a derrota
à sua maneira - como um salvo conduto para a inação e irresponsabilidade.
Depois, tratou de assediar quem não seguisse suas toscas ideias e demitiu Luiz
Mandetta do Ministério da Saúde. Bolsonaro tomou conta do Ministério para
manietá-lo, e nomeou o general Eduardo Pazuello como secretário executivo de um
breve ministro, Nelson Teich. Depois foi a vez de Pazuello que, obedecendo
diretamente às ordens do chefe, produziu um desastre tão completo que tornou
quase impossível não responsabilizar o Planalto por ele, embora já haja
tentativa de torná-lo um bode expiatório na CPI.
Na
fase seguinte, com as vacinas já no horizonte, Bolsonaro duvidou de sua
eficácia. Por que alguém que não vê nelas sequer uma solução se esforçaria para
comprá-las? O Brasil não aceitou os termos da Pfizer e apostou apenas em uma
delas, a da Oxford- AstraZeneca, a ser produzida pela Fiocruz. Veio a segunda
onda da pandemia, ainda mais letal, faltam imunizantes, a vacinação atrasou e
seu cronograma se alarga no tempo, com os riscos decorrentes: mais mortes,
maiores chances de variantes ainda mais agressivas. Sem a Coronavac, iniciativa
do Instituto Butantan e do governador João Doria, o país teria vacinado até
ontem 8 milhões de pessoas, e não 39 milhões.
O
presidente pôs a máquina e o dinheiro público a serviço do curandeirismo da
cloroquina, após ter abdicado desde o início do papel de coordenador, ao lado
de Estados e municípios, do enfrentamento do vírus. A falta de oxigênio em
Manaus foi o exemplo mais trágico disso. Quase 400 mil mortes depois, a atitude
de Bolsonaro não mudou.
Não
é difícil ver as marcas do presidente na política oficial desastrosa praticada.
Processado por improbidade administrativa, e tendo atrás de si a incompetência
atroz de sua administração em um momento terrível da história nacional, o
general Pazuello passeou sem máscara em shopping de Manaus, em mais um exemplo
de sua arrogância e total despreparo para o cargo que lhe foi imposto por
Bolsonaro.
Por
ações e omissões do governo, a capacidade extraordinária de vacinação do SUS
continua firme, como é demonstrado nos momentos em que há disponibilidade de
imunizantes. Essa disponibilidade continua em risco, assim como o calendário de
vacinação.
Não se sabe como terminará uma CPI em que os governistas são minoria. O caminho para atribuir a consecução de crimes a Bolsonaro é politicamente difícil, longo e tortuoso. A corrupção, seiva que move boa parte das CPIs, não parece ser protagonista relevante nessa. Ela porém, trará um desgaste diário, público, de Bolsonaro e uma erosão lenta, segura e gradual de seu cacife eleitoral.
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