sexta-feira, 7 de outubro de 2022

Armando Castelar* - Juros, dívida e inflação

Valor Econômico

Inflação alta não vai embora sem que os juros nas economias avançadas subam bem mais do que já fizeram

A economia mundial pode estar passando por mudanças estruturais e entrando em uma nova realidade. A ênfase aqui vai no “pode”, visto que não é certo que isso ocorrerá, nem quando. Mas para entender a forma como enxergo essa nova realidade ajuda olhar a crise da dívida britânica da semana passada, um exemplo prático da reflexão que quero trazer.

A crise no Reino Unido começou com o anúncio do pacote fiscal do novo governo. Uma mistura de componentes ideológicos, como a redução de impostos para os mais ricos, e estímulos à demanda, como os subsídios ao gás, o pacote almeja, entre outras coisas, evitar a recessão prevista pelo Banco da Inglaterra (BoE) para 2023 e, imagina-se, elevar a popularidade do partido conservador.

Porém, com a inflação em patamar elevado, o estímulo fiscal conflita com o aperto monetário em curso no país, exigindo mais aumento de juros. A expectativa de mais déficit público e mais aperto monetário resultou, claro, em desvalorização dos títulos da dívida pública britânica, os “gilts”. Isso, por sua vez, precipitou chamadas de margem em operações com derivativos, muitos detidos por fundos de pensão, que para honrarem esse compromisso venderam gilts, derrubando ainda mais seus preços, em processo semelhante ao observado na grande crise financeira de 2007-08. A coisa só se acalmou quando o BoE entrou comprando esses títulos. Para isso, claro, o banco imprimiu mais dinheiro e ampliou seu balanço, indo na direção oposta à que prometera começar a seguir esta semana. O resultado, imagina-se, será mais inflação à frente.

Até pouco tempo atrás as coisas não funcionavam assim. Nos últimos quinze anos, os bancos centrais (BCs) dos países ricos foram capazes de imprimir trilhões de dólares para financiar seus governos, sem que isso pressionasse a inflação. O balanço do Fed, o BC americano, saltou de US$ 890 bilhões ao final de 2006 para US$ 9,0 trilhões em março deste ano. Na Zona do Euro, o salto foi de €1,2 para 8,8 trilhões.

No Japão, de 115 para 738 trilhões de yens. Com isso, esses BCs, e outros, permitiram que os governos pagassem juros reais negativos sobre suas elevadas e crescentes dívidas. Por seu turno, isso deu grande folga aos governos para gastarem.

A questão que se coloca é se o que ocorreu no Reino Unido foi má gestão, mas, de outra forma, as coisas continuam como nos últimos anos, com os BCs sempre podendo vir em socorro, ou se foi reflexo de uma mudança estrutural em curso na forma como a economia e os mercados financeiros globais funcionam.

Penso que a inflação alta não vai embora sem que os juros de política econômica nas economias avançadas subam bem mais do que já fizeram e, provavelmente, do que os mercados futuros apostam que vão subir: algo como até 4,5% nos EUA e 2,5% na área do euro, por exemplo. Também, na minha percepção, teriam de ficar altos por mais tempo do que hoje está precificado.

Isso não só porque a alta dos preços está bastante disseminada, e as taxas atuais de juros seguem muito negativas em termos reais, mas também porque há fatores estruturais que vão pressionar nessa direção. Refiro-me aqui a diversos movimentos que penalizam a eficiência e oneram a produção, em que pese terem outros méritos. Um exemplo é a reversão parcial da globalização, com o desmonte de algumas cadeias globais de valor, reflexo da pandemia e, principalmente, da disputa geopolítica entre os EUA e a Europa, de um lado, e a China e a Rússia, de outro. Também se encaixam nesse grupo a transição para fontes de energia e modelos de produção mais ambientalmente sustentáveis e, no campo político-eleitoral, a pressão por aumentos salariais que aliviem a concentração de renda observada nas economias avançadas.

Por outro lado, não há apetite para grandes programas de ajuste fiscal, que facilitem o trabalho dos BCs. Pelo contrário, o clima hoje é de mais gastos públicos, como se vê nos EUA - pacote de infraestrutura, de apoio à ciência, de perdão de dívidas estudantis - e na Europa - mais subsídios ao consumidor, despesas com segurança nacional, substituição de fontes energéticas etc. O pacote de estímulo alemão, de €200 bilhões, anunciado semana passada é um exemplo.

Ora, isso exigiria dos BCs taxas de juros mais altas e limites mais rígidos à emissão monetária. Mas o efeito colateral disso seria um custo mais elevado para a dívida pública, gerando uma deterioração fiscal adicional. Com as dívidas pública e corporativa nos níveis atuais, e taxas de juros elevadas, para o padrão da última década e meia, a saída dos BCs da ponta compradora, em meio à desaceleração da atividade esperada para 2023, pode levar a crises em alguns desses mercados.

Tudo aponta, portanto, para uma atitude dos BCs tolerante com a inflação, em que pese a retórica forte. Com isso seguiremos vendo um processo de repressão financeira em que os detentores de títulos públicos seguirão financiando os governos, via taxas de juros reais negativas. Pode dar certo. Mas esse será um processo mais volátil do que o observado nos últimos anos, em que os BCs terão de oscilar entre prioridades, levando junto os preços dos ativos financeiros, ainda mais do que temos visto este ano.

*Armando Castelar Pinheiro é professor da FGV Direito Rio e do Instituto de Economia da UFRJ e pesquisador-associado do FGV Ibre

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