Valor Econômico
Fugir de estereótipos, uma sugestão que
vale tanto para a educação quanto para outras áreas, como a economia
Como os jornalistas poderiam cobrir melhor
a educação na Amazônia? A professora Katia Schweickardt, da Universidade
Federal do Amazonas, responde: “Tornando familiar o que é estranho e
estranhando o que é familiar”.
O diálogo se deu em recente Congresso
Internacional de Jornalismo de Educação, promovido pela Associação de
Jornalistas de Educação (Jeduca). Katia dizia que, para garantir a
sobrevivência do bioma amazônico, será preciso assegurar educação de qualidade
e adaptada à realidade local.
Tornar familiar o que é estranho significa se desfazer de estereótipos sobre a Amazônia e aceitar um ensino que abranja também a cultura local, o que parece pouco relevante aos formuladores de diretrizes educacionais dominantes do Sudeste.
A frase da professora Katia, cunhada para o
caso da educação na Amazônia, se presta também a outros setores, especialmente
à economia em plena reta final de campanha. Estranhar o que é familiar parece
ser boa sugestão aos responsáveis pela política econômica que vão assumir o
governo em 1º de janeiro, sejam os de Lula, sejam os de Bolsonaro.
O que hoje parece familiar na economia, quase
um dogma para os neoliberais, é a ideia de que cabe ao Estado unicamente cuidar
do rigoroso controle fiscal, ou seja, manter as contas públicas equilibradas.
Com isso, o setor privado se sentiria estimulado a investir, promover
crescimento econômico e criar emprego e renda.
Foi esse pensamento, por exemplo, que
sustentou a aprovação da PEC do Teto de Gastos em 2016, no governo Michel
Temer, que na prática congela os gastos do governo por 20 anos. Em pouco tempo,
o teto foi desmoralizado, por impedir a adoção de políticas anticíclicas, pelas
quais o governo deve retirar poder de compra da economia e aumentar impostos
quando ela está muito aquecida e, por outro lado, estimulá-la com mais gastos e
menos impostos em momento recessivos. Foi preciso estranhar o que parecia
familiar e furar o teto várias vezes.
Outros exemplos: o Banco Central vem
aumentando os juros, que saíram de 2% ao ano em março de 2021 para 13,75% hoje.
Era necessário tudo isso? Uma taxa mais de 7 pontos percentuais acima da
inflação prevista e que projeta um custo de quase R$ 600 bilhões em 12 meses ao
governo, equivalente a 6% do PIB? Que tal estranhar isso que parece familiar
aos agentes do setor financeiro?
O BNDES, que já foi o maior banco de
desenvolvimento do mundo, sofreu desmoralização sob uma suspeita de corrupção
nunca confirmada e por ideologia contrária ao papel do Estado na promoção de
investimentos. Não é hora de estranhar essa ideia também tida como familiar e
voltar a usar mais o banco para estimular investimento privado e crescimento?
O que parece radicalmente estranho para o
outro lado, dos chamados progressistas, também precisa ser familiarizado. O
discurso deles, quando defendem o gasto público, sempre traz uma ressalva: “Sem
deixar de lado a responsabilidade fiscal”. Precisam ir além de frases “en
passant” nessa matéria. Por exemplo: qual mecanismo fiscal propõem para
garantir o controle de gastos que possa ser colocado no lugar daquele “ex-teto
sacrossanto”?
Talvez uma inspiração para o debate do tema
fiscal, crucial para o próximo governo, possa vir dos verdadeiros ensinamentos
de John Maynard Keynes. É falsa a ideia de que Keynes defendeu os déficits
fiscais crônicos como forma de proporcionar o pleno emprego. Bresser e Loreiro,
em artigo publicado no Valor há
mais de dez anos, observam que o economista Bradley Bateman, em ensaio de 2006,
desmonta a ligação do nome de Keynes ao populismo fiscal. Segundo Bateman, essa
associação se deveu a dois economistas liberais, Buchanan e Wagner, que em 1976
publicaram um livro cujo objetivo era caricaturar a figura de Keynes e atacar
as bases do Estado do bem-estar social. Keynes nunca defendeu o uso
indiscriminado de déficits fiscais para estimular a economia. Propunha que os
gastos correntes (com pessoal e custeio) dos governos deveriam estar sempre
equilibrados, independentemente do estado em que a economia se encontrasse. Só
as despesas de capital poderiam variar de maneira anticíclica, com aumento de
investimentos estatais em tempos recessivos e redução deles na prosperidade. Ao
longo de uma sequência de períodos, portanto, os gastos não correntes também se
equilibrariam com as receitas obtidas pelos novos investimentos.
A sugestão da professora Katia, de tornar
familiar o que é estranho, é valiosa especialmente quando o país se prepara
para um novo mandato presidencial. É recomendável estranhar tudo o que parece
ser tão familiar ou quase dogma, como o equilíbrio fiscal geral a qualquer
custo, a defesa do Estado mínimo e a supremacia absoluta do mercado para
promover desenvolvimento. A pandemia seguida de guerra mostrou que isso não é
razoável.
Dever do Estado
Por falar em participação do Estado na
economia, está na praça o livro “Atualização Estatal Estabilizadora” (Dialética
Editora), do professor Marco Antonio Karam, da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. A obra lembra que existe na ordem constitucional brasileira o
dever da atuação estabilizadora direta do Estado na atividade
econômico-empresarial em momentos de desestabilização sistêmica que pode gerar
instabilidade jurídica.
Karam partiu do enunciado do artigo 173 da
Constituição, que estabelece que a exploração direta de atividade econômica
pelo Estado será permitida quando necessária aos imperativos da segurança
nacional ou do interesse coletivo. O dever de estabilização seria alcançado,
por exemplo, pela participação acionária transitória do Estado em empresas
vulneráveis a desequilíbrios sistêmicos do mercado. Extremamente técnica, a
obra destrincha o real significado das duas expressões - segurança nacional e
interesse coletivo - incluídas no texto constitucional.
A crise gerada pela pandemia e pela guerra na Ucrânia seria uma das situações que exigem, segundo a Constituição, essa atuação estatal estabilizadora? Na Alemanha, o governo vai pagar € 8 bilhões para estatizar a gigante Uniper, grande importadora de gás russo. Em outra ação para garantir o fornecimento de energia no inverno, o governo assumiu o controle da Rosneft, refinaria de petróleo russa que fornece 90% do combustível para Berlim.
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