sábado, 13 de agosto de 2022

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Editoriais / Opiniões

Pacotaço em ação

Folha de S. Paulo

Intervenção econômica recorde em ano eleitoral dá nova configuração à disputa

Neste agosto, o governo Jair Bolsonaro (PL) gastará R$ 12,1 bilhões com o novo Auxílio Brasil de R$ 600 —um salto repentino ante os R$ 7,3 bilhões mensais até então desembolsados pelo programa. No ano eleitoral de 2018, o Bolsa Família gastava não mais de R$ 3,3 bilhões ao mês, em valores corrigidos.

Conforme as estimativas oficiais, o valor ampliado chegará a 20,2 milhões de famílias. Segundo a mais recente pesquisa Datafolha, 1 de cada 4 brasileiros aptos a votar recebe ou mora com alguém que recebe o benefício assistencial.

Também em agosto, os índices de preços ao consumidor devem mostrar nova deflação, repetindo, ainda que em menor intensidade, o que ocorreu em julho. A guinada no custo de vida foi obtida por meio de um corte brutal de impostos sobre combustíveis e energia elétrica, de caráter, em princípio ao menos, temporário.

Na quinta-feira (11), enquanto Bolsonaro minimizava os atos em favor da democracia que reuniram os mais diferentes setores da sociedade, a Petrobras —que passou por duas trocas de comando somente neste ano— anunciava uma queda do preço do diesel, aproveitando-se também de um momento mais benigno no mercado global.

A percepção de melhora material é favorecida, ademais, pela queda consistente do desemprego, que independe de ações de governo e é impulsionada pela recuperação de setores fundamentais como serviços e construção civil.

Difícil imaginar que o pacote descomunal de medidas lançado a três meses do pleito presidencial não vá ter impacto nas pesquisas de intenção de voto. Trata-se, decerto, da maior intervenção econômica num ano eleitoral desde o Plano Real, lançado em julho de 1994.

A comparação, porém, termina por aí. À diferença do programa que controlou a inflação há quase três décadas, o conjunto de providências ora em vigor —que inclui até benesses para caminhoneiros e taxistas— foi instituído às pressas e sem planejamento. Ninguém sabe se e como tudo será mantido depois de fechadas as urnas.

De mais imediato, o pacotaço eleitoreiro dá nova configuração à corrida ao Planalto às vésperas do início oficial da campanha, marcado para terça-feira (16). Bolsonaro, tudo indica, vai temperar sua pregação golpista com propaganda dos feitos econômicos, e a intensidade da primeira dependerá dos resultados dos últimos.

Seu principal adversário, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), se verá compelido a defender os novos benefícios e, ao mesmo tempo, explicar como pretende reequilibrar as finanças públicas em um eventual governo. Nesse cenário, a margem para um debate mais qualificado se mostra estreita.

Feitiço e feiticeiro

Folha de S. Paulo

Em alerta a Bolsonaro, cerco a Trump se fecha, e republicano diz ser vítima

Quase dois anos após perder a eleição presidencial para Joe Biden, Donald Trump continua no centro do noticiário norte-americano com seu contínuo embate contra as instituições da democracia líder do mundo ocidental.

O capítulo da vez adiciona dramaticidade ao enredo por entrar em uma seara particularmente cara em Washington: a do manejo de altos segredos de Estado.

Na segunda-feira (8), em um ato inédito, o FBI adentrou a residência de Trump em Mar-a-Lago, palco da infame recepção ao maior seguidor do americano no hemisfério sul, Jair Bolsonaro, em 2020.

A batida foi uma decisão pessoal, altamente perigosa do ponto de vista político, do secretário de Justiça dos EUA, Merrick Garland. Ele disse estar atrás de provas e evidências de um ato criminoso.

Segundo relatos vazados à imprensa americana, este seria a subtração de documentos sensíveis da Casa Branca por Trump ao deixar o cargo. Segredos nucleares, sugeriu o jornal Washington Post, o que foi negado pelo republicano.

Trump faz o que sabe melhor: tergiversar acusando adversários de perseguição. Ao mesmo tempo, invocou a Constituição para calar-se e não produzir provas contra si.

Depois do inquérito congressual sobre a invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021 por apoiadores de Trump, inconformados com a sessão de confirmação do resultado eleitoral naquele dia, o cerco se fecha mais sobre o ex-presidente.

Merrick arrisca ser acusado de partidário, ainda que não haja evidências de que Biden tenha ordenado a ação. É do jogo. Trump prova da poção na qual investiu muita energia quando estava no poder.

Ao longo de seus quatro conturbados anos, ele demitiu autoridades do arcabouço de controle do país, como no próprio FBI, quando as considerava desleais.

A apuração do 6 de janeiro produziu provas abundantes de que isso chegou ao paroxismo e foi sendo estancado —a resistência institucional passou pela cúpula militar.

Fardados, investigadores e um presidente que questiona as urnas. Qualquer semelhança com o Brasil não é mera coincidência, dado que Bolsonaro copia o manual de sedição trumpista, contando talvez com alguma tibieza do sistema de pesos e contrapesos local.

Seus integrantes farão bem em mirar os EUA, provando estar à altura da reação da sociedade ante a escalada golpista, expressa nas cartas democráticas desta semana.

Um desserviço à democracia

O Estado de S. Paulo

Ao deixarem de confirmar presença em debate promovido pelo consórcio de imprensa, Lula e Bolsonaro menosprezam não só a imprensa, que sempre hostilizaram, mas o eleitor

O consórcio formado por Estadão, Folha de S.Paulo, UOL, O Globo, Extra, G1 e Valor para realizar no dia 14 de setembro um debate em pool entre candidatos à Presidência da República resolveu cancelar o encontro, que ocorreria em São Paulo. A decisão foi motivada pelo fato de que tanto o petista Lula da Silva como o presidente Jair Bolsonaro, os atuais líderes nas pesquisas de intenção de voto, não confirmaram presença nem se dignaram a informar suas razões para a ausência no prazo acordado com suas assessorias.

Fugindo do debate, Lula e Bolsonaro não se limitaram a ignorar a imprensa profissional e independente, contra a qual, cada um à sua maneira, desde sempre hostilizam; o que fizeram foi desmerecer a sociedade. Eles prestaram um grande desserviço ao debate público e autorizaram os eleitores não fanatizados a duvidar de suas supostas credenciais democráticas. Democratas não receiam expor o que pensam a ninguém, em nenhuma circunstância.

Os debates, a rigor, deveriam ser o ápice de uma campanha eleitoral. De tão importantes, alguns são divisores de água nos rumos de uma eleição. Tome-se o exemplo dos Estados Unidos, bastião da democracia. Ali, é inimaginável que um candidato à presidência se furte a debater com seus adversários – e isso desde as prévias partidárias. Na maior democracia das Américas, os debates são eventos que param o país e mobilizam os cidadãos por semanas.

Lula e Bolsonaro podem não ter revelado o motivo por trás desse desinteresse em debater publicamente suas ideias e planos para o Brasil que pretendem governar, supondo que ambos os tenham, mas decerto um e outro avaliam que só teriam a perder ao participar de um evento público em um ambiente que não conseguiriam controlar. Diante de adversários e, sobretudo, de jornalistas, cuja profissão é justamente a de fazer perguntas incômodas a quem exerce ou pretende exercer o poder, seria extremamente difícil para os dois demagogos sustentarem as fábulas que inventaram para seduzir eleitores e mobilizar militantes.

Em um debate livre e democrático, Lula fatalmente seria obrigado a prestar contas da subversão da democracia representativa empreendida pelo PT por meio dos esquemas do mensalão e do petrolão. O petista seria instado a falar sobre corrupção e outros temas desagradáveis que pretende manter escondidos, principalmente dos eleitores mais jovens. Lula seria ainda confrontado com o absoluto desastre que foi o governo de sua sucessora, Dilma Rousseff, muito mais do que uma indicada, uma escolha pessoal do ex-presidente para governar o Brasil. Deu no que deu.

Bolsonaro, por sua vez, seria questionado pela tragédia moral, social, ambiental, política, econômica e sanitária que é o seu governo, se assim pode ser chamado esse amontoado de ações descoordenadas e a distâncias abissais do melhor interesse público. Sob Bolsonaro, o País viu o Ministério do Meio Ambiente virar cinzas; o Ministério da Saúde virar um balcão de negócios; o Ministério da Educação virar casamata de uma “guerra cultural” que só existe nos delírios persecutórios do presidente e de seus apoiadores mais alucinados. Diante de uma imprensa altiva e compromissada com a sociedade à qual serve, seguramente, Bolsonaro teria de falar de corrupção, golpismo, “orçamento secreto” e rachadinhas, além de explicar seu comportamento debochado ante a mortandade da covid-19.

Ao organizar um debate em pool – por sugestão do próprio Lula da Silva –, os veículos de imprensa fizeram sua parte no esforço coletivo para fortalecer a democracia no País. O interesse público foi sobreposto aos interesses empresariais, pois a exclusividade é um dos principais valores para as empresas jornalísticas. Mas o caráter concorrencial dos veículos de imprensa perde relevância quando há um imperativo – seja o de acompanhar a marcha tétrica da pandemia de covid-19, seja o de oferecer à sociedade condições de conhecer melhor o que pensam aqueles que pretendem governá-la. Lamentavelmente, Lula e Bolsonaro fizeram o movimento diametralmente oposto: colocaram os seus próprios interesses em primeiro lugar.

Púlpito não é palanque eleitoral

O Estado de S. Paulo

O Estado brasileiro é laico. A religião não é instrumento para captura de voto, como tenta fazer o bolsonarismo. A Lei das Eleições proíbe o proselitismo eleitoral em templo religioso

Dentre outros muitos avanços institucionais, a proclamação da República assegurou a separação entre a Igreja Católica e o Estado brasileiro, que passou a não ter uma religião oficial. A laicidade estatal é um tema especialmente caro às garantias e liberdades fundamentais. Ninguém deve ser coagido a ter uma religião, como também ninguém deve ser impedido de exercê-la. No Estado Democrático de Direito, o poder público não tem competência sobre questões religiosas, e o exercício da cidadania não é limitado ou potencializado em razão da filiação ou não a alguma denominação religiosa.

Ao tratar da organização do Estado, a Constituição de 1988 previu três vedações fundamentais, sendo a primeira uma proteção da laicidade estatal e da liberdade religiosa. “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”, dispõe o art. 19, I do texto constitucional.

A liberdade religiosa é uma garantia fundamental. Em deferência a essa liberdade, as igrejas recebem um tratamento jurídico diferenciado. Por exemplo, a Constituição de 1988 veda a criação de impostos sobre os templos, com o objetivo de assegurar e proteger o livre exercício da prática religiosa.

No entanto, nos últimos anos, tem-se observado um uso abusivo do estatuto especial das igrejas para fazer proselitismo eleitoral, o que, além de constituir uma manipulação de liberdades fundamentais, é vedado pela legislação eleitoral. A Lei das Eleições (Lei 9.504/97) proíbe a veiculação de propaganda eleitoral em templos religiosos. Ainda que o fenômeno seja anterior e não se restrinja ao bolsonarismo, o uso do púlpito para fins eleitorais pela família Bolsonaro é especialmente escancarado. No domingo passado, a primeira-dama Michelle Bolsonaro mostrou que, na tentativa de angariar votos, não há limites para a confusão entre política e religião. Em culto evangélico na Igreja Batista Lagoinha em Belo Horizonte, Michelle Bolsonaro exaltou seu marido como enviado de Deus na guerra do bem contra o mal.

A proibição de proselitismo eleitoral em templos religiosos é expressão de um princípio fundamental do regime democrático: a igualdade de condições entre os candidatos. O regime jurídico especial das igrejas, que existe em função da liberdade religiosa, não pode ser usado para favorecer o candidato político de uma liderança religiosa. O púlpito não é palanque eleitoral.

Não há como tapar o sol com peneira. As lideranças religiosas exercem uma autoridade sobre seus fiéis, o que pode ter consequências sobre a liberdade política. Por isso, a Lei 9.504/97 veda o proselitismo eleitoral em templos religiosos. Como lembrou o ministro Edson Fachin, em julgamento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em 2020, “a imposição de limites às atividades eclesiásticas representa uma medida necessária à proteção da liberdade de voto e da própria legitimidade do processo eleitoral, dada a ascendência incorporada pelos expoentes das igrejas em setores específicos da comunidade”. Por isso, segue o ministro, “dita interpretação finca pé na necessidade de impedir que qualquer força política possa coagir moral ou espiritualmente os cidadãos, em ordem a garantir a plena liberdade de consciência dos protagonistas do pleito”.

A liberdade política é também uma garantia fundamental. Por isso, entre outras restrições, o Código Eleitoral proíbe propaganda eleitoral destinada “a criar, artificialmente, na opinião pública, estados mentais, emocionais ou passionais”. Prevê ainda que “a interferência do poder econômico e o desvio ou abuso do poder de autoridade, em desfavor da liberdade do voto, serão coibidos e punidos”.

Na República, todos estão abaixo da lei. Todos os candidatos, também Jair Bolsonaro, devem respeitar a Constituição e a legislação eleitoral. Religião não é instrumento para captura de voto.

A diáspora bolivariana

O Estado de S. Paulo

Os refugiados venezuelanos precisam de melhores políticas de integração na AL e recursos da comunidade global

Poucos indicadores medem melhor a prosperidade de um país que o afluxo de estrangeiros que o escolheram para viver, trabalhar e sustentar suas famílias. Inversamente, não há sintoma maior da desgraça que o volume de cidadãos que fogem de seu país.

Ao longo de boa parte do século passado a Venezuela despertou inveja na América Latina (AL). Os espanhóis, italianos, alemães e outros europeus e asiáticos acolhidos por um dos melhores programas de refugiados do mundo ajudaram a forjar uma das sociedades mais vibrantes do pós-guerra. Nas décadas de 70 e 80, a Venezuela, rica em petróleo, era educada e gozava de uma razoável tradição democrática. 

O “reverso da fortuna em escala massiva”, como descreveu a revista Newsweek, começou com a revolução bolivariana, em 1999, primeiro com a fuga das elites, depois das classes médias e baixas. Entre 2012 e 2015, a taxa de emigração cresceu 2.889%. O total de refugiados saltou de 1,8 milhão em 2015 para 6 milhões hoje, o equivalente a mais de 20% da população. É a maior crise de refugiados da América Latina, a caminho de superar a maior do mundo, a da Síria.

São pessoas fugindo de violência, fome, repressão e doenças. Entre 1999 e 2014 a taxa de assassinatos por 100 mil habitantes saltou de 25 para 82, então a maior do mundo. A taxa de sequestros é a maior da região. Só em 2018, de 7,5 mil a 23 mil mortes foram causadas por “resistência à autoridade” – a maioria, execuções pelas Fuerzas de Acciones Especiales, a Gestapo bolivariana. Segundo o FMI, a economia encolheu 45% entre 2013 e 2018, quando a inflação bateu 1,35 milhão por cento; a população pobre chegou a 90%; a carência dos itens da cesta básica nos mercados atingiu 84%; e a de medicamentos nos hospitais, 85%.

Em 2022, conforme reportagem do Estadão, o número de venezuelanos cruzando o Estreito de Darién, uma das rotas mais perigosas do mundo, saltou 900%: quase 30 mil enfrentaram os perigos da selva e ameaças de roubo e estupro, entre “corpos, violências e exaustão”, como disse um deles.

A regularização é dificultada pelo status dos imigrantes. A ONU os classifica como “migrantes econômicos”, mas organizações de direitos humanos alegam que se enquadram na definição de “refugiados” das Convenções de Genebra e Cartagena.

A esmagadora maioria (5 milhões) se refugiou na América Latina. O Grupo de Lima, com 14 países, incluindo o Brasil, foi a primeira iniciativa de uma divisão de responsabilidades regional, mas, exceto por Colômbia e Peru, os demais, seja por motivações ideológicas ou problemas domésticos, não se engajaram em esforços coerentes.

Em 2022, estima-se que os venezuelanos no Brasil serão mais de 330 mil. Além de políticas de inserção no mercado e assistência com documentação, a integração dos jovens dependerá de melhorias nas capacidades escolares e facilitação da validação de diplomas.

A crise há muito deixou de ser uma questão regional, mas está desesperadamente subfinanciada em comparação com tragédias similares na Síria, Mianmar ou Sudão. A comunidade global ainda deve uma resposta proporcional às dimensões da catástrofe venezuelana.

Emenda do relator é maior chaga no Orçamento de 2023

O Globo

Dispositivo usado para comprar apoio político persiste como um dos legados mais nefastos do governo Bolsonaro

O presidente Jair Bolsonaro sancionou nesta semana a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), a base para o Orçamento de 2023. Vetou diversos dispositivos do texto aprovado pelo Congresso, mas manteve a maior distorção implementada em seu governo: as famigeradas emendas do relator, também conhecidas pela sigla RP9, mecanismo de compra de apoio político no Congresso popularmente chamado de “orçamento secreto”. Trata-se de uma excrescência que entrega um poder descomunal de alocar gastos nas mãos do comando do Congresso e não encontra paralelo em nenhuma democracia civilizada.

A atual administração ressuscitou esse péssimo instrumento de alocação de recursos públicos, conhecido pelo escândalo de corrupção dos Anões do Orçamento nos anos 1990. As emendas do relator somaram, em 2020 e 2021, R$ 38,1 bilhões, mais da metade do total das emendas parlamentares no período.

Ao contrário das emendas individuais ou de bancada — a que todos os congressistas têm direito e que estão sujeitas a mecanismos mais razoáveis de transparência e controle —, as do relator dependem exclusivamente da vontade do grupo que está no poder no Parlamento. Neste ano deverão ser gastos mais R$ 16,5 bilhões. Para 2023, Bolsonaro manteve o valor mínimo de R$ 19,4 bilhões estipulado na LDO. Seria dinheiro suficiente para garantir quase metade do aumento de R$ 200 no Auxílio Brasil ou para financiar necessidades urgentes da população.

Até agora, porém, essa dinheirama tem sido gasta sem nenhum critério técnico nem conexão com as prioridades nacionais. Desde que ressurgiram as emendas, as decisões são tomadas a partir de interesses paroquiais. Ergue-se uma ponte aqui, põe-se um asfalto ali, constrói-se um posto de saúde acolá — desde que o deputado cuja base é beneficiada continue a votar com o governo. Mesmo após determinação do Supremo Tribunal Federal para a divulgação dos beneficiados, a transparência deixa a desejar.

Se o problema fosse apenas a falta de planejamento, já seria uma tragédia num país com tanta necessidade de investimento público e tão poucos recursos. Mas é ainda pior. As portas para a corrupção estão abertas. Indícios de irregularidades não faltam, em especial na Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), ligada ao Ministério do Desenvolvimento Regional e usada por líderes do Centrão para distribuir verbas a políticos próximos.

Ao sancionar a LDO, Bolsonaro vetou um dispositivo que poderia diminuir o poder do Congresso. O texto dava ao senador Marcelo Castro (MDB-PI), relator do Orçamento, e ao deputado Celso Sabino (União Brasil-PA), presidente da Comissão Mista de Orçamento, a prerrogativa de indicar onde e como os recursos de 2023 serão usados. Ao barrar esse trecho, Bolsonaro criou um vácuo sobre as regras de operação. Cogita-se até que o poder de decisão poderá voltar ao Executivo.

Tudo, porém, pode não passar de jogo de cena. O veto, como todos os demais, será examinado pelo Congresso, onde os parlamentares interessados tentarão revertê-lo (provavelmente com apoio da própria base do governo). Independentemente do resultado, uma coisa é certa: a chaga do orçamento secreto persistirá no próximo governo como um dos legados mais nefastos da gestão Bolsonaro.

Operação do FBI em mansão de Trump desperta temor de violência

O Globo

Num país em que um lado não reconhece a legitimidade do outro, democracia volta a ser testada

Os brasileiros preocupados com os rumos da democracia fazem bem em seguir de perto o que acontece nos Estados Unidos, onde o presidente Jair Bolsonaro busca inspiração para sua estratégia de contestar o sistema eleitoral. Depois de deixar o poder esperneando — contra todas as evidências — que a eleição de Joe Biden fora roubada, o ex-presidente Donald Trump se tornou alvo de pelo menos três processos na Justiça, além de uma comissão parlamentar na Câmara controlada por democratas. A investigação mais avançada desencadeou na segunda-feira uma operação de busca e apreensão do FBI em Mar-a-Lago, complexo na Flórida que reúne sua mansão e um resort turístico.

De acordo com informações fornecidas por Merrick Garland, o procurador-geral e secretário de Justiça que aprovou a operação inédita na casa de um ex-presidente, o objetivo era verificar se Trump havia trazido da Casa Branca material secreto sobre programas de alta sensibilidade no governo. Antes da ação dos federais, Trump foi alvo de uma intimação para devolver os documentos — que ignorou.

Democratas se regozijaram por Trump enfim começar a pagar o preço dos desmandos que cometeu enquanto estava no poder. Ao mesmo tempo, a ação do FBI serviu de pretexto para inflamar as falanges radicais trumpistas e imediatamente reuniu em torno do ex-presidente republicanos que começavam a se afastar dele. Mesmo que os indícios de delitos sejam abundantes, a decisão de Garland não pode ser separada de seu aspecto político, francamente favorável a Trump. Agora, ele pode posar de vítima de arbítrio enquanto prepara sua nova candidatura à Presidência em 2024.

Embora a Casa Branca negue, Trump está convencido de que Biden determinou a ação na Flórida. Provavelmente porque teria feito isso se estivesse no lugar dele. O FBI dos sonhos de Trump não é muito diferente da Polícia Federal dos sonhos de Bolsonaro: uma corporação usada para perseguir inimigos políticos. Logo no início do mandato, Trump demitiu o diretor do FBI, James Comey, por não garantir lealdade pessoal. O substituto de Comey, Christopher Wray, também frustrou Trump e seus filhos.

Não se sabe ainda o que os federais descobriram em Mar-a-Lago, nem se isso justificará o enorme custo político da operação. Sabe-se apenas que, como a invasão do Capitólio por hordas insufladas por Trump, a operação do FBI impõe mais um teste às instituições da democracia americana. Num país polarizado, em que um lado não reconhece a legitimidade do outro, o temor de atos violentos se tornou mais plausível. Um trumpista desvairado atacou uma base do FBI e foi morto. A expressão “guerra civil”, usada por generais no ano passado para se referir à divisão interna nas Forças Armadas diante da possibilidade de retorno de Trump ao poder, voltou a ser citada com frequência em artigos e comentários. Diante dos fatos, não é um cenário que possa ser descartado.

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