domingo, 10 de julho de 2022

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Editoriais

O papel da oposição na corrosão da democracia

O Estado de S. Paulo

Perigo de uma ruptura da ordem constitucional por Jair Bolsonaro não está apenas no futuro. O problema situa-se no presente – e está sendo construído com ajuda da oposição

Há uma crescente e mais que compreensível preocupação com a possibilidade de ruptura da ordem constitucional. De forma insistente, o presidente Jair Bolsonaro vem ameaçando e confrontando o sistema eleitoral e o Poder Judiciário. É um cenário inédito na ordem constitucional de 1988, o que desperta naturalmente grande apreensão.

De toda forma, o perigo não está apenas no futuro. Agora mesmo, não se sabe se Jair Bolsonaro cumprirá suas ameaças de golpe, se o bolsonarismo vai tumultuar as eleições (que até agora sempre foram pacíficas), se haverá uma escalada de violência contras as instituições e tantas outras questões importantes sobre o que ocorrerá com o País até o fim do ano. O problema é mais próximo. Não é mera possibilidade: a corrosão já está ocorrendo, como se viu nas últimas semanas.

A gravidade da situação – essa dimensão de realidade, e não de mero risco futuro – ficou explícita não tanto em virtude do comportamento de Jair Bolsonaro, porque, a rigor, ninguém jamais teve dúvida sobre a falta de compromisso do presidente com a Constituição de 1988 e ele nunca deu nenhum motivo para que se pensasse o contrário. Quem escancarou ao País a atual miséria dos fundamentos do Estado Democrático de Direito foi o Congresso, especialmente a oposição. 

A constrangedora novidade, se é que se pode chamar assim, é a atuação recente do Legislativo. Todo o Senado, com exceção do senador José Serra (PSDB-SP), apoiou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 1/2022, que violenta a própria Constituição e subverte, às vésperas das eleições, as regras do jogo eleitoral. Encaminhada à Câmara, essa PEC tem sido objeto de uma tramitação relâmpago, sem estudo e sem debate. Nesta semana, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), fez uma manobra inconstitucional – não instalou a CPI do MEC, apesar de os requisitos estarem preenchidos – e ainda alegou contar com o apoio dos líderes dos partidos.

Essa é a grande afronta ao regime democrático brasileiro: a normalização do desrespeito à Constituição. A oposição, que deveria ser resistência contra o autoritarismo de Jair Bolsonaro, tem feito um duvidoso e perigosíssimo cálculo eleitoral, em vez de defender com valentia a Constituição. Há uma tolerância com o intolerável. A tramitação da PEC 1/2022 escancarou um problema atual muito grave. Não é apenas o bolsonarismo que, para tentar permanecer no poder, faz troça da Constituição. Os partidos de oposição também estão operando dentro de uma lógica antirrepublicana e antidemocrática.

A lamentável omissão dos partidos de oposição não desculpa, por óbvio, a gravidade do comportamento de Jair Bolsonaro. Desde 1988, nenhum presidente da República usou o cargo para atacar as eleições, corroer a confiança da população no sistema eleitoral e tentar envolver as Forças Armadas em tramoias inconstitucionais. O que faz Jair Bolsonaro é rigorosamente inédito, a merecer severa aplicação da lei penal.

No entanto, precisamente pelo descalabro que é a atuação de Jair Bolsonaro, a omissão e a tolerância da oposição são ainda mais graves, ainda mais incompreensíveis. Diante desse cenário que causa tanta perplexidade, é preciso mencionar algumas verdades incômodas. A CPI do MEC não traz riscos eleitorais apenas para Jair Bolsonaro, pois as suspeitas de mau uso de dinheiro público na educação envolvem diretamente pessoas ligadas ao Centrão. O orçamento secreto não beneficia apenas aliados públicos do bolsonarismo – sabe-se que parlamentares da oposição também foram agraciados com verbas para seus redutos eleitorais sem transparência, sem critérios objetivos e sem controle. Por fim, não são apenas os bolsonaristas que apoiaram e continuam apoiando o modo como o deputado Arthur Lira (PP-AL) atropela ritos no exercício da presidência da Câmara.

Não basta criticar o bolsonarismo. Não basta preocupar-se com o futuro. Já hoje, muitas lideranças políticas de outras cores partidárias estão, com suas ações e suas omissões, contribuindo para enfraquecer a Constituição. É assim que começa a temida ruptura democrática.

Ciência como política de Estado

O Estado de S. Paulo

Sem ciência, não há solução factível para os desafios da era digital. Mas a Academia Brasileira de Ciências alerta alerta para a dilapidação do patrimônio científico do País

Academia Brasileira de Ciências publicou uma carta com propostas aos candidatos à Presidência. Mais do que um agregado contingente de recomendações, ela é, como diz seu título, uma apologia à Ciência como política de Estado para o desenvolvimento do Brasil.

A ciência no País começou tarde, com a chegada da Corte, em 1808. Então foram criadas as primeiras instituições de ensino e pesquisa, como o Museu Nacional ou o Jardim Botânico, depois acrescidas por outras, como a Fiocruz (1900), o Butantan (1901) e as primeiras universidades. Em meados do século surgiram empresas estatais inovadoras – como Vale (1942), Petrobras (53), Embraer (69) ou Embrapa (73) –, sistemas de gestão e financiamento – como CNPq e Capes (51) ou a Finep (67) – e o Sistema Nacional de Pós-Graduação. A Constituição de 88 alavancou leis inovadoras, como o Marco Legal de Ciência e Tecnologia (2015).

Todos os grandes sucessos econômicos do Brasil – como agropecuária, petróleo ou aviação – estão associados ao ecossistema científico nacional. Desde a criação do Ministério da Ciência e Tecnologia, em 1985, a parcela do Brasil na produção científica mundial aumentou de 0,5% para 3,2%.

Mas esse patrimônio está ameaçado pela drástica e persistente redução de investimentos. Em dez anos o investimento da União em educação caiu de 19% para 8%. O investimento por aluno é comparativamente baixo no ensino superior – no básico é ainda mais – e 75% das matrículas estão em instituições privadas, a maioria com objetivo de lucro, de baixa qualidade e sem dedicação à pesquisa. “O Brasil precisa de uma revolução na educação”, conclama a Academia, a começar pelo ensino básico, no qual a expansão das vagas não foi acompanhada pela sua qualificação.

Os países desenvolvidos contam, em média, com 4 mil pesquisadores a cada milhão de habitantes. Os 900 do Brasil são poucos, mesmo em comparação à América Latina. A média de investimentos dos países da OCDE em ciência, tecnologia e inovação (CT&I) é de 2,6% do PIB. Os do Brasil já margearam 1,5%. Hoje não chegam a 1%. “Há 40 anos, Coreia e China estavam atrás do Brasil: olhem como estão hoje”, advertiu a presidente da Academia, Helena Nader.

Seria um truísmo dispensável dizer, como diz a Academia, que para promover progressos sociais “toda e qualquer ação estratégica em termos de políticas públicas (seja na área da saúde, meio ambiente, infraestrutura, agricultura e abastecimento, trabalho e emprego, entre outras) deve ser norteada pelo estado da arte do conhecimento científico”, se o atual governo não fizesse o exato oposto.

A Academia elenca três eixos urgentes: aumentar o porcentual do PIB investido em CT&I para pelo menos 2% em quatro anos; capacitar pesquisadores para chegar a 2 mil por milhão de habitantes em dez anos; e garantir a participação de conselheiros estratégicos de CT&I nos órgãos dos Três Poderes, especialmente no Executivo, para que políticas públicas sejam desenhadas e coordenadas com base em evidências.

O Brasil é abundante em terras, biomas, recursos hídricos, ventos e minérios, e ainda conta com uma expressiva população jovem. A ciência é crucial para tirar proveito econômico desses recursos e ajudar o País a enfrentar grandes desafios globais, como a insegurança alimentar ou as mudanças climáticas, por exemplo, diversificando a bioeconomia e a agropecuária ou mitigando o seu impacto na emissão de gases de efeito estufa.

Tanto maior é o desafio na era digital. A União Europeia e países como China e EUA têm planos ambiciosos para setores como inteligência artificial, semicondutores e robótica, e, se o Brasil não os acompanhar, a distância em relação aos seus padrões socioeconômicos aumentará exponencialmente.

Como nota a Academia, “os impactos da pandemia e a aceleração das mudanças climáticas deixaram evidente que as agendas do futuro deverão ser verdes, digitais, sustentáveis e inclusivas”. O material da ponte para esse futuro tem um nome – capital humano – e a principal ferramenta para construí-la também: ciência.

A batalha pelo moral na Ucrânia

O Estado de S. Paulo

A fadiga da opinião pública ocidental pode ajudar Putin. Mas atrocidades são alerta para riscos da complacência

A guerra na Ucrânia está sendo travada em três fronts: o campo de combate, a economia e a batalha de vontades. Os ucranianos têm vantagem neste último: lutando por sua liberdade e sobrevivência, estão mais motivados. Os outros dois são mais voláteis. A Rússia tem mais poder de fogo e recursos econômicos. Mas essa vantagem é relativa. Tudo depende da resolução dos aliados da Ucrânia, que têm múltiplas vezes mais poderio militar e financeiro.

Na primeira fase da guerra, os aliados mostraram uma extraordinária capacidade de mobilização que galvanizou a resistência ucraniana. O maior risco era que uma belicosidade triunfalista desencadeasse um conflito regional e mesmo global. Agora que o Plano A do presidente russo Vladimir Putin foi pulverizado e ele busca executar seu Plano B, o domínio de Donbas, em uma guerra de atrito, há o risco inverso: de que os aliados mantenham apoio suficiente para que a batalha se prolongue, mas não para que a Rússia seja derrotada, ou, pior, que retirem gradualmente esse apoio forçando a Ucrânia a aceitar os termos de Putin.

Oficialmente, os aliados mantêm a posição inicial: “A Ucrânia deve vencer”, disse sucintamente o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson. Mas os ucranianos estão temerosos de que com o passar do tempo os aliados foquem cada vez mais em suas próprias agruras econômicas.

“Guerras tradicionais geralmente seguem esse curso”, disse o articulista do Financial Times Edward Luce. “As oscilações iniciais de humor entre euforia e desespero são suplantadas pelo fastio. Líderes habilidosos canalizam o desespero em medo, que pode resultar em ação. O tédio é um adversário bem mais obstinado.”

Vencer esse adversário exigirá habilidade redobrada dos líderes aliados. Especialmente os europeus precisam convencer suas populações de que não estão lutando por princípios abstratos, mas por sua própria segurança. Se Putin conquistar seu Plano B, logo voltará ao Plano A e a novas agressões imperialistas.

Na batalha pelos corações e mentes de suas populações, os líderes aliados têm uma arma poderosa nas mãos: o horror causado pelas atrocidades cometidas por Putin. De acordo com a ONU, a sua guerra já causou a morte de quase 5 mil civis, sendo 335 crianças, a maioria por explosivos em áreas povoadas. Mais de 400 instalações hospitalares e educacionais foram destruídas. Mais de 5 milhões de ucranianos fugiram do país e 8 milhões se deslocaram dentro dele. São números assumidamente defasados.

Há um consenso entre os psicólogos de que impactos traumáticos, como a morte de um ente querido, desencadeiam um ciclo de 5 fases: negação, raiva, negociação, depressão e aceitação. Após o choque de 24 de fevereiro, a opinião pública ocidental percorreu esse ciclo. Mas as mortes na Ucrânia continuam a se multiplicar, e são só um prenúncio do que pode vir com uma vitória de Putin.

Além dos recursos militares e econômicos, os líderes aliados precisarão empregar todos os seus recursos de comunicação para manter acesa a chama da indignação e impedir a opinião pública de aceitar o inaceitável. 

Máquina tucana

Folha de S. Paulo

Com cofre cheio em ano eleitoral, Garcia dá mostra de uso opaco de verbas em SP

Na corrida ao Palácio dos Bandeirantes, nenhum candidato dispõe de recursos tão formidáveis como os do governador Rodrigo Garcia (PSDB) no exercício do cargo, que assumiu após a renúncia do correligionário João Doria, em março.

Como outros estados, São Paulo foi beneficiado por um extraordinário aumento de receitas nos últimos dois anos, graças à alta dos combustíveis e das tarifas de energia e ao socorro recebido da União no primeiro ano da pandemia.

Isso permitiu que os governadores chegassem ao período eleitoral com os cofres abarrotados. No fim do ano passado, havia quase R$ 70 bilhões disponíveis no caixa do governo paulista, quantia 58% maior do que a registrada um ano antes.

Administradores prudentes devem gerir a bonança com parcimônia, precavendo-se para ter recursos à mão em caso de piora. Os irresponsáveis farão como Jair Bolsonaro (PL), que gasta tudo o que pode para tentar se reeleger.

Ainda não se sabe com qual figurino Garcia irá se apresentar ao eleitorado, mas surgiram sinais preocupantes nos últimos dias.

Há uma semana, o governador anunciou o congelamento das tarifas de pedágio nas rodovias estaduais, por tempo indeterminado. Para evitar desequilíbrios nos contratos das estradas, o estado pagará indenizações às concessionárias enquanto o congelamento durar.

Divulgado há poucos dias, um relatório do Tribunal de Contas do Estado sobre o exercício do ano passado encontrou indícios de descontrole no uso de verbas reservadas para projetos apadrinhados por aliados do governador.

Em São Paulo, cada deputado estadual tem o direito de apresentar emendas no valor de até R$ 5 milhões durante a discussão do Orçamento anual. Os critérios são isonômicos, e os repasses, obrigatórios, para evitar favorecimentos.

Mas também vigora no estado um mecanismo informal de distribuição de verbas para barganhas com aliados, conhecido como emendas voluntárias, em que não há regras claras nem transparência na prestação de contas.

Segundo o TCE, até julho do ano passado o governo estadual se comprometeu com o repasse de R$ 1,3 bilhão para indicações por esse sistema, que dá preferência a quem se alinhar com o governador.

Questionado pelo órgão de controle, o estado informou ter enviado R$ 308 milhões a municípios do interior do estado e nada declarou sobre o que foi feito com o restante do dinheiro.

Numa disputa eleitoral como a deste ano, que tem tudo para ser acirrada, o controle dessas verbas pode fazer diferença. Que elas possam ser manipulados com tanta informalidade é um escárnio que exigirá atenção redobrada.

Números da fome

Folha de S. Paulo

Insegurança alimentar grave avança no mundo; Brasil soma suas mazelas a processo

O nova edição do relatório "O Estado da Segurança Alimentar e da Nutrição no Mundo", recém-divulgada pela ONU, tem um tom soturno. Constata-se ali que a recuperação econômica em 2021, após o pior momento na pandemia, não deteve a expansão global da fome.

Com o impulso dos impactos da Covid-19, a parcela da população mundial enfrentando insegurança alimentar grave —fome— subiu de 9,3% para 10,9% em 2020. Em vez de cair ou se estabilizar, a cifra foi a 11,7% no ano passado. E, como aponta o documento, ainda estão por serem computados os efeitos da guerra na Ucrânia.

A piora é generalizada, mas os números mais alarmantes, previsivelmente, estão na África, na América Latina e na Ásia. E a desigualdade não é apenas regional.

"Grupos desfavorecidos da população, como mulheres, jovens, trabalhadores de baixa qualificação e empregados no setor informal, foram desproporcionalmente afetados pela pandemia e pelas medidas sanitárias", avalia o relatório das Nações Unidos.

Dito de outro modo, os vulneráveis perderam mais quando a economia parou e recuperaram menos quando as atividades voltaram. Em resumo, as disparidades de renda se agravaram.

O Brasil, claro, não ficaria imune a tal processo —ao qual acrescenta suas mazelas particulares.

Ainda que seus números não se destaquem entre os piores do planeta ou do continente, o país mostra deterioração aguda quando se faz uma comparação de prazo mais longo. Entre 2014 e 2016, 1,9% dos brasileiros passavam fome; no período 2019-21, a proporção subiu a 7,3%, ou 15,4 milhões de pessoas.

O desempenho da economia, que tem sido abaixo de medíocre há quase uma década, decerto explica grande parte da degradação. Mais recentemente, a escalada inflacionária agravou o quadro.

O governo Jair Bolsonaro (PL) deu as costumeiras respostas atabalhoadas à situação. A expansão da proteção social por meio do Auxílio Brasil, necessária, deu-se às pressas e com regras que reduzem a eficiência do benefício. Pior, a elevação inconsequente do gasto público tende a agravar a inflação e prejudicar o crescimento.

A próxima administração terá de aperfeiçoar o programa de renda e, ao mesmo tempo, retomar a agenda de reequilíbrio do Orçamento. A fome exige pressa, mas seu enfrentamento só terá sucesso com boa gestão da economia.

A marca de Bolsonaro no Brasil

O Globo

Será difícil ele resgatar popularidade, mas a agenda conservadora ganhou relevância e despertou reação

O presidente Jair Bolsonaro aposta num festival de benesses liberadas pelo Congresso para recuperar a popularidade e as chances nas eleições de outubro. Na realidade, está difícil. É o que revela a pesquisa “A cara da democracia”, cujos resultados foram publicados na plataforma Pulso, do GLOBO. Mais da metade dos entrevistados considera o governo “ruim” ou “péssimo”. Para 60%, a economia piorou sob Bolsonaro. Para 42%, a corrupção aumentou. Os que se sentem decepcionados passam de 52%, e os que afirmam “não gostar de Bolsonaro de jeito nenhum” são mais de 40%.

Tais números desenham uma escalada íngreme para que ele evite a derrota. Ao mesmo tempo, porém, a pesquisa revela que Bolsonaro deixou marcas profundas na sociedade brasileira. Elas perdurarão ainda que ele deixe o poder. A começar pela expressiva parcela daqueles que perderam a vergonha de se dizer de direita (em torno de 30% — ante 16% que se dizem de esquerda).

O público conservador encontrou em Bolsonaro um veículo para representar ideias que sempre estiveram à margem no debate político. Desde o início do governo, cresceu a parcela dos que se dizem favoráveis à pena de morte (de 39% para 41%), e caiu de 50% para 41% a fração favorável a proibir armas de fogo. A militarização das escolas públicas conta com apoio de quase 58%. Causas antes isoladas no plano político agora estão inextricavelmente associadas ao bolsonarismo.

Em política, porém, como na física, costuma valer a terceira Lei de Newton. A cada ação corresponde uma reação no sentido contrário. Os ataques constantes de Bolsonaro à democracia, a campanha insana contra as urnas eletrônicas, a escolha de inimigos imaginários como o Supremo Tribunal Federal (STF) — tudo isso cobra um preço. Enquanto o conservadorismo deitava raízes em setores da sociedade, a crença institucional se fortaleceu.

É verdade que, como no resto do mundo, menos brasileiros dizem preferir a democracia a qualquer outro regime do que no início do governo (59% ante 65%). Mas o sentimento democrático predomina por ampla margem, e os números demonstram que se aguçou na sociedade um movimento representativo de reação aos ataques promovidos pelo bolsonarismo.

A parcela daqueles que confiam nas Forças Armadas caiu de 75% para 69% desde o início do governo, ao passo que os que confiam no STF foram de 55% a 60%. A confiança na apuração das eleições e nas urnas eletrônicas saltou de 53% para 69%, a despeito da campanha mentirosa do bolsonarismo. E a fração dos que confiam em partidos políticos subiu de 28% para 46%.

Num país complexo e plural como o Brasil, causas de matriz liberal conquistaram maior apoio, sobretudo quando dizem respeito a questões individuais. A parcela favorável ao casamento gay cresceu de 45% para 49%; a favorável à adoção de crianças por casais gays, de 46% para 56%. O apoio às cotas raciais subiu de 39% a 43%, enquanto a aprovação à redução da maioridade penal caiu de 77% a 70%.

Seria ingênuo crer que o Brasil sairia o mesmo do governo Bolsonaro. Mais ingênuo ainda, contudo, seria acreditar que a transformação se daria num sentido apenas. No melhor cenário, a democracia sairá fortalecida e robustecida por ter resistido aos ataques — e ainda mais representativa das diferentes ideias e sentimentos presentes num país com tanta diversidade.

Chilenos deveriam recusar a nova Constituição em plebiscito

O Globo

Apesar de texto ter descartado ideias mais absurdas, adotá-lo representaria retrocesso para país e América Latina

Farão bem os chilenos se recusarem a nova Constituição em plebiscito marcado para o dia 4 de setembro. É certo que a proposta não confirmou os piores temores. Os constituintes seguiram as regras, evitando um vale-tudo. Embora os riscos de uma balbúrdia generalizada fossem baixos, é reconfortante ver que a Constituinte chilena não sucumbiu a uma deterioração seguindo um estilo venezuelano. Ainda assim, o resultado final foi ruim, e adotá-lo seria um retrocesso para o país e para a América Latina.

Há sinais de certo bom senso, como no caso da manutenção da independência do Banco Central. Ideias desvairadas, como a nacionalização dos recursos naturais, foram descartadas. Os constituintes também acertaram em outros pontos. A ampliação do poder das regiões seria bem-vinda.

Mas uma Constituição não pode ser apenas bem-intencionada. Deve ser realista. O texto diz que todos os chilenos têm o direito de ser assistidos pelo Estado do nascimento à morte, sem especificar o que isso quer dizer, quanto custará ou de onde sairá o dinheiro. Sindicatos passariam a ter o direito de chamar uma greve por qualquer motivo, e todas as formas de “precarização” laboral estariam proibidas, tornando demissões mais caras e minando a competitividade do país. Proprietários de imóveis expropriados pelo Estado passariam a receber um “preço justo” definido de modo abstrato, não o valor de mercado concreto.

Outra péssima proposta travestida de “democrática” prevê um novo conselho com poderes sobre nomeações no Judiciário, modificando as regras que atribuem a missão ao presidente, ao Senado e às cortes superiores. Um artigo estabelece o conceito de “pluralismo jurídico”. Por ele, o Estado reconhece os sistemas jurídicos dos povos indígenas, criando uma fonte potencial de atrito com as instituições responsáveis pelo cumprimento da lei.

A votação que escolheu os constituintes se deu em maio de 2021, depois da onda de protestos iniciada em 2019. Uma constituição para substituir a adotada no tempo do ditador Augusto Pinochet foi a solução institucional encontrada pelo então presidente, Sebastián Piñera, para acalmar o país. O voto não era obrigatório, por isso só 43% dos eleitores compareceram. Ainda sob o calor das manifestações de rua, independentes e extrema esquerda ficaram com representação desproporcional.

Gabriel Boric, o presidente de esquerda eleito neste ano, quer a aprovação do novo texto. Partidos tradicionais, como a Democracia Cristã, também decidiram apoiá-lo. Mas pesquisas de opinião revelam que mais de 50% da população o rechaça. O Chile é o maior sucesso econômico da América Latina das últimas décadas. A nova Constituição, se aprovada, colocaria em xeque o ambiente favorável aos negócios e a perspectiva concreta de ser o primeiro país do continente a se tornar plenamente desenvolvido. Como o plebiscito de setembro será obrigatório, a maioria dos chilenos poderá chegar à conclusão de que, comparada à nova proposta, a Constituição atual não é tão ruim assim.

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