sexta-feira, 7 de outubro de 2022

José de Souza Martins* - Livros para compreender o Brasil confuso

Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Quando achamos que estamos chegando lá, descobrimos que os protagonistas da formação do país são as vítimas de contradições

Há algum tempo vi uma extensa e interessante lista de 100 livros recomendados para se compreender o Brasil. Resolvi fazer uma lista alternativa e menor de sugestões de leitura úteis para essa compreensão, especificamente, do Brasil confuso desta hora de incertezas.

A lista mostra que o Brasil se revela no seu avesso. Quando achamos que estamos chegando lá, descobrimos que os principais protagonistas da formação do Brasil são as vítimas das contradições historicamente constitutivas da nossa realidade. As que motivam a literatura do deciframento.

Países compreensíveis são os nascidos de uma história social e política convergente, de certa unidade de sentido e de direção. O Brasil não é assim. É um país que parece buscar uma identidade, mas nunca chega nela. Proclama-se um país de “Ordem e progresso”, mas não tem nem ordem nem progresso no tanto que pode e no tanto que carece.

Um dos melhores livros para entender o Brasil é “O alienista”, de Machado de Assis. Esse é o meio livro de minhas recomendações porque quando o leitor acha que a história está acabando, descobre que está recomeçando.

Publicado em 1882, o conto não acaba nunca. Simão Bacamarte ganhou vida, fugiu de dentro do livro para transformar o Brasil numa Itaguaí continental. E saiu por aí apontando o dedo alienista a um e outro para interná-lo no manicômio político e excludente em que muitos querem ver o país transformado. Ou para se safarem com o país no bolso ou para se safarem com o confinamento do povo num hospício invisível.

“Macunaíma”, de Mário de Andrade, é de 1928. O título é o nome do personagem, mestiçagem de gentes desencontradas e colagem geográfica de distâncias encurtadas pelo imaginário da busca do muiraquitã mítico e de pedra. Um amuleto que resolve os problemas insolúveis.

Mas nosso avesso não é apenas ficção. Joaquim Nabuco, em “O abolicionismo”, de 1883, expõe a dialética de que a realidade do Brasil é a unidade dos opostos, como no caso da escravidão:

“... a emancipação não significa tão somente o termo da injustiça de que o escravo é mártir, mas também a eliminação simultânea dos dois tipos contrários, e no fundo os mesmos: o escravo e o senhor”.

A sociedade é relacional. O indivíduo é apenas uma ficção jurídica. Somos filhos culturais e sociais de mediações, da alteridade do outro. O nosso caráter está na contradição de sermos o outro e acharmos que somos nós mesmos.

Em 1897, Euclides da Cunha, em “Canudos - Diário de uma expedição”, supõe que o conflito era o de uma população camponesa monarquista alçada contra a República. Não o era. A monarquia do sertão era religiosa, a do Divino Espírito Santo, de gente que sofria o pavor do fim do milênio e se refugiara de satanás no povoado santo de Canudos à espera do fim.

Em “Os sertões”, de 1902, uma de nossas primeiras obras de ciências sociais, Euclides da Cunha consertou a interpretação fantasiosa do livro anterior. O Brasil insurgente era um Brasil abandonado, em que o próprio Estado tratava o povo como inimigo, na falta de outro.

A Canudos de pau a pique foi destruída a tiros de canhão. O crime oficial continuaria na Guerra do Contestado e se repetiria em outros episódios de incitação e criminalização do povo para combatê-lo e aprisioná-lo no imaginário de quartel ou eliminá-lo.

Com “Os índios e a civilização”, de 1970, o antropólogo Darcy Ribeiro reconstitui a dolorosa história do desencontro brasileiro. O desenraizado brasileiro do encontro com os índios, que são os brasileiros mais autênticos, foi o pior deles, o menos humano, o que apresentou a suas vítimas o Brasil que se oculta e é ocultado às leis, ao Estado e ao povo, o que dissemina doenças para contaminar e matar, o que violenta, mata e destrói as condições de vida dos povos originários.

As culturas dos povos indígenas prescrevem a classificação dos seres, em grupos, metades, parentes. A aparição dos brancos no meio deles se deu por meio da disseminação das doenças contagiosas e da morte. Os xavantes classificaram os brancos na família da onça, o único animal que mata por matar.

Ignácio de Loyola Brandão acaba de publicar “Deus, o que quer de nós?”. De cujos personagens o Desatinado se apoderou. Nós o recriamos, e ele se apossou de nós, de nossa condição de protagonistas do nosso destino. Ele simboliza o que já não sabemos que somos, porque já não sabemos ser. Ele é a volta do que não vai. Ele paralisou o tempo para imobilizar-nos.

Esse é o cerne do enredo, o de uma sociedade cuja história não é histórica, que vai na direção contrária de para onde pode ir, uma sociedade que se nega e se perde nos absurdos da vida cotidiana reengendrada. Nela os mortos ainda acham que estão vivos.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).

Um comentário:

Mais um amador disse...

Ótimo texto !