O Estado de S. Paulo
ONU confirma milhões de pessoas famintas ou
sem segurança alimentar num país capaz de fornecer comida a multidões em todo o
mundo.
O presidente Jair Bolsonaro talvez nem
precise estraçalhar a Constituição, arrebentar o teto de gastos e distribuir
bilhões em bondades eleitorais para conseguir a reeleição. Se vitorioso, talvez
nem valha a pena discutir a segurança das urnas eletrônicas e estimular a
reprodução, em Brasília, da invasão do Capitólio. Milhões de votos serão obtidos,
quase certamente, se ele explorar de forma eficiente algumas boas notícias –
boas, pelo menos, de uma perspectiva bolsonariana. Exemplo: 61,3 milhões de
pessoas enfrentaram insegurança alimentar, no País, nos últimos anos. O
contingente inclui 15,4 milhões em condição de insegurança grave, também
conhecida como fome. Esses números, publicados pela Organização das Nações
Unidas (ONU), são bem menos sombrios que aqueles apontados, há pouco tempo, em
pesquisa de entidades não oficiais – 33 milhões de famintos e 125 milhões de
indivíduos com dificuldades para comer.
Afinal, poderiam perguntar os marqueteiros de Bolsonaro, que são 61,3 milhões sem garantia de comida, cerca de 30% da população, quando o País é uma das 12 maiores economias e sua agropecuária alimenta multidões em vários continentes? A realidade, portanto, é muito mais bonita do que dizem os críticos de sua excelência. A garantia é da ONU e o relatório descreve a situação dos brasileiros entre 2019 e 2021.
Além disso, as condições de alimentação
pioraram na maior parte do mundo, nos últimos anos. Por que não poderiam piorar
também no Brasil? Talvez porque o País, como disse há pouco tempo, em
Washington, o presidente Jair Bolsonaro, produza o suficiente para sustentar 1
bilhão de pessoas. A última estimativa da safra de grãos confirma a pujança do
campo brasileiro. Esse levantamento indicou a produção, na temporada 2021/2022,
de 272,5 milhões de toneladas, volume 6,7% maior que o do período anterior.
Esse total inclui 3,1 milhões de toneladas
de feijão, com aumento de 7,5% em relação ao período 2020/2021. A produção de
arroz, afetada por problemas climáticos, ficou em 10,8 milhões de toneladas.
Apesar da redução de 8,2%, a oferta é mais que suficiente e deve sobrar um
estoque de passagem de 2,2 milhões de toneladas. Mas esses são apenas os grãos.
Muito mais comida, de todos os tipos, é produzida no País e oferecida aos
consumidores, todos os dias, no varejo.
Se há tanta comida, por que tantas pessoas,
cerca de 60 milhões, sofrem a tal insegurança alimentar? Talvez por
perversidade, agravada pelo desejo de macular a imagem de um chefe de governo
patriota e temente a Deus. Bolsonaro ouve o Hino Nacional com a mão direita
sobre o coração e reza com os olhos piedosa e humildemente abaixados. Há gente
capaz de maldades incríveis, até de passar fome com a família, para prejudicar
um desafeto político.
Embora injustiçado, esse presidente, é
preciso reconhecer, facilita a missão de seus críticos, mesmo dos mais
perversos. Não há como desconhecer a participação presidencial na formação de
um quadro facilmente explorável pelos maledicentes. Desemprego, desalento e
condições precárias de trabalho propiciaram no trimestre móvel encerrado em
maio uma taxa de subutilização de 21,8% da população economicamente ativa. Essa
taxa correspondeu a 25,4 milhões de pessoas. No trimestre anterior, 27,3
milhões estavam nessa condição, mas a mudança está longe de indicar um surto de
prosperidade.
Essa obra, é justo acrescentar, tem
estimulado o empreendedorismo. Também no trimestre de março a maio 25,7 milhões
trabalharam por conta própria. Mas foi uma forma, dirão os inconformados, de
tentar sobreviver num mercado com escassas oportunidades de emprego e de
remuneração.
Mas o presidente ainda enriquece esse
quadro, quase sempre com ajuda do Centrão, promovendo desperdício, embutindo
bilhões num orçamento secreto, ameaçando o equilíbrio fiscal, engordando a
dívida pública e deixando bombas para o próximo governo. Gastança, calote em
precatórios e violação de normas financeiras criam insegurança, desarranjam os
mercados, sobrevalorizam o dólar e impulsionam a inflação.
O resultado geral – baixo crescimento,
inflação desatada e péssimas condições no mercado de trabalho – é mais
empobrecimento. A multiplicação das pessoas sujeitas à insegurança alimentar e
até a fome é consequência nada surpreendente dessas políticas. E ainda
falta cuidar de alguns detalhes. Não adianta aumentar o valor do Auxílio
Brasil, se a administração é incapaz de absorver a fila dos candidatos e de
acomodar os gastos adicionais numa boa programação.
O presidente sempre poderá, enfim, explorar a diferença entre os dados da ONU e os da pesquisa divulgada no primeiro semestre. Com algum talento, será possível valorizar o contraste. É bem melhor falar de 61,3 milhões de pessoas sujeitas a insegurança alimentar, incluídos 15,4 milhões de famintas, do que levar em conta 33 milhões com fome e 125 milhões em dificuldades. Haverá apoiadores para aplaudir e, se faltarem votos para a reeleição, não faltará, com ou sem armas, quem se disponha a contestar as urnas eletrônicas.
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