Editoriais
É preocupante a politização do Supremo
O Globo
A campanha eleitoral deste ano é marcada
por um fato singular: as mentiras do presidente Jair Bolsonaro sobre as urnas
eletrônicas e a campanha bolsonarista contra Tribunal Superior Eleitoral (TSE)
e Supremo Tribunal Federal (STF). Com o movimento, Bolsonaro tem uma intenção
óbvia, outra menos óbvia. A óbvia é criar pretextos, ainda que falsos, para
contestar o resultado em caso de derrota em outubro — e para justificar uma
tentativa de golpe, a exemplo do que fez Donald Trump. A menos óbvia é atrair
as Cortes superiores à arena política, de modo a enfraquecê-las como
instituições independentes.
A situação põe as Cortes diante de um dilema. De um lado, é preciso resistir aos ataques do bolsonarismo à democracia, de outro é preciso cautela para não transformar o Judiciário em campo de batalha política. Infelizmente, é o que tem acontecido, como revelam duas decisões do STF nesta semana, uma do ministro Nunes Marques, a outra do ministro Alexandre de Moraes. Embora não tenham relação aparente, ambas mostram que o clima eleitoral contamina o Supremo.
Na quinta-feira, Nunes Marques derrubou
duas decisões do TSE, uma delas fundamental para a jurisprudência no combate à
desinformação eleitoral: a cassação do deputado estadual Fernando Francischini
(União-PR), que num vídeo no Facebook, visto por 6 milhões, espalhou mentiras
sobre as urnas eletrônicas antes mesmo do fim do primeiro turno em 2018. Em
outubro passado, o TSE cassou seu mandato por 6 votos a 1, criando um
precedente para futuros casos de desinformação. Nunes Marques tem o direito de
discordar da decisão, embora seus argumentos sejam frágeis. Também é verdade
que é possível a um ministro do STF derrubar uma decisão do plenário do TSE.
Mas parece evidente que a motivação dele foi política, vinculada à batalha de
Bolsonaro contra o sistema eleitoral.
Como ministro, Nunes Marques tem sido
consistente ao apoiar causas bolsonaristas. Já liberou missas e cultos
religiosos em plena pandemia, favoreceu o filho de Bolsonaro num voto sobre o
foro de parlamentares e foi o único dos 11 no STF a inocentar o deputado Daniel
Silveira (PTB-RJ), que agredira de forma inaceitável ministros da Corte. Deu a
entender que, em caso de recurso, levaria as cassações suspensas para decisão
da Segunda Turma. Faria bem se as levasse ao plenário. O país precisa ter
clareza sobre o combate à desinformação na eleição.
Alexandre, por seu turno, suspendeu as
contas em redes sociais do Partido da Causa Operária (PCO), legenda de extrema
esquerda cujo presidente falou em “dissolução do STF”. O PCO foi incluído no
inquérito das fake news, criado para investigar a disseminação de notícias
falsas contra o Supremo. Ora, por mais que as declarações sejam repugnantes e
revelem postura semelhante às de Silveira ou Francischini, a punição parece um
exagero. É sempre preciso ser comedido para, sob o pretexto de proteger a
democracia, não cercear vozes legitimamente constituídas nessa mesma
democracia. O poder de investigação do STF não pode se transformar em
instrumento de coação contra quem incomoda.
Tanto Alexandre quanto Nunes Marques
deveriam entender o sentido do comedimento exigido de quem exerce o papel de
juiz. Juiz não pode entrar em campo para jogar, apenas para apitar — ou que
credibilidade terá? Vale para o futebol, vale para a política.
Nicarágua de Daniel Ortega precisa ser
punida por agressões à democracia
O Globo
A Nicarágua de Daniel Ortega acaba de
transpor mais um limite no endurecimento do regime, com a decretação absurda do
fechamento da Academia Nicaraguense de Línguas, entidade de 94 anos de
existência, equivalente à Academia Brasileira de Letras. Além dela, o regime
nicaraguense fechou 82 organizações não governamentais, numa agressão bárbara
às liberdades democráticas. Ao lado de Cuba e Venezuela, a ditadura
nicaraguense se transforma a cada dia num caso mais grave de autoritarismo na
América Latina. Está, nas palavras de Anibal Toruño, diretor da Radio Darío,
destruída em 2018 por paramilitares com explosivos, pior que a Venezuela e mais
próxima de Cuba.
Oriundo da Frente Sandinista de Libertação,
que encerrou em 1979 os 43 anos de poder da família Somoza, Ortega governou de
1979 a 1990. Voltou ao posto em 2007 e, de lá para cá, foi reeleito em pleitos
suspeitos. No quarto e último, em novembro passado, mandou prender seus
principais adversários políticos antes da votação. Governa com a mulher,
Rosario Murillo, nomeada vice-presidente, e reúne um extenso prontuário de
crimes contra a democracia, que já levaram 170 mil nicaraguenses ao exílio.
Partiu do Legislativo nicaraguense, controlado
por Ortega, a determinação do fechamento da Academia e das 82 ONGs — ao todo,
mais de 300 organizações deixaram de existir nos últimos anos. O cancelamento
das instituições foi pedido pela Comissão de Justiça e Governança do Congresso,
sob a alegação de que as entidades não se registraram como “agentes
estrangeiros”, como determina uma lei insólita. Pretexto para sufocar vozes
dissonantes em seu regime de exceção.
Ao todo, 21 meios de comunicação sofreram
intervenção do governo Ortega. Não há mais nenhum jornal independente em
circulação. Uma das vítimas foi o tradicional La Prensa, da família Chamorro,
num caso que lembra a perseguição do chavismo venezuelano ao El Nacional, que
terminou confiscado pelo governo. Na Nicarágua, o governo prendeu os principais
integrantes da família proprietária do La Prensa: Juan Lorenzo Holmann
Chamorro, Cristiana Chamorro Barrios e Pedro Chamorro Barrios. O jornal
sobrevive hoje apenas no meio digital.
Em 2018, houve uma onda de protestos em
razão de uma reforma previdenciária. As manifestações de estudantes, indígenas
e desempregados em Manágua foram reprimidas por policiais e paramilitares com
armas de fogo. Testemunhas e organizações de direitos humanos estimam em mais
de 300 o total de mortos. A Anistia Internacional denunciou que a “repressão
estatal atingiu níveis deploráveis”.
A Nicarágua, um dos países mais pobres da
América Latina, precisa ser investigada em todas as instâncias multilaterais,
não apenas pela Organização dos Estados Americanos (OEA). O fechamento de
veículos de imprensa, ONGs e da Academia é parte do endurecimento progressivo
de um regime que há tempos já se tornou ditatorial. A Nicarágua de Ortega não
pode ficar impune no plano internacional.
Desprezo ao eleitor
Folha de S. Paulo
Resistência de Lula e Bolsonaro a debates
desrespeita rivais e ofende votantes
A quatro meses das eleições, os dois
primeiros colocados da corrida presidencial demonstram pouco interesse em
discutir os problemas do país longe da zona de conforto oferecida por comícios
e pelo horário de propaganda eleitoral.
Jair Bolsonaro (PL), que aparece em segundo
lugar nas pesquisas de intenção de voto, anunciou que não
participará de nenhum dos debates previstos para o primeiro turno e só
voltará a pensar no assunto se passar à segunda rodada.
O mandatário, que busca a reeleição e
enfrenta elevados índices de reprovação popular, argumentou que nada ganharia
se comparecesse a esses eventos, já que disporia de pouco tempo para se
defender dos ataques dos adversários.
Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não
confirmou sua participação em nenhum debate até agora e sugeriu
que os veículos de comunicação reduzam o número de encontros programados
a dois no primeiro turno e mais um na etapa decisiva.
Apontado como favorito pelas pesquisas, o
ex-presidente parece avesso à ideia de se expor, com o principal oponente
ausente, num palco dominado por candidatos com pouco voto e muita vontade de
fazê-lo escorregar.
É um sinal desalentador. Ao colocar suas
estratégias de campanha acima de tudo, os dois protagonistas da disputa pelo
Planalto desrespeitam os outros competidores e ofendem os eleitores.
Debates são um instrumento fundamental para
que as pessoas se informem sobre os candidatos e analisem suas propostas sob o
crivo do contraditório. Eles são, portanto, uma parte essencial do processo
democrático.
Se o formato nem sempre produz resultados
satisfatórios, isso se deve, na maioria das vezes, às condições impostas pelos
marqueteiros das campanhas para a participação dos candidatos, em geral mais
preocupados em se proteger do que em esclarecer os eleitores.
Bolsonaro foi a
apenas dois debates na campanha de 2018. Afastado das ruas após levar uma
facada a poucas semanas do primeiro turno, continuou dando entrevistas no
hospital e falando aos seguidores na internet, mas recusou embates diretos com
os adversários.
Lula dificilmente terá condições de
criticar o presidente se ele fugir novamente desta vez. O petista também evitou
a exposição no primeiro turno da campanha de 2006, quando exercia o primeiro
mandato e concorria à reeleição.
O mínimo que Bolsonaro deveria oferecer ao
eleitorado neste ano é uma prestação de contas dos erros cometidos em sua
ruinosa gestão. Lula faz diariamente promessas vazias sem explicar como irá
superar os obstáculos à sua frente. Os eleitores merecem mais respeito daqueles
que pedem seus votos.
Um lugar pior
Folha de S. Paulo
Guerra na Ucrânia chega ao 100º dia sem fim
à vista, alimentando tensão global
Até os primeiros mísseis russos atingirem a
Ucrânia, na madrugada de 24 de fevereiro passado, havia um compasso
relativamente conhecido a guiar a geopolítica.
Girando em torno da disputa mais aguda
entre Estados Unidos e China, temperado pelo pós-pandemia, ele não incluía a
maior guerra em solo europeu desde 1945 no cardápio. Havia, claro, sinais de
que a situação se agravava nas fronteiras ucranianas, mas poucos esperavam algo
na magnitude vista.
Erros de avaliação baseados em conceitos
estabelecidos foram se sucedendo. A Rússia não dobrou Kiev em uma semana, quiçá
em um mês. A dissolução das forças de Vladimir Putin nem tampouco ocorreu, como
os moradores do leste e do sul ucranianos sabem bem.
Também não ruiu o sistema fossilizado da
autocracia russa pelo desgosto das elites locais com o regime formidável de
sanções econômicas aplicado sobre as instituições e as empresas do país.
Até aqui, a punição do Ocidente e seus
aliados não logrou evitar uma morte na Ucrânia. O temor de que o cerco apenas
jogue Moscou nos braços de Pequim numa nova ordem mundial é crescente e nem de
longe infundado. Putin foi ferido, mas continua na ofensiva.
A preservação da popularidade do presidente
segue o endurecimento de seu regime. O preço que gerações russas pagarão pelo
delírio geopolítico do líder, a começar por seu proverbial cancelamento na
arena internacional, ainda está por ser devidamente calculado.
Os
cem dias da guerra consolidaram também algumas certezas. O impacto do
conflito no mercado de energia e de alimentos disparou uma corrente
inflacionária que, aliada a problemas diversos, arrisca empurrar o mundo para
uma onda recessiva em 2023.
A crise se vê em bombas de gasolina
brasileiras, nos conflitos do Peru, na crise alimentar que se insinua na
África. Como no Apocalipse bíblico, os cavaleiros da fome, da guerra e da morte
vagam —o da peste já estava entre nós.
Para alegria de milenaristas, até riscos de
uma Terceira Guerra Mundial deixaram de ser fantasiosos.
Adicione-se a isso a percepção de insolubilidade. O ensaio de resolução das
negociações de paz iniciais está à mão, mas é coalhado de entraves e depende de
uma boa vontade de lado a lado ora inaudita.
Assim, a sugestão de uma guerra prolongada apenas faz crescer a convicção de que o planeta é um lugar bastante pior hoje.
Calamidade eleitoral
O Estado de S. Paulo
Usar a guerra entre Rússia e Ucrânia para justificar mais um drible nos limites fiscais é só a mais recente demonstração da aflição de Bolsonaro na campanha
Em busca de qualquer solução que reverta a
estagnação revelada pelas pesquisas eleitorais, o governo Jair Bolsonaro dobrou
a aposta na gastança desenfreada sem pudor. Uma das mais novas manobras em
estudo é utilizar a guerra entre Rússia e Ucrânia – e seus efeitos sobre a
cotação do petróleo e os preços de derivados, além de um risco de
desabastecimento – como pretexto para editar um decreto de calamidade pública,
recurso que havia sido adotado em março de 2020 para lidar com gastos
extraordinários gerados pela covid-19. A outra possibilidade em análise é
elaborar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nos mesmos moldes da PEC
Emergencial, que garantiu a retomada dos benefícios a famílias carentes que
ficaram desassistidas por meses em pleno auge da pandemia.
A meta é encontrar a alternativa menos
afrontosa aos olhos dos órgãos de controle e que permita ao Executivo ignorar o
teto de gastos e as restrições do período eleitoral para usufruir de créditos
extraordinários que ampliem o valor do Auxílio Brasil e criem um subsídio para
os combustíveis. O decreto seria a opção, não fosse o fato de que ele vedaria a
concessão de reajustes a servidores– promessa que o presidente havia feito somente
às forças de segurança, mas que terá de ser estendida a todo o funcionalismo
público para desmobilizar uma greve geral. A PEC seria uma cartada menos
teratológica ao fixar algum limite ao gasto extrateto e não impediria os
aumentos salariais.
Não há dúvidas de que a guerra tem
pressionado as cotações de petróleo e a inflação de alimentos em todo o mundo,
mas tentar usar essa situação para driblar restrições legais e fiscais com o
objetivo de extrair benefícios eleitorais é uma desfaçatez como poucas vezes se
viu nesse governo.
Calamidade é um estado anormal associado a
um desastre natural ou provocado, caso do novo coronavírus, que sobrecarregou a
rede hospitalar de países desenvolvidos e vitimou centenas de pessoas em
questão de semanas. O desconhecimento sobre tratamentos eficazes e a ausência
de vacinas para uma doença recém-descoberta fundamentaram quarentenas que
afetaram cadeias produtivas e empregos no mundo todo. Socorrer os mais pobres e
reforçar o caixa dos Estados e municípios para fortalecer o Sistema Único de
Saúde (SUS) era imprescindível. Calamidade, certamente, expressa a situação de
violência criminosa a que ucranianos estão submetidos há mais de três meses
pela Rússia, mas os efeitos da guerra afetam os brasileiros e o restante do mundo
de forma indireta. É um imperativo moral reconhecer essa diferença.
Diversos países têm recorrido a ações
extraordinárias para conter os impactos do conflito sobre seus cidadãos sem
decretar calamidade. Reino Unido e Itália aplicaram um imposto sobre o lucro
das empresas de óleo e gás para financiar o apoio a famílias vulneráveis. A
Alemanha lançou um pacote de incentivo ao transporte público ao baratear
passagens de trem e anunciou um apoio financeiro adicional aos mais carentes. A
França concedeu descontos para os combustíveis de forma mais ampla, mas
garantiu reembolso às distribuidoras por eventuais perdas. Em comum a todas
essas iniciativas há objetivo claro, alvo definido, fonte de recursos e espaço
temporal para sua vigência.
O governo brasileiro poderia fazer algo
semelhante, mas prefere atuar de forma absolutamente destrambelhada, inclusive
abrindo mão de impostos. Sem norte, cogita e anuncia tantas e tão disparatadas
medidas– mudança na política de preços da Petrobras, estudos para a
privatização da companhia, imposição de teto ao ICMS de combustíveis e energia
e cancelamento de reajustes nas contas de luz – que deixa implícito que o
objetivo não é minorar os efeitos da guerra na economia, mas acomodar no
Orçamento loteado pelo Centrão todo e qualquer gasto que possa impulsionar a
candidatura do presidente. Calamidade é sinônimo de catástrofe, e essa talvez
seja a melhor palavra para descrever a gestão de Jair Bolsonaro.
Supremo despachante
O Estado de S. Paulo
Ao derrubar monocraticamente uma decisão de tribunal superior para favorecer políticos bolsonaristas, NunesMarques aprofunda a politização do Judiciário
A narrativa oficial bolsonarista sustenta
que o Supremo Tribunal Federal (STF) é um órgão aparelhado por facções
políticas minoritárias que ultrapassa sistematicamente as “quatro linhas” da
Constituição para impedir que o povo, encarnado no presidente Jair Bolsonaro,
exerça sua vontade. Na prática, o verdadeiro incômodo de Bolsonaro é que o
Supremo não esteja – ainda – aparelhado pela sua facção para exercer a sua
vontade pessoal.
Poucas vezes o presidente se exprimiu de
maneira tão cristalina a respeito desse desejo como quando indicou Kassio Nunes
Marques para o Supremo. O novo ministro era confiável porque havia “tomado
tubaína” com o presidente, numa demonstração inequívoca de amizade – e, como
enfatizou Bolsonaro, “a questão da amizade é importante, né?”. Na posse de
Nunes Marques, não deixou margem a dúvidas: “Hoje, eu tenho 10% de mim no
STF”.
Por isso, não surpreende que a encarnação
de Bolsonaro no Supremo atue como se fosse o presidente em pessoa. Em decisão
monocrática, o ministro Nunes Marques derrubou as decisões do Tribunal Superior
Eleitoral (TSE) que cassaram os mandatos de dois aliados de Bolsonaro: o
deputado estadual Fernando Francischini (União Brasil-PR) e o deputado federal
José Valdevan (PL-SE).
Ainda que ministros do Supremo possam ter
essa prerrogativa, não deixa de ser afrontosa a anulação monocrática de
decisões colegiadas de um tribunal superior, ainda mais quando o placar é 6
votos a 1, no caso de Francischini, e por unanimidade, no caso de Valdevan. O
protocolo institucional demanda que casos assim sejam levados ao colegiado do
Supremo.
Mais acintosas são as questões de mérito.
Segundo o TSE, Francischini infringiu a LC 64/90, por uso indevido dos meios de
comunicação e abuso de poder político, ao afirmar em uma live que urnas fraudadas
não estavam aceitando votos em Bolsonaro. Como agravante, a mentira, claramente
voltada a tumultuar o processo eleitoral e manipular o eleitorado, foi dita no
dia do 1.º turno das eleições de 2018.
Já Valdevan teve seu mandato cassado pelo
Tribunal Eleitoral Regional (TRE) de Sergipe por ter prestado contas de apenas
R$ 353 mil dos R$ 551 mil gastos em campanha. O TSE confirmou a decisão, e a
perda do mandato foi declarada pela Câmara.
No caso de Francischini, Nunes Marques
alegou que a internet não pode ser equiparada aos “meios de comunicação” de que
fala a lei. No caso de Valdevan, alegou que não houve a publicação do acórdão
do TSE. Ainda que a tecnicalidade fosse sanável sem mais atritos, o TSE apenas
confirmou a decisão do TRE, que deveria permanecer vigente.
Por óbvio, as argumentações são
irrelevantes, meros pretextos para um voto decidido de antemão. Bolsonaro
obviamente não perdeu a deixa: repetiu as mentiras de Francischini e voltou a
fazer acusações superlativas e infundadas ao TSE.
Não foi a primeira vez que Marques fez
contorcionismos em nome de seu princípio exegético peculiar: a lealdade a
Bolsonaro. Fez o mesmo ao julgar improcedente a ação contra o deputado
bolsonarista Daniel Silveira; ao liberar cultos religiosos presenciais no auge da
pandemia; ao interromper os julgamentos de decretos que facilitaram a compra de
armas; ao decidir reiteradamente contra a CPI da Covid; ou ao negar a
prerrogativa dos Estados de determinar a obrigatoriedade de vacinas contra a
covid.
“Quem me conhece sabe que não me inibo com
nada”, declarou Nunes Marques, em altercação com outro ministro, logo no início
de seu mandato. “Para os que não me conhecem, ainda têm um pouco mais de 26
anos para me conhecer”, disse, referindo-se ao longo tempo que lhe resta até a
aposentadoria como ministro do Supremo. De fato, o ministro, pouco conhecido
até Bolsonaro alçá-lo à Suprema Corte, mostra que não se inibe com nada – nem
com a Constituição, nem com as liturgias comezinhas do Judiciário, nem mesmo
com o imperativo do bom senso. Mas não serão necessários 26 anos para
conhecê-lo. Bastou pouco menos de um para que mostrasse quem é: um fiel
despachante de Jair Bolsonaro.
Encruzilhada na Ucrânia
O Estado de S. Paulo
Apaziguar Putin e buscar ‘vitória total’ seria irresponsável. Ucrânia e aliados têm de achar meio-termo entre paz e justiça
Idealmente, Ucrânia e Rússia estariam
provendo o mundo com energia e alimento abundantes. A Ucrânia seria uma ponte
entre a Europa e a Rússia, a qual seria uma ponte entre o Ocidente, a China e o
Oriente, em um mundo seguro e economicamente aberto. Mas esse ideal de paz,
justiça e prosperidade nunca esteve tão distante.
As perspectivas são inquietantes em razão
de uma dissonância entre o poder e a legitimidade. As pretensões de Vladimir
Putin são ilegítimas. Mas ele tem poder para ferir a Ucrânia e ameaçar o mundo
com a destruição em massa. Algum compromisso entre a justiça e a paz será
necessário.
Do ponto de vista geoestratégico, a Ucrânia
praticamente já concedeu a demanda mais importante de Putin: a neutralidade. A
incerteza está na disputa por território.
Legitimamente aflitos com as mortes, a
fome, a inflação e o risco de uma guerra mundial, os pacifistas querem
apaziguar Putin: o Ocidente deveria reduzir o apoio a Volodmir Zelenski e
forçá-lo a ceder territórios. Mas talvez seja imprudente ignorar a advertência
da primeira-ministra da Estônia, Kaja Kallas: “É muito mais perigoso ceder a
Putin do que provocá-lo”.
Se Putin levar tudo, vai se fortalecer em
casa e mais cedo ou mais tarde tentará abocanhar mais pedaços da Ucrânia – ou
da Geórgia, Moldávia e mesmo dos Estados Bálticos. Os déspotas concluirão que o
crime compensa. Por isso, o “partido da justiça” quer escalar as hostilidades
até Putin devolver todos os territórios, mesmo a Crimeia, e, no limite, ser
deposto e responder por seus delitos.
A solução, obviamente, está no meio.
A hora da negociação não chegou, porque as
partes ainda não atingiram o que os estudiosos chamam um “impasse mutuamente
danoso”. Putin ainda não agrediu o suficiente. Mas uma janela de oportunidades
está se abrindo. O embargo europeu ao petróleo russo e as armas dos americanos
podem pesar a balança a favor de Kiev e é preciso se preparar para a
negociação.
A guerra é da Ucrânia, e cabe a ela decidir
o momento. Mas ela não solucionará o conflito sozinha. O Ocidente precisa articular
seus termos para negociar uma nova arquitetura de segurança com Putin. Além da
neutralidade da Ucrânia, com todas as suas garantias, isso implicará pactos
sobre armas convencionais e nucleares.
Neste instante, não há espaço para um
acordo sobre território aceitável para Putin e Zelenski. Mas isso pode mudar. A
justiça demanda que um cessar-fogo só comece quando os russos recuarem à
situação pré-24 de fevereiro. Mas um acordo pode ser arquitetado para garantir
um status especial a Donbass, com forças internacionais garantindo a paz e
eleições livres para a população, por meio das quais ela possa decidir seu
destino.
É crucial que o Ocidente tenha sangue-frio
e modere sua retórica belicosa. É preciso continuar pressionando Putin militar
e economicamente e, ao mesmo tempo, reservar-lhe uma saída “honrosa”.
Idealmente, a Ucrânia e seus aliados deveriam lutar “até o último homem” para consumar a combinação da justiça e da paz. Realisticamente, se o fizerem, arriscam-se a perder ambas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário