O Estado de S. Paulo
Quem atentamente observar a estrutura
política brasileira logo concluirá que atingimos a quadratura do círculo
Sempre temo aborrecer meus leitores, e não
é para menos, pois tenho cansativamente martelado três teclas: a estagnação
econômica, cujos efeitos de médio prazo nunca aparecem no debate político; o
imperativo de uma reforma política, sem a qual não iremos a parte alguma; e a
necessidade de defender a democracia contra certas tendências autocráticas
recentes, esforço esse que, felizmente, agora apareceu, e com o devido vigor.
O que me leva a retomar hoje esses temas é evidentemente a campanha eleitoral. Outubro está logo ali à frente. Ouviremos alguma novidade ou só mais do mesmo? Os dois candidatos que lideram as pesquisas e outros que possam subir têm consciência do que nos espera se permanecermos neste marasmo? Sabem que o mundo inteiro crescerá menos e terá inflação mais alta nos próximos dois anos? Percebem que estamos aprisionados na “armadilha do baixo crescimento”, que condenará uma geração inteira à mesma mediocridade, se não for superada o quanto antes?
Estou ciente de que o leitor está cansado
de indagações; quer respostas. Mas a mim cabe perguntar se algum dos candidatos
gastou ou pretende gastar pelo menos uma noite estudando os problemas mais
graves que nos afligem. Tenho de perguntar porque, como reza o ditado, de onde
menos se espera é que não sai nada mesmo. O Congresso, por exemplo, brindou-nos
durante o mês de julho com duas pérolas: o “estado de emergência”, que a
Constituição desconhece, a fim de turbinar com mais R$ 41 bilhões a campanha do
sr. Bolsonaro; e o “orçamento secreto”, este obviamente inútil para a
governabilidade, mas notável como contribuição à comicidade nacional.
Faço-lhes uma confissão. Foi quase por
acidente que resolvi repetir hoje provocações que venho fazendo já há algum
tempo. Espiando meio a esmo minha estante, detive-me no livro Preparing
for the Twenty-First Century (Preparando-se para o século 21), do
economista americano Paul Kennedy. Trata-se de um abrangente estudo sobre as
grandes mudanças que estão transformando o mundo, que certamente trarão coisas
boas, mas também graves ameaças, sobretudo para os países mais vulneráveis.
Detalhe: o livro foi publicado em 1993. Isso mesmo: 1993! Vinte e nove anos
antes da música cacofônica que, salvo melhor juízo, seremos forçados a ouvir
nos próximos dois meses.
Nas três ou quatro curtas passagens que
dedica à América Latina, Paul Kennedy revela ser uma alma caridosa. Ao
mencionar o Brasil e a Argentina (página 206), por exemplo, ele escreve que um
obstáculo à recuperação econômica é o precário (“unimpressive”) desempenho do
sistema educacional. “Isso não se deve a uma falta de escolas e universidades,
como em certas partes da África. Muitos países latino-americanos têm amplos
sistemas de educação pública, dezenas de universidades e altas taxas de
alfabetização. O Brasil, por exemplo, tem 68 universidades; a Argentina, 41. O
problema real são o descaso e a falta de investimento” (esta, mais na
Argentina). Esse trecho permite-nos cogitar que não foi propriamente uma
caridade de alma o que levou Kennedy a fazer tal avaliação, e sim o fato de o
haver escrito quase 30 anos atrás. Realmente, ele não poderia ter antevisto
para que serviria o prédio do Ministério da Educação no governo Bolsonaro, no
qual várias coisas parecem ter acontecido, menos políticas educacionais sérias.
Serei breve no tocante à reforma política,
pois a esta altura ninguém supõe que um milagre dessa ordem possa acontecer num
governo notoriamente populista – como será o de Lula ou o de Bolsonaro, se o
favoritismo deles nas pesquisas se confirmar. O que podemos afirmar com certeza
é que algumas pérolas serão servidas aos jornalistas, como todo ano acontece.
Outro dia, o deputado Arthur Lira, presidente da Câmara, referiu-se a um tema
sobre o qual deve ter meditado por anos a fio: as excelências do
“semipresidencialismo” francês. Fosse eu uma alma malévola, insinuaria que a
inclinação gaulesa de Sua Excelência deve ser o “semi”, pois é certo que nós,
brasileiros, somos meio aristotélicos, sempre achamos que a virtude, o
equilíbrio, a moderação, enfim, todas as coisas boas devem ser procuradas no
meio.
Quem observar atentamente a estrutura
política brasileira logo concluirá que atingimos a quadratura do círculo. No
que concerne ao Executivo, parece que consagramos ad aeternum nossa
teratológica combinação do presidencialismo com o populismo. São irmãos
siameses, amarrados um ao outro por uma crença deveras infantil: a de que um
Executivo unipessoal e crescentemente autocrático imprime consistência e
legitimidade ao Estado. Com sua recente descoberta não-constitucional do “estado
de emergência”, o Senado decidiu que transferências de renda não precisam ter
limite e que não há mal algum em violar as regras do jogo eleitoral às vésperas
de um pleito presidencial. Fugindo um pouco ao seu estilo, o senador José Serra
se referiu a essa histórica decisão como uma prova de que, finalmente, o Senado
se dera conta de que existe fome no Brasil.
*Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências. Seu último livro é ‘Imagens da virtude e do poder’ (Editora Desconcertos)
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