terça-feira, 11 de outubro de 2022

Pedro Cafardo - Estranhar o familiar e familiarizar o estranho

Valor Econômico

Fugir de estereótipos, uma sugestão que vale tanto para a educação quanto para outras áreas, como a economia

Como os jornalistas poderiam cobrir melhor a educação na Amazônia? A professora Katia Schweickardt, da Universidade Federal do Amazonas, responde: “Tornando familiar o que é estranho e estranhando o que é familiar”.

O diálogo se deu em recente Congresso Internacional de Jornalismo de Educação, promovido pela Associação de Jornalistas de Educação (Jeduca). Katia dizia que, para garantir a sobrevivência do bioma amazônico, será preciso assegurar educação de qualidade e adaptada à realidade local.

Tornar familiar o que é estranho significa se desfazer de estereótipos sobre a Amazônia e aceitar um ensino que abranja também a cultura local, o que parece pouco relevante aos formuladores de diretrizes educacionais dominantes do Sudeste.

A frase da professora Katia, cunhada para o caso da educação na Amazônia, se presta também a outros setores, especialmente à economia em plena reta final de campanha. Estranhar o que é familiar parece ser boa sugestão aos responsáveis pela política econômica que vão assumir o governo em 1º de janeiro, sejam os de Lula, sejam os de Bolsonaro.

O que hoje parece familiar na economia, quase um dogma para os neoliberais, é a ideia de que cabe ao Estado unicamente cuidar do rigoroso controle fiscal, ou seja, manter as contas públicas equilibradas. Com isso, o setor privado se sentiria estimulado a investir, promover crescimento econômico e criar emprego e renda.

Foi esse pensamento, por exemplo, que sustentou a aprovação da PEC do Teto de Gastos em 2016, no governo Michel Temer, que na prática congela os gastos do governo por 20 anos. Em pouco tempo, o teto foi desmoralizado, por impedir a adoção de políticas anticíclicas, pelas quais o governo deve retirar poder de compra da economia e aumentar impostos quando ela está muito aquecida e, por outro lado, estimulá-la com mais gastos e menos impostos em momento recessivos. Foi preciso estranhar o que parecia familiar e furar o teto várias vezes.

Outros exemplos: o Banco Central vem aumentando os juros, que saíram de 2% ao ano em março de 2021 para 13,75% hoje. Era necessário tudo isso? Uma taxa mais de 7 pontos percentuais acima da inflação prevista e que projeta um custo de quase R$ 600 bilhões em 12 meses ao governo, equivalente a 6% do PIB? Que tal estranhar isso que parece familiar aos agentes do setor financeiro?

O BNDES, que já foi o maior banco de desenvolvimento do mundo, sofreu desmoralização sob uma suspeita de corrupção nunca confirmada e por ideologia contrária ao papel do Estado na promoção de investimentos. Não é hora de estranhar essa ideia também tida como familiar e voltar a usar mais o banco para estimular investimento privado e crescimento?

O que parece radicalmente estranho para o outro lado, dos chamados progressistas, também precisa ser familiarizado. O discurso deles, quando defendem o gasto público, sempre traz uma ressalva: “Sem deixar de lado a responsabilidade fiscal”. Precisam ir além de frases “en passant” nessa matéria. Por exemplo: qual mecanismo fiscal propõem para garantir o controle de gastos que possa ser colocado no lugar daquele “ex-teto sacrossanto”?

Talvez uma inspiração para o debate do tema fiscal, crucial para o próximo governo, possa vir dos verdadeiros ensinamentos de John Maynard Keynes. É falsa a ideia de que Keynes defendeu os déficits fiscais crônicos como forma de proporcionar o pleno emprego. Bresser e Loreiro, em artigo publicado no Valor há mais de dez anos, observam que o economista Bradley Bateman, em ensaio de 2006, desmonta a ligação do nome de Keynes ao populismo fiscal. Segundo Bateman, essa associação se deveu a dois economistas liberais, Buchanan e Wagner, que em 1976 publicaram um livro cujo objetivo era caricaturar a figura de Keynes e atacar as bases do Estado do bem-estar social. Keynes nunca defendeu o uso indiscriminado de déficits fiscais para estimular a economia. Propunha que os gastos correntes (com pessoal e custeio) dos governos deveriam estar sempre equilibrados, independentemente do estado em que a economia se encontrasse. Só as despesas de capital poderiam variar de maneira anticíclica, com aumento de investimentos estatais em tempos recessivos e redução deles na prosperidade. Ao longo de uma sequência de períodos, portanto, os gastos não correntes também se equilibrariam com as receitas obtidas pelos novos investimentos.

A sugestão da professora Katia, de tornar familiar o que é estranho, é valiosa especialmente quando o país se prepara para um novo mandato presidencial. É recomendável estranhar tudo o que parece ser tão familiar ou quase dogma, como o equilíbrio fiscal geral a qualquer custo, a defesa do Estado mínimo e a supremacia absoluta do mercado para promover desenvolvimento. A pandemia seguida de guerra mostrou que isso não é razoável.

Dever do Estado

Por falar em participação do Estado na economia, está na praça o livro “Atualização Estatal Estabilizadora” (Dialética Editora), do professor Marco Antonio Karam, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A obra lembra que existe na ordem constitucional brasileira o dever da atuação estabilizadora direta do Estado na atividade econômico-empresarial em momentos de desestabilização sistêmica que pode gerar instabilidade jurídica.

Karam partiu do enunciado do artigo 173 da Constituição, que estabelece que a exploração direta de atividade econômica pelo Estado será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou do interesse coletivo. O dever de estabilização seria alcançado, por exemplo, pela participação acionária transitória do Estado em empresas vulneráveis a desequilíbrios sistêmicos do mercado. Extremamente técnica, a obra destrincha o real significado das duas expressões - segurança nacional e interesse coletivo - incluídas no texto constitucional.

A crise gerada pela pandemia e pela guerra na Ucrânia seria uma das situações que exigem, segundo a Constituição, essa atuação estatal estabilizadora? Na Alemanha, o governo vai pagar € 8 bilhões para estatizar a gigante Uniper, grande importadora de gás russo. Em outra ação para garantir o fornecimento de energia no inverno, o governo assumiu o controle da Rosneft, refinaria de petróleo russa que fornece 90% do combustível para Berlim.

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