Prioridade na economia é a reforma tributária
O Globo
Governo deve evitar as armadilhas dos que
querem que tudo fique como está para não perder privilégios
O atual governo não é o primeiro a tentar
promover uma reforma tributária. A criação de uma secretaria especial para
cuidar dela, ocupada pelo economista Bernard Appy, é sinal evidente de que o
tema entrou na agenda. Será preciso, contudo, enorme capacidade política para
evitar que mais uma vez o Brasil desperdice a oportunidade.
Este governo leva vantagem ao tentar aproveitar as propostas já em tramitação no Congresso, em vez de querer reinventar a reforma como o anterior. Há duas iniciativas em andamento: a PEC 45 na Câmara, com base técnica do próprio Appy, e a PEC 110 do Senado. Ambas preveem a fusão de impostos estaduais, federais e municipais, substituídos por um imposto sobre valor agregado (IVA) nos moldes do existente em economias avançadas. A PEC 110 propõe um IVA dual, com uma fatia destinada à União, a outra a estados e municípios. Por isso provoca menos resistência nos entes federativos, temerosos de perda de arrecadação.
Ambas resolvem um problema enorme da
estrutura tributária brasileira: ao estabelecer legislação nacional para o ICMS
e determinar a cobrança no lugar de destino, não mais na origem, põem fim à
guerra fiscal que distorce as decisões de investimento. Além disso, a
simplificação reduzirá o tempo dedicado pelas empresas a entender o que devem
pagar e a manter tudo em dia. Diminuirá também a pressão sobre a Justiça, que
faz do Brasil o país com maior contencioso tributário do mundo. Por fim, o
governo se comprometeu com uma reforma que não aumente a carga tributária de
34% do PIB, a mais alta dos países emergentes.
Para o economista Manoel Pires, do
Ibre/FGV, a reforma traz uma oportunidade de reduzir o custo dos impostos para
as empresas e atrair mais investimentos. Mas isso não significa que o caminho
para a aprovação será suave. Pelo desenho, a unificação de impostos é vista com
bons olhos pela indústria e com receio pelo setor de serviços, que sofreria
aumento de carga elevado demais. Será necessário encontrar uma solução adequada
para que a mudança não se transforme em entrave.
Há ainda a resistência de todos aqueles
cujos privilégios tributários são ameaçados. É o caso dos beneficiários de
regimes especiais, como Simples Nacional ou Zona Franca de Manaus, que farão a
União deixar de arrecadar, apenas neste ano, R$ 456 bilhões, ou 4,29% do PIB.
Appy deu a entender que a Zona Franca poderá perder incentivos de forma
gradual. Não é difícil imaginar o fuzuê que esse tipo de proposta deverá causar
no Congresso.
Um ponto que provavelmente voltará ao
debate é a taxação dos dividendos distribuídos pelas empresas. Da última vez
que a ideia veio à tona, no governo passado, foi proposto um salto de 34% para
43,2% na carga sobre acionistas. Sem reduzir impostos sobre lucros
corporativos, de modo que o impacto no mínimo seja neutro, a proposta não faz
sentido. O Brasil é o décimo-quinto país que cobra mais imposto das empresas no
mundo. Não precisa criar mais desincentivo a quem produz.
Outras ideias controversas mobilizarão
discussões, como a taxação de fortunas ou o imposto de renda dos mais ricos.
Nada disso deve desviar o foco do principal: a simplificação das regras e a
extinção dos “puxadinhos” tributários. O governo precisa evitar as armadilhas
dos que querem que tudo fique como está. Já houve muito debate, a reforma está
madura para ser aprovada.
Racismo nos estádios é inaceitável, não
pode ser tolerado e deve ser punido
O Globo
Na Europa e no Brasil, combate ao
preconceito precisa envolver clubes, torcedores e autoridades
No final de dezembro, o craque Vinicius Jr.
sofrera uma abjeta agressão racista da torcida adversária em jogo do Real
Madrid contra o Real Valladolid. As autoridades determinaram punição: multa
individual de € 4 mil e proibição de comparecer a estádios durante um ano. Não
adiantou. Na madrugada de 26 de janeiro, antes do clássico entre o Real e o
Atlético de Madrid, torcedores simularam o enforcamento de Vini Jr. usando um
boneco inflável e a cabeça coberta por capuz, como fazia a organização racista
Ku Klux Klan nos Estados Unidos. A polícia de Madri revelou que foram
encontrados digitais e traços de DNA no boneco e, nas câmeras de segurança,
placas de veículos suspeitos. O crime ao que tudo indica será elucidado. É
preciso haver punição à altura.
Vini Jr. seguiu a trajetória das poucas
crianças negras brasileiras que, jovens, conhecem a fama. Foi para a Europa aos
18 anos, assinou contrato milionário em euros e alcançou padrão de vida jamais
sonhado por garotos das favelas. Descoberto pelo Flamengo, desde 2018 joga no
Real Madrid e defendeu a Seleção na Copa do Catar. Mas seu sucesso não impede
que tenha de enfrentar uma das chagas mais profundas e persistentes da Europa.
Ao longo da história, a Espanha de
Francisco Franco e a Itália de Benito Mussolini foram os territórios mais
ameaçadores para atletas negros e judeus. Mussolini torcia pela Lazio, de Roma.
Até hoje torcedores do time fazem a saudação nazifascista. Nos anos de 1990, o
clube comprou o passe do holandês Aron Winter, negro e descendente de judeus.
Durante quatro anos, Winter ouviu xingamentos da própria torcida, que chegou a
brandir faixas com suásticas nos estádios.
O racismo também está presente nos estádios
brasileiros. Em 2021, houve 64 registros de agressões racistas, de acordo com o
portal ge. De janeiro a agosto do ano passado, segundo o Observatório de
Discriminação Racial, o número de 2021 já havia sido alcançado. Outras
agressões envolvem homofobia e xenofobia. O juiz teve de paralisar uma partida
recente entre o Barcelona de Ilhéus e Bahia por causa de xingamentos
homofóbicos contra um jogador do Bahia. O técnico iraniano Koosha Delshad,
radicado no Brasil há mais de dez anos, logo na partida de estreia pelo
Comercial do Piauí passou a ser chamado de “terrorista” depois de uma derrota.
Delshad pediu demissão.
São bem-vindas atitudes como a do Vasco da Gama, cujas torcidas organizadas — antes em evidência pela homofobia em partida contra o São Paulo — repudiaram no ano passado os cantos homofóbicos. Ou as diversas iniciativas para lembrar o Holocausto e repudiar o preconceito entre os clubes brasileiros. Mas só isso não basta. As punições chegam no máximo à perda do mando de campo. Deveriam ser mais duras, em particular para casos revoltantes como o de Vini Jr. O mais importante, contudo, é que federações, clubes e torcedores deixem claro a todos os presentes nos estádios que racismo, homofobia ou qualquer forma de preconceito são inaceitáveis, não serão tolerados e precisam ser punidos.
Um mês depois
Folha de S. Paulo
Apenas começou o trabalho de investigar os
responsáveis pelo ataque em Brasília
Lá se vão mais de 30 dias desde que um
punhado de idiotas marchou sobre Brasília, atravessou a
Esplanada dos Ministérios e invadiu o Congresso, o Planalto e o Supremo
Tribunal Federal.
A passagem do tempo realça o quanto havia
de patético e grotesco na tentativa de atacar um governo eleito legitimamente,
mas não reduz em uma nesga a torpeza e a gravidade da conduta criminosa.
Seus perpetradores, apoiadores do
ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), miraram nada menos que a democracia
brasileira —e ela saiu incólume. Atingiram, contudo, as sedes dos três Poderes,
que sofreram danos proporcionais à estupidez dos celerados.
É conhecido o rastro de destruição deixado
naquele 8 de janeiro. Vidros estilhaçados, móveis destroçados, computadores
danificados e paredes vandalizadas, além de importantes obras de arte
retalhadas, numa demonstração pungente da falta de apreço desses facínoras pela
cultura nacional.
Só no Supremo, onde a invasão durou pouco
mais de uma hora, 576 objetos sofreram avarias em diferentes graus. Nos demais
prédios, estima-se prejuízo de ao menos R$ 6 milhões.
A violência justificou atuação enérgica dos
órgãos de Estado. A Advocacia-Geral da União, por exemplo, requereu o bloqueio
judicial do patrimônio de 134 pessoas, 5 empresas e 2 entidades suspeitas. A
cifra monta a R$ 20,7 milhões.
Em outra frente, 1.420 manifestantes foram
detidos em flagrante, numa reação necessária para interromper a prática dos
crimes, desestimular sua repetição e garantir o início dos inquéritos
policiais.
Estranha,
entretanto, que 916 ainda estejam em prisão preventiva, medida em
tese excepcional que, quando se alonga, converte-se numa antecipação indevida
da pena —um drible nos direitos constitucionais ao devido processo legal e à
presunção de inocência.
Por mais que se trate de triste distorção
da Justiça brasileira, toda autoridade judicial deveria se empenhar em evitar
sua reprodução.
Este caso, em particular, seria didático:
mesmo detratores da democracia recebem como resposta o Estado de Direito, com
ampla oportunidade de se defenderem antes de conhecerem a sentença.
Não que a prisão preventiva deva ser
descartada. Decerto há um núcleo de golpistas mais perigosos que precisam ficar
longe das ruas. São os principais financiadores, os reincidentes, os violentos.
E, claro, os líderes.
Nenhum esforço restará completo se os
responsáveis por organizar e açular a malta permanecerem a salvo do máximo
rigor legal. O mesmo se diga de autoridades que, instaladas em cargos públicos,
cruzaram os braços.
A desídia das forças de segurança é
indesculpável. Foi preciso que Luiz Inácio Lula da Silva (PT) decretasse
intervenção no Distrito Federal para que a turba golpista encontrasse
resistência efetiva.
No DF, o governador Ibaneis Rocha (MDB) foi
afastado, e o ex-secretário de Segurança Pública Anderson Torres, preso, em
decisões draconianas do Supremo.
A omissão de ambos durante o 8 de janeiro
precisa ser investigada, mas não conta toda a história. Na casa de Torres, a
Polícia Federal encontrou, pasme, a minuta de um decreto que autorizaria
Bolsonaro a instaurar estado de defesa na sede do Tribunal Superior Eleitoral,
a fim de reverter o resultado da eleição presidencial de 2022.
Há ainda outros omissos camuflados com as
fardas militares. O Exército, responsável pela segurança do Palácio do
Planalto, deixou de proteger um prédio que fica sob sua custódia.
Não surpreende que, passado o alvoroço,
Lula tenha demitido o comandante da Força. Mas isso não resolve o
imbróglio. É crucial que
os membros da caserna adeptos do golpismo também sejam punidos nos
termos da lei.
Que nada até o momento tenha respingado
sobre eles depõe contra a seriedade das Forças Armadas, cuja reputação precisa
ser preservada no país.
O avanço dos processos ainda precisará
superar outros obstáculos. Um deles diz respeito à própria estrutura de
julgamento. Não se sabe se o STF resolverá manter todos os casos debaixo de
suas asas ou se mandará vários deles para a primeira instância.
Outro empecilho pode aparecer por culpa da
Procuradoria-Geral da República. Após anos de inação, o chefe do órgão, Augusto
Aras, resolveu mostrar serviço e acelerou as denúncias —porém investigadores da
PF consideram que a pressa veio a custo da perfeição, com acusações frágeis.
Todavia a Justiça saberá resolver impasses e sanar abusos. Punir todos os responsáveis pela truculência antidemocrática é a melhor forma de desestimular a repetição desse capítulo vergonhoso da história brasileira.
Congresso precisa agir contra fake news
O Estado de S. Paulo.
O STF tem sido acusado de ativismo por
decisões envolvendo ‘fake news’ nas redes sociais. Maior responsável pela
situação é o Congresso. Sua omissão obriga a Justiça a criar soluções
Cada vez mais, o Poder Judiciário se vê
instado a atuar em casos envolvendo publicações nas redes sociais. Trata-se de
um grave dilema. Não há uma legislação específica sobre fake news,
estabelecendo previamente as específicas consequências jurídicas para cada
situação. Ao mesmo tempo, a Justiça não pode simplesmente ignorar as demandas
que lhe chegam. Como dispõe a Constituição de 1988, no artigo 5.º, não cabe
excluir da apreciação do Poder Judiciário nenhuma lesão ou ameaça a direito.
Pode-se dizer, não há dúvida, que a
ausência de legislação específica sobre determinado assunto é circunstância
habitual do trabalho da Justiça. Sempre há temas da vida nacional sem a devida
regulação, tendo o Judiciário experiência de sobra sobre como proceder nesses
casos. A rigor, o que acontece agora com as fake news nas redes sociais não é
nenhuma novidade.
É preciso alertar, no entanto, que, por uma
série de circunstâncias, a ausência de regulação legal sobre as
fake news tem gerado problemas inéditos,
que tensionam de forma especialmente sensível o funcionamento e a legitimidade
do Estado Democrático de Direito.
Em primeiro lugar, o tema envolve muito
mais do que um eventual aperfeiçoamento da legislação vigente. Grupos e pessoas
têm usado as redes sociais para ameaçar e atacar as instituições democráticas.
Sem exagero, prover uma regulação adequada para as fake news – apta tanto a
prevenir e punir abusos e crimes como a proteger a liberdade de expressão e de
opinião – é uma questão de sobrevivência do Estado Democrático de Direito e das
garantias e liberdades individuais.
Um segundo ponto refere-se à autoridade e à
legitimidade do Judiciário, em especial do Supremo Tribunal Federal (STF).
Sendo uma questão de sobrevivência do regime democrático, a Justiça não tem o
direito de pecar por omissão. Não tem a possibilidade de não agir, ficando
inerte à espera do Congresso. Ela tem o dever de proteger a Constituição de
1988 e o Estado Democrático de Direito. No entanto, não havendo uma legislação
específica – ou seja, não tendo os representantes da população determinado os
critérios precisos para essa regulação –, quem não tiver concordado com as
decisões do Judiciário sobre esses temas sempre poderá alegar que elas não
dispõem de legitimidade democrática.
Tal hipótese não é teórica. Nos últimos
quatro anos, precisamente quando o STF foi mais instado a proteger o regime
democrático – em que teve de dedicar mais horas e mais energias para defender o
Estado Democrático de
Direito –, foi o período em que a Corte
mais recebeu críticas por um suposto déficit democrático de sua atuação, sob a
justificativa de que, com frequência, estaria invadindo as competências do
Congresso. Estaria havendo um patamar inédito de ativismo judicial, com
ministros do STF, que não receberam voto popular, inventando soluções com
efeitos sistêmicos sobre todo o funcionamento das redes sociais.
É sempre oportuna a recomendação de que o
Judiciário deve se ater aos limites de suas atribuições. Especialmente ampla, a
Constituição de 1988 pode suscitar interpretações pontuais que não sejam muito
aderentes ao princípio constitucional da separação de Poderes. No entanto, em
relação à regulação das redes sociais – o que inclui temas especialmente
controvertidos, como regras para suspensão de perfis, retirada de conteúdo e
penalidades por atuação abusiva nos meios digitais –, o grande responsável pela
situação atual é o Congresso. Ele é o grande omisso.
Ninguém duvida que regulação de redes
sociais e fake news é assunto complexo, a exigir extremo cuidado, estudo,
debate, amadurecimento dos temas, análise das soluções de outros países. Seja
qual for a solução adotada pelo Congresso, nenhuma legislação será
perfeitamente adequada. Depois, será preciso aperfeiçoá-la, a partir da
experiência obtida. Mas precisamente por isso é necessário que o Congresso
atue. Objeto de discussões diárias nos mais diversos setores sociais, o tema
está incendiando o País. Câmara e Senado não podem ficar alheios.
O Legislativo deve voltar ao normal
O Estado de S. Paulo.
Pandemia foi pretexto para a tramitação
expressa de medidas provisórias e a extinção das comissões mistas no Congresso;
já passou da hora de retomar os ritos do debate democrático
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSDMG),
anunciou nesta semana duas medidas na direção do restabelecimento da
normalidade das regras de funcionamento do Legislativo. Após quase três anos do
início do surto de covid19, as sessões deliberativas do Senado voltarão a ser
realizadas exclusivamente na modalidade presencial. A decisão foi tomada pela
Comissão Diretora da Casa. O segundo ato envolve, também, a Câmara dos
Deputados, e estabelece a retomada da tramitação ordinária das medidas
provisórias (MPs) e o retorno da instalação das comissões mistas para
analisá-las. Já não era sem tempo.
Ato contínuo, no entanto, o presidente da
Câmara, Arthur Lira (PP-AL), decidiu criar dificuldades para colocar a decisão
em prática e recusou-se a assinar o documento, alegando não ter sido
previamente consultado. Não há, na postura de Lira, qualquer preocupação sob o
ponto de vista sanitário, mas apenas uma tentativa de preservar os poderes que
o deputado conquistou há quase três anos, período em que a tramitação das
medidas provisórias foi alterada em razão da pandemia.
Quando pouco se sabia sobre o contágio, a
evolução e o tratamento do novo coronavírus, a Câmara e o Senado, ambientes
cheios de ritos, tradições e formalidades, colocaram em funcionamento
aplicativos próprios que criaram sistemas de deliberação a distância em questão
de semanas. O Congresso conseguiu, então, um feito inédito e digno de nota:
garantiu segurança tecnológica para a discussão e votação de propostas
legislativas e evitou aglomerações típicas de plenário, algo que foi
fundamental para preservar a saúde dos parlamentares.
Nessa mesma época, e pelas mesmas
preocupações, Câmara e Senado alteraram o regime de tramitação das Medidas
Provisórias, dispensando a instalação das comissões mistas e permitindo que
elas fossem submetidas direta e separadamente ao plenário – antes aos deputados
e, depois, aos senadores. Formados por igual número de deputados e senadores
que alternavam relatoria e presidência, esses colegiados eram os responsáveis
pela construção e aprovação de pareceres prévios das MPs antes que elas fossem
submetidas ao plenário.
A forma como se deu a decisão já foi
bastante questionável. Enquanto a tramitação das MPs, que cita expressamente as
comissões mistas, foi definida pelo artigo 62 da Constituição, a decisão que
mudou tal regime não se deu por emenda constitucional, mas por Ato Conjunto das
Mesas Diretoras da Câmara e do Senado de abril de 2020. O Supremo Tribunal
Federal (STF), no entanto, validou a decisão em setembro de 2021 e, por 7 votos
a 3, julgou que a pandemia impossibilitava, momentaneamente, a atuação das
comissões mistas.
Em vez de um texto consensual, construído
em conjunto por deputados e senadores, o rito expresso das medidas provisórias
garantiu um poder extraordinário ao presidente da Câmara. Sem as comissões, não
foram poucas as ocasiões em que pareceres foram em tempo real no plenário, no
momento em que as MPs entravam em pauta. Uma vez aprovadas, as MPs seguiam para
o Senado, mas quaisquer alterações propostas pelos senadores obrigavam seu
retorno à Câmara, onde os deputados restabeleciam o texto a que haviam dado aval
sem qualquer constrangimento.
Com raras exceções e em locais específicos,
como ambientes aeroportuários e hospitalares, o País voltou a viver na
normalidade pré-pandêmica. O ato proposto pelo presidente do Senado pelo
retorno das comissões mistas chega, portanto, com muito atraso, e só explicita
o quanto a resistência de Lira em assiná-lo não tem qualquer amparo.
A pandemia ceifou a vida de 698 mil
brasileiros e exigiu sacrifícios de toda a sociedade. O Legislativo, quando
chamado à responsabilidade, soube se adaptar às limitações que a doença impôs a
todos, incorporando avanços tecnológicos inéditos que permitiram tratar com
prioridade projetos que asseguraram socorro aos mais vulneráveis. Naquele
momento, as MPs tiveram a análise e a tramitação sacrificadas. Não há, neste
momento, nada de republicano a justificar que continuem a ser.
Sem politicagem na inflação
O Estado de S. Paulo.
Governo tem legitimidade para mudar metas
de inflação, mas discussão precisa partir de premissas técnicas
O líder do governo no Congresso, Randolfe
Rodrigues (Rede-AP), publicou, em sua conta no Twitter, um quadro comparativo com
os juros e a inflação de alguns países do mundo. O Brasil figurou entre os
destaques, com a maior taxa entre os selecionados e uma inflação superior
apenas à da China e do Japão. Na lista do senador, também estavam Turquia,
Rússia, África do Sul, Índia, Estados Unidos, União Europeia, todos com juros
mais baixos e inflação mais alta que os brasileiros.
Pelo tom da publicação, supõe-se que o
senador tinha a intenção de expor o que considera um capricho do Banco Central
(BC) e criticar sua autonomia. Na busca obsessiva por uma inflação baixa, o
Brasil teria elevado demais a taxa básica de juros, superando até mesmo o rigor
de países ricos, dispostos a manter juros mais civilizados e inflação mais
elevada para não sacrificar sua economia. Até aí, tudo bem. O que chamou a
atenção na publicação de Randolfe, no entanto, foi a infeliz escolha que ele
fez para defender sua posição: a Turquia.
O presidente da Turquia, Recep Tayyip
Erdogan, demitiu o presidente do banco central local para derrubar os juros na
marra de 20% para 8% – mesmo nível que o senador defende para o País. Em
contrapartida, colheu moeda desvalorizada, reservas em níveis críticos e
inflação completamente fora de controle. Logo, se há algo a depor a favor da
autonomia do Banco Central brasileiro é o caso turco.
Desde a desorganização das cadeias globais
proporcionada pela covid-19, a inflação tem dominado as discussões econômicas
em todo o mundo. Mesmo economistas ortodoxos têm tido divergências sobre o
nível inflacionário aceitável no pós-pandemia. Tal debate pode até vir a mudar
conceitos consagrados sobre a dosimetria de juros adequada para conter preços,
mas ainda está em fase incipiente. No Brasil, no entanto, a discussão nem
sequer resvala nessas questões e está contaminada por questões políticas.
A inflação só encerrou o ano em 5,79%,
ainda fora da meta e pelo segundo ano consecutivo, porque o governo e o
Congresso mudaram a tributação sobre combustíveis. Não fosse isso, o IPCA de
2022 teria ficado em 9,56%. O exemplo é excelente para expor, de um lado, os
limites da atuação do BC, e, de outro, o quanto decisões de governo podem até
deturpar indicadores macroeconômicos, mas são incapazes de mudar o cenário
geral da inflação – basta perguntar a percepção que a população tem sobre os
preços.
O governo de Lula da Silva certamente tem
legitimidade para mudar as metas para 2024 e 2025 de 3% para 3,5%. É, afinal,
uma decisão do Conselho Monetário Nacional (CMN), um órgão que leva em
consideração a dimensão econômica e, também, aspectos políticos. O BC é
autônomo, mas não é infalível. Pode e deve ter o trabalho avaliado e criticado,
desde que essas críticas partam de premissas técnicas e passem longe da
superficialidade e da mera politicagem. Não há como discutir o tema de forma
séria sem considerar nosso histórico de hiperinflação e nosso maior problema: o
desequilíbrio crônico na área fiscal.
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