sábado, 13 de agosto de 2022

Oscar Vilhena Vieira* - Estado de Direito sempre!

Folha de S. Paulo

Nunca é demais lembrar que fora da lei só há a barbárie

Como explicar a união de empresários, sindicalistas e movimentos sociais em torno de uma ideia tão abstrata como a de "Estado de Direito"? Entre os inúmeros ideais políticos —como democracia, liberdade ou igualdade— que historicamente mobilizam milhões de pessoas ao redor do mundo, certamente o Estado de Direito é dos mais enigmáticos.

Creio que a ampla adesão a esse ideal decorra das múltiplas dimensões e funções desempenhadas pelo Estado de Direito. Em uma dimensão elementar, Estado de Direito significa um ambiente em que a maior parte dos membros da comunidade age em conformidade com a lei, mesmo quando isso signifique contrariar os próprios interesses ou paixões. Essa é a dimensão constitutiva da própria ideia de civilização, pela qual o Estado de Direito se apresenta como contraposição à barbárie.

Numa segunda dimensão —também chamada de burguesa—, o Estado de Direito designa não apenas que as pessoas se conduzam de acordo com a lei, mas que o próprio Estado e aqueles que exercem o poder, que as produzem e aplicam, também se encontram submetidos ao Direito, tal como expresso pela Constituição. A principal virtude desse arranjo, além da contenção do arbítrio por parte dos poderosos, é assegurar a previsibilidade nas relações sociais e especialmente na esfera econômica, indispensável ao desenvolvimento econômico. Essa é a razão pela qual o governo das leis atrai empresários e investidores.

A esquerda, desde de sua origem, desconfiou, no entanto, da ideia de Estado de Direito. Esse mau humor com o governo das leis apenas começou a mudar com o impacto devastador dos regimes de exceção (estados de não Direito) implementados pelo totalitarismo e pelo autoritarismo, no século passado. A tortura, as execuções em massa, os desaparecimentos, a segregação racial, a censura e a eliminação dos adversários alertaram para a importância do Estado de Direito, qualquer que fosse sua origem ideológica.

O grande historiador marxista E. P. Thompson, embora sempre tenha realizado uma crítica mordaz ao emprego de leis injustas para oprimir os mais pobres, causou perplexidade à esquerda ao se referir ao Estado de Direito como um "bem humano incomensurável". Por ser estruturado a partir de regras gerais e do devido processo legal, que constituem sua moralidade interna, o estado de Direito adquire certa autonomia do poder, restringindo as oportunidades para a manipulação e o arbítrio pelos poderosos.

O Estado de Direito, quando impactado pela democracia e devidamente acessado pelos setores vulneráveis, pode, inclusive, servir à promoção da igualdade e, eventualmente, da própria Justiça. Isso explica por que muitos movimentos emancipatórios também passaram, ao redor do mundo, a empregar a linguagem de direitos e defender o primado do Estado de Direito.

Neste 11 de agosto, testemunhamos distintos setores da sociedade brasileira, que vão da Coalizão Negra por Direitos à Federação dos Bancos —passando por milhares de cidadãos entre os quais policiais, médicos e desempregados— virem a público manifestar seu "compromisso inarredável com o Estado de Direito".

Apenas desdenharam dos atos em defesa do Estado de Direito aqueles que não se encontram dispostos a conjugar a sua gramática básica; em particular, a premissa de que ninguém, por mais poderoso que seja, está acima da lei. E nunca é demais lembrar que fora da lei só há a barbárie.

*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Excelente artigo,merece um prêmio.