quarta-feira, 28 de abril de 2021

Aylê-Salassié F. Quintão* - Plataformas de mentiras

O candidato levantou-se repentinamente do lugar, pegou o microfone e gritou:

- Ele mente! Ele mente! Ele mente!...

Cínicos, confortavelmente coniventes com a deturpação da verdade, um ou dois dos concorrentes, sem a mesma coragem, assistiam no fundo aquela cena escatológica de indignação.

Era o debate entre os candidatos à Presidência da República do Brasil na eleição de 2006. Um deles fazia a análise da realidade brasileira para os 80 milhões de telespectadores que assistiam ávidos aqueles que, como pretensos futuros chefe do Estado brasileiro, dissertavam sobre soluções para as angústias da população, apresentando retóricas plataformas de Governo.

Mesmo o Brasil sendo tratado como país emergente, a brasilidade parece alinhar-se ainda hoje mais com a enxurrada de mentiras que candidatos a cargos políticos apresentam, como verdades absolutas. São versões fantasiosas, parcializadas, distorções estatísticas e jeitinhos criativos, inclusive para as contas públicas. Desfigurar a verdade tornou-se tão comum, que tende a se transformar em uma teoria de desenvolvimento – uma ciência do engano – embora já sejam marcas do perfil irresponsável dos brasileiros: o uso pleno do direito de mentir, como previu Benjamin Constant.

Há lá fora uma descrença generalizada nos governos do Brasil e, internamente, ainda maior com relação aos pretensos governantes. Todos   mentiam e continuam mentindo, cada vez mais. De tanto mentir, convencem a si mesmo de que a comunidade internacional acredita na lisura e honorabilidade que pregam. A evasão fiscal e a fuga dos investimentos estrangeiros no País (27% do total arrecadado), demonstram o contrário.

O País perdeu a direção desde que abandonou a expressão unificadora do civismo – estigmatizada de fascista -  que mantinha os brasileiros interconectados por uma identidade comum. Mergulhou-se em um caldeirão de direitos difusos e ambiguidades trazidas pela modernidade tardia pelas minorias e pelas ideologias conspiratórias, gerando uma insegurança geral.

A cidadania passou a flutuar sobre ondas sucessivas de temas como questões de gênero, liberdade para o consumo de drogas, combate ao racismo (?) e ao trabalho infantil, etc. Com verdades parciais, o brasileiro ingressou num mundo de mentiras e de ódio, importando modelos doentios. Nesse caldeirão, a redução da pobreza tornou-se um problema menor. O número de pobres aumenta e o de mortos também, e não é só por força do Covid. Stálin ensinou aos pretensos governantes que a morte de uma pessoa é, de fato, uma tragédia, mas a de milhares apenas uma estatística.

A verdade vos libertará. Não caia nessa. Pois o que se entende por verdade está vagarosamente desaparecendo, dando lugar ao direito de mentir.  Verdade vem se tornando coisa para místicos, mergulhados em ilusões, que se esforçam em dar aparência real ao que é apenas um estado metafísico, configurado na linguagem que adota.

Enquanto Kant descreveu a verdade como subjetiva, Nietzsche a descreveu como uma ilusão, uma imposição daqueles que exercem o poder e que chegam a justificar a mentira como oportunas.  Há quem acredite, sobretudo as vítimas, que a verdade um dia aflorará. A história a libertará. Ora, que papo! Qual história vai fazer isso?  Não a contada por Stálin, por Hitler, por Enver Hoxha e por alguns governantes da América Latina. Mente-se, mente-se e mente-se, com tanta convicção que fazem escola. Assim vai sendo construída a história da brasilidade.

Lembro-me do nosso mago, fazedor de milagres, Delfim Neto, ex-ministro da Fazenda que, deixou o governo Médici, anunciando uma inflação de 11%. O sucessor, o também economista Mário Simonsen, professor da Fundação Getúlio Vargas, ao substituí-lo, mostrou que ela estava em 25%, e que logo, logo, chegaria a 40%. Na Nova República, chegou a 2.000% ao ano. Embora mentira tenha consequências, todo pretendente a governante quer contar a própria história: é a influência de narciso.

No Brasil, agora, caminha-se para o reconhecimento legal do “hackerismo”, essa atividade ilegal e corruptora dos sistemas e da vida social, fazendo uso do direito benjaminiano de mentir.

Dadas as mesmas condições, ele vai se legitimar em jurisprudências, e ganhar um lugar institucional no mundo do trabalho, e até cursos em universidades. É a privacidade que vai, oficialmente, “pras cucuias”, com a ajuda do nosso Judiciário. A prática da mentira já está instalada no cotidiano do brasileiro, pelo admitido como a “ciência do engano”.

Imaginar que o STF é o guardião da verdade constitucional e que presidentes ou candidatos políticos trazem ilibadas verdades é para lá de ingênuo e de abuso contra o cidadão. Uma CPI da Lava Toga seria oportuna para interromper o fluxo de mentiras, se não servir para legitimar, como verdade, falsas versões correntes.

Vão-se quase dois anos que 27 senadores assinaram o requerimento para a abertura da CPI da Lava Toga. Com medo da verdade, os próprios autores a mantêm arquivada. Para enterrá-la, inventaram a CPI da Covid. O País está mergulhado em verdadeiras oficinas do Diabo, que levam os brasileiros a enxergar virtudes e  heróis, em cima de plataformas de mentiras.

*Aylê-Salassié F. Quintão, jornalista e professor

Nenhum comentário: