domingo, 12 de fevereiro de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Prioridade na economia é a reforma tributária

O Globo

Governo deve evitar as armadilhas dos que querem que tudo fique como está para não perder privilégios

O atual governo não é o primeiro a tentar promover uma reforma tributária. A criação de uma secretaria especial para cuidar dela, ocupada pelo economista Bernard Appy, é sinal evidente de que o tema entrou na agenda. Será preciso, contudo, enorme capacidade política para evitar que mais uma vez o Brasil desperdice a oportunidade.

Este governo leva vantagem ao tentar aproveitar as propostas já em tramitação no Congresso, em vez de querer reinventar a reforma como o anterior. Há duas iniciativas em andamento: a PEC 45 na Câmara, com base técnica do próprio Appy, e a PEC 110 do Senado. Ambas preveem a fusão de impostos estaduais, federais e municipais, substituídos por um imposto sobre valor agregado (IVA) nos moldes do existente em economias avançadas. A PEC 110 propõe um IVA dual, com uma fatia destinada à União, a outra a estados e municípios. Por isso provoca menos resistência nos entes federativos, temerosos de perda de arrecadação.

Ambas resolvem um problema enorme da estrutura tributária brasileira: ao estabelecer legislação nacional para o ICMS e determinar a cobrança no lugar de destino, não mais na origem, põem fim à guerra fiscal que distorce as decisões de investimento. Além disso, a simplificação reduzirá o tempo dedicado pelas empresas a entender o que devem pagar e a manter tudo em dia. Diminuirá também a pressão sobre a Justiça, que faz do Brasil o país com maior contencioso tributário do mundo. Por fim, o governo se comprometeu com uma reforma que não aumente a carga tributária de 34% do PIB, a mais alta dos países emergentes.

Para o economista Manoel Pires, do Ibre/FGV, a reforma traz uma oportunidade de reduzir o custo dos impostos para as empresas e atrair mais investimentos. Mas isso não significa que o caminho para a aprovação será suave. Pelo desenho, a unificação de impostos é vista com bons olhos pela indústria e com receio pelo setor de serviços, que sofreria aumento de carga elevado demais. Será necessário encontrar uma solução adequada para que a mudança não se transforme em entrave.

Há ainda a resistência de todos aqueles cujos privilégios tributários são ameaçados. É o caso dos beneficiários de regimes especiais, como Simples Nacional ou Zona Franca de Manaus, que farão a União deixar de arrecadar, apenas neste ano, R$ 456 bilhões, ou 4,29% do PIB. Appy deu a entender que a Zona Franca poderá perder incentivos de forma gradual. Não é difícil imaginar o fuzuê que esse tipo de proposta deverá causar no Congresso.

Um ponto que provavelmente voltará ao debate é a taxação dos dividendos distribuídos pelas empresas. Da última vez que a ideia veio à tona, no governo passado, foi proposto um salto de 34% para 43,2% na carga sobre acionistas. Sem reduzir impostos sobre lucros corporativos, de modo que o impacto no mínimo seja neutro, a proposta não faz sentido. O Brasil é o décimo-quinto país que cobra mais imposto das empresas no mundo. Não precisa criar mais desincentivo a quem produz.

Outras ideias controversas mobilizarão discussões, como a taxação de fortunas ou o imposto de renda dos mais ricos. Nada disso deve desviar o foco do principal: a simplificação das regras e a extinção dos “puxadinhos” tributários. O governo precisa evitar as armadilhas dos que querem que tudo fique como está. Já houve muito debate, a reforma está madura para ser aprovada.

Racismo nos estádios é inaceitável, não pode ser tolerado e deve ser punido

O Globo

Na Europa e no Brasil, combate ao preconceito precisa envolver clubes, torcedores e autoridades

No final de dezembro, o craque Vinicius Jr. sofrera uma abjeta agressão racista da torcida adversária em jogo do Real Madrid contra o Real Valladolid. As autoridades determinaram punição: multa individual de € 4 mil e proibição de comparecer a estádios durante um ano. Não adiantou. Na madrugada de 26 de janeiro, antes do clássico entre o Real e o Atlético de Madrid, torcedores simularam o enforcamento de Vini Jr. usando um boneco inflável e a cabeça coberta por capuz, como fazia a organização racista Ku Klux Klan nos Estados Unidos. A polícia de Madri revelou que foram encontrados digitais e traços de DNA no boneco e, nas câmeras de segurança, placas de veículos suspeitos. O crime ao que tudo indica será elucidado. É preciso haver punição à altura.

Vini Jr. seguiu a trajetória das poucas crianças negras brasileiras que, jovens, conhecem a fama. Foi para a Europa aos 18 anos, assinou contrato milionário em euros e alcançou padrão de vida jamais sonhado por garotos das favelas. Descoberto pelo Flamengo, desde 2018 joga no Real Madrid e defendeu a Seleção na Copa do Catar. Mas seu sucesso não impede que tenha de enfrentar uma das chagas mais profundas e persistentes da Europa.

Ao longo da história, a Espanha de Francisco Franco e a Itália de Benito Mussolini foram os territórios mais ameaçadores para atletas negros e judeus. Mussolini torcia pela Lazio, de Roma. Até hoje torcedores do time fazem a saudação nazifascista. Nos anos de 1990, o clube comprou o passe do holandês Aron Winter, negro e descendente de judeus. Durante quatro anos, Winter ouviu xingamentos da própria torcida, que chegou a brandir faixas com suásticas nos estádios.

O racismo também está presente nos estádios brasileiros. Em 2021, houve 64 registros de agressões racistas, de acordo com o portal ge. De janeiro a agosto do ano passado, segundo o Observatório de Discriminação Racial, o número de 2021 já havia sido alcançado. Outras agressões envolvem homofobia e xenofobia. O juiz teve de paralisar uma partida recente entre o Barcelona de Ilhéus e Bahia por causa de xingamentos homofóbicos contra um jogador do Bahia. O técnico iraniano Koosha Delshad, radicado no Brasil há mais de dez anos, logo na partida de estreia pelo Comercial do Piauí passou a ser chamado de “terrorista” depois de uma derrota. Delshad pediu demissão.

São bem-vindas atitudes como a do Vasco da Gama, cujas torcidas organizadas — antes em evidência pela homofobia em partida contra o São Paulo — repudiaram no ano passado os cantos homofóbicos. Ou as diversas iniciativas para lembrar o Holocausto e repudiar o preconceito entre os clubes brasileiros. Mas só isso não basta. As punições chegam no máximo à perda do mando de campo. Deveriam ser mais duras, em particular para casos revoltantes como o de Vini Jr. O mais importante, contudo, é que federações, clubes e torcedores deixem claro a todos os presentes nos estádios que racismo, homofobia ou qualquer forma de preconceito são inaceitáveis, não serão tolerados e precisam ser punidos.

Um mês depois

Folha de S. Paulo

Apenas começou o trabalho de investigar os responsáveis pelo ataque em Brasília

Lá se vão mais de 30 dias desde que um punhado de idiotas marchou sobre Brasília, atravessou a Esplanada dos Ministérios e invadiu o Congresso, o Planalto e o Supremo Tribunal Federal.

A passagem do tempo realça o quanto havia de patético e grotesco na tentativa de atacar um governo eleito legitimamente, mas não reduz em uma nesga a torpeza e a gravidade da conduta criminosa.

Seus perpetradores, apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), miraram nada menos que a democracia brasileira —e ela saiu incólume. Atingiram, contudo, as sedes dos três Poderes, que sofreram danos proporcionais à estupidez dos celerados.

É conhecido o rastro de destruição deixado naquele 8 de janeiro. Vidros estilhaçados, móveis destroçados, computadores danificados e paredes vandalizadas, além de importantes obras de arte retalhadas, numa demonstração pungente da falta de apreço desses facínoras pela cultura nacional.

Só no Supremo, onde a invasão durou pouco mais de uma hora, 576 objetos sofreram avarias em diferentes graus. Nos demais prédios, estima-se prejuízo de ao menos R$ 6 milhões.

A violência justificou atuação enérgica dos órgãos de Estado. A Advocacia-Geral da União, por exemplo, requereu o bloqueio judicial do patrimônio de 134 pessoas, 5 empresas e 2 entidades suspeitas. A cifra monta a R$ 20,7 milhões.

Em outra frente, 1.420 manifestantes foram detidos em flagrante, numa reação necessária para interromper a prática dos crimes, desestimular sua repetição e garantir o início dos inquéritos policiais.

Estranha, entretanto, que 916 ainda estejam em prisão preventiva, medida em tese excepcional que, quando se alonga, converte-se numa antecipação indevida da pena —um drible nos direitos constitucionais ao devido processo legal e à presunção de inocência.

Por mais que se trate de triste distorção da Justiça brasileira, toda autoridade judicial deveria se empenhar em evitar sua reprodução.

Este caso, em particular, seria didático: mesmo detratores da democracia recebem como resposta o Estado de Direito, com ampla oportunidade de se defenderem antes de conhecerem a sentença.

Não que a prisão preventiva deva ser descartada. Decerto há um núcleo de golpistas mais perigosos que precisam ficar longe das ruas. São os principais financiadores, os reincidentes, os violentos. E, claro, os líderes.

Nenhum esforço restará completo se os responsáveis por organizar e açular a malta permanecerem a salvo do máximo rigor legal. O mesmo se diga de autoridades que, instaladas em cargos públicos, cruzaram os braços.

A desídia das forças de segurança é indesculpável. Foi preciso que Luiz Inácio Lula da Silva (PT) decretasse intervenção no Distrito Federal para que a turba golpista encontrasse resistência efetiva.

No DF, o governador Ibaneis Rocha (MDB) foi afastado, e o ex-secretário de Segurança Pública Anderson Torres, preso, em decisões draconianas do Supremo.

A omissão de ambos durante o 8 de janeiro precisa ser investigada, mas não conta toda a história. Na casa de Torres, a Polícia Federal encontrou, pasme, a minuta de um decreto que autorizaria Bolsonaro a instaurar estado de defesa na sede do Tribunal Superior Eleitoral, a fim de reverter o resultado da eleição presidencial de 2022.

Há ainda outros omissos camuflados com as fardas militares. O Exército, responsável pela segurança do Palácio do Planalto, deixou de proteger um prédio que fica sob sua custódia.

Não surpreende que, passado o alvoroço, Lula tenha demitido o comandante da Força. Mas isso não resolve o imbróglio. É crucial que os membros da caserna adeptos do golpismo também sejam punidos nos termos da lei.

Que nada até o momento tenha respingado sobre eles depõe contra a seriedade das Forças Armadas, cuja reputação precisa ser preservada no país.

O avanço dos processos ainda precisará superar outros obstáculos. Um deles diz respeito à própria estrutura de julgamento. Não se sabe se o STF resolverá manter todos os casos debaixo de suas asas ou se mandará vários deles para a primeira instância.

Outro empecilho pode aparecer por culpa da Procuradoria-Geral da República. Após anos de inação, o chefe do órgão, Augusto Aras, resolveu mostrar serviço e acelerou as denúncias —porém investigadores da PF consideram que a pressa veio a custo da perfeição, com acusações frágeis.

Todavia a Justiça saberá resolver impasses e sanar abusos. Punir todos os responsáveis pela truculência antidemocrática é a melhor forma de desestimular a repetição desse capítulo vergonhoso da história brasileira.

Congresso precisa agir contra fake news

O Estado de S. Paulo.

O STF tem sido acusado de ativismo por decisões envolvendo ‘fake news’ nas redes sociais. Maior responsável pela situação é o Congresso. Sua omissão obriga a Justiça a criar soluções

Cada vez mais, o Poder Judiciário se vê instado a atuar em casos envolvendo publicações nas redes sociais. Trata-se de um grave dilema. Não há uma legislação específica sobre fake news, estabelecendo previamente as específicas consequências jurídicas para cada situação. Ao mesmo tempo, a Justiça não pode simplesmente ignorar as demandas que lhe chegam. Como dispõe a Constituição de 1988, no artigo 5.º, não cabe excluir da apreciação do Poder Judiciário nenhuma lesão ou ameaça a direito.

Pode-se dizer, não há dúvida, que a ausência de legislação específica sobre determinado assunto é circunstância habitual do trabalho da Justiça. Sempre há temas da vida nacional sem a devida regulação, tendo o Judiciário experiência de sobra sobre como proceder nesses casos. A rigor, o que acontece agora com as fake news nas redes sociais não é nenhuma novidade.

É preciso alertar, no entanto, que, por uma série de circunstâncias, a ausência de regulação legal sobre as

fake news tem gerado problemas inéditos, que tensionam de forma especialmente sensível o funcionamento e a legitimidade do Estado Democrático de Direito.

Em primeiro lugar, o tema envolve muito mais do que um eventual aperfeiçoamento da legislação vigente. Grupos e pessoas têm usado as redes sociais para ameaçar e atacar as instituições democráticas. Sem exagero, prover uma regulação adequada para as fake news – apta tanto a prevenir e punir abusos e crimes como a proteger a liberdade de expressão e de opinião – é uma questão de sobrevivência do Estado Democrático de Direito e das garantias e liberdades individuais.

Um segundo ponto refere-se à autoridade e à legitimidade do Judiciário, em especial do Supremo Tribunal Federal (STF). Sendo uma questão de sobrevivência do regime democrático, a Justiça não tem o direito de pecar por omissão. Não tem a possibilidade de não agir, ficando inerte à espera do Congresso. Ela tem o dever de proteger a Constituição de 1988 e o Estado Democrático de Direito. No entanto, não havendo uma legislação específica – ou seja, não tendo os representantes da população determinado os critérios precisos para essa regulação –, quem não tiver concordado com as decisões do Judiciário sobre esses temas sempre poderá alegar que elas não dispõem de legitimidade democrática.

Tal hipótese não é teórica. Nos últimos quatro anos, precisamente quando o STF foi mais instado a proteger o regime democrático – em que teve de dedicar mais horas e mais energias para defender o Estado Democrático de

Direito –, foi o período em que a Corte mais recebeu críticas por um suposto déficit democrático de sua atuação, sob a justificativa de que, com frequência, estaria invadindo as competências do Congresso. Estaria havendo um patamar inédito de ativismo judicial, com ministros do STF, que não receberam voto popular, inventando soluções com efeitos sistêmicos sobre todo o funcionamento das redes sociais.

É sempre oportuna a recomendação de que o Judiciário deve se ater aos limites de suas atribuições. Especialmente ampla, a Constituição de 1988 pode suscitar interpretações pontuais que não sejam muito aderentes ao princípio constitucional da separação de Poderes. No entanto, em relação à regulação das redes sociais – o que inclui temas especialmente controvertidos, como regras para suspensão de perfis, retirada de conteúdo e penalidades por atuação abusiva nos meios digitais –, o grande responsável pela situação atual é o Congresso. Ele é o grande omisso.

Ninguém duvida que regulação de redes sociais e fake news é assunto complexo, a exigir extremo cuidado, estudo, debate, amadurecimento dos temas, análise das soluções de outros países. Seja qual for a solução adotada pelo Congresso, nenhuma legislação será perfeitamente adequada. Depois, será preciso aperfeiçoá-la, a partir da experiência obtida. Mas precisamente por isso é necessário que o Congresso atue. Objeto de discussões diárias nos mais diversos setores sociais, o tema está incendiando o País. Câmara e Senado não podem ficar alheios.

O Legislativo deve voltar ao normal

O Estado de S. Paulo.

Pandemia foi pretexto para a tramitação expressa de medidas provisórias e a extinção das comissões mistas no Congresso; já passou da hora de retomar os ritos do debate democrático

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSDMG), anunciou nesta semana duas medidas na direção do restabelecimento da normalidade das regras de funcionamento do Legislativo. Após quase três anos do início do surto de covid19, as sessões deliberativas do Senado voltarão a ser realizadas exclusivamente na modalidade presencial. A decisão foi tomada pela Comissão Diretora da Casa. O segundo ato envolve, também, a Câmara dos Deputados, e estabelece a retomada da tramitação ordinária das medidas provisórias (MPs) e o retorno da instalação das comissões mistas para analisá-las. Já não era sem tempo.

Ato contínuo, no entanto, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), decidiu criar dificuldades para colocar a decisão em prática e recusou-se a assinar o documento, alegando não ter sido previamente consultado. Não há, na postura de Lira, qualquer preocupação sob o ponto de vista sanitário, mas apenas uma tentativa de preservar os poderes que o deputado conquistou há quase três anos, período em que a tramitação das medidas provisórias foi alterada em razão da pandemia.

Quando pouco se sabia sobre o contágio, a evolução e o tratamento do novo coronavírus, a Câmara e o Senado, ambientes cheios de ritos, tradições e formalidades, colocaram em funcionamento aplicativos próprios que criaram sistemas de deliberação a distância em questão de semanas. O Congresso conseguiu, então, um feito inédito e digno de nota: garantiu segurança tecnológica para a discussão e votação de propostas legislativas e evitou aglomerações típicas de plenário, algo que foi fundamental para preservar a saúde dos parlamentares.

Nessa mesma época, e pelas mesmas preocupações, Câmara e Senado alteraram o regime de tramitação das Medidas Provisórias, dispensando a instalação das comissões mistas e permitindo que elas fossem submetidas direta e separadamente ao plenário – antes aos deputados e, depois, aos senadores. Formados por igual número de deputados e senadores que alternavam relatoria e presidência, esses colegiados eram os responsáveis pela construção e aprovação de pareceres prévios das MPs antes que elas fossem submetidas ao plenário.

A forma como se deu a decisão já foi bastante questionável. Enquanto a tramitação das MPs, que cita expressamente as comissões mistas, foi definida pelo artigo 62 da Constituição, a decisão que mudou tal regime não se deu por emenda constitucional, mas por Ato Conjunto das Mesas Diretoras da Câmara e do Senado de abril de 2020. O Supremo Tribunal Federal (STF), no entanto, validou a decisão em setembro de 2021 e, por 7 votos a 3, julgou que a pandemia impossibilitava, momentaneamente, a atuação das comissões mistas.

Em vez de um texto consensual, construído em conjunto por deputados e senadores, o rito expresso das medidas provisórias garantiu um poder extraordinário ao presidente da Câmara. Sem as comissões, não foram poucas as ocasiões em que pareceres foram em tempo real no plenário, no momento em que as MPs entravam em pauta. Uma vez aprovadas, as MPs seguiam para o Senado, mas quaisquer alterações propostas pelos senadores obrigavam seu retorno à Câmara, onde os deputados restabeleciam o texto a que haviam dado aval sem qualquer constrangimento.

Com raras exceções e em locais específicos, como ambientes aeroportuários e hospitalares, o País voltou a viver na normalidade pré-pandêmica. O ato proposto pelo presidente do Senado pelo retorno das comissões mistas chega, portanto, com muito atraso, e só explicita o quanto a resistência de Lira em assiná-lo não tem qualquer amparo.

A pandemia ceifou a vida de 698 mil brasileiros e exigiu sacrifícios de toda a sociedade. O Legislativo, quando chamado à responsabilidade, soube se adaptar às limitações que a doença impôs a todos, incorporando avanços tecnológicos inéditos que permitiram tratar com prioridade projetos que asseguraram socorro aos mais vulneráveis. Naquele momento, as MPs tiveram a análise e a tramitação sacrificadas. Não há, neste momento, nada de republicano a justificar que continuem a ser.

Sem politicagem na inflação

O Estado de S. Paulo.

Governo tem legitimidade para mudar metas de inflação, mas discussão precisa partir de premissas técnicas

O líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), publicou, em sua conta no Twitter, um quadro comparativo com os juros e a inflação de alguns países do mundo. O Brasil figurou entre os destaques, com a maior taxa entre os selecionados e uma inflação superior apenas à da China e do Japão. Na lista do senador, também estavam Turquia, Rússia, África do Sul, Índia, Estados Unidos, União Europeia, todos com juros mais baixos e inflação mais alta que os brasileiros.

Pelo tom da publicação, supõe-se que o senador tinha a intenção de expor o que considera um capricho do Banco Central (BC) e criticar sua autonomia. Na busca obsessiva por uma inflação baixa, o Brasil teria elevado demais a taxa básica de juros, superando até mesmo o rigor de países ricos, dispostos a manter juros mais civilizados e inflação mais elevada para não sacrificar sua economia. Até aí, tudo bem. O que chamou a atenção na publicação de Randolfe, no entanto, foi a infeliz escolha que ele fez para defender sua posição: a Turquia.

O presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, demitiu o presidente do banco central local para derrubar os juros na marra de 20% para 8% – mesmo nível que o senador defende para o País. Em contrapartida, colheu moeda desvalorizada, reservas em níveis críticos e inflação completamente fora de controle. Logo, se há algo a depor a favor da autonomia do Banco Central brasileiro é o caso turco.

Desde a desorganização das cadeias globais proporcionada pela covid-19, a inflação tem dominado as discussões econômicas em todo o mundo. Mesmo economistas ortodoxos têm tido divergências sobre o nível inflacionário aceitável no pós-pandemia. Tal debate pode até vir a mudar conceitos consagrados sobre a dosimetria de juros adequada para conter preços, mas ainda está em fase incipiente. No Brasil, no entanto, a discussão nem sequer resvala nessas questões e está contaminada por questões políticas.

A inflação só encerrou o ano em 5,79%, ainda fora da meta e pelo segundo ano consecutivo, porque o governo e o Congresso mudaram a tributação sobre combustíveis. Não fosse isso, o IPCA de 2022 teria ficado em 9,56%. O exemplo é excelente para expor, de um lado, os limites da atuação do BC, e, de outro, o quanto decisões de governo podem até deturpar indicadores macroeconômicos, mas são incapazes de mudar o cenário geral da inflação – basta perguntar a percepção que a população tem sobre os preços.

O governo de Lula da Silva certamente tem legitimidade para mudar as metas para 2024 e 2025 de 3% para 3,5%. É, afinal, uma decisão do Conselho Monetário Nacional (CMN), um órgão que leva em consideração a dimensão econômica e, também, aspectos políticos. O BC é autônomo, mas não é infalível. Pode e deve ter o trabalho avaliado e criticado, desde que essas críticas partam de premissas técnicas e passem longe da superficialidade e da mera politicagem. Não há como discutir o tema de forma séria sem considerar nosso histórico de hiperinflação e nosso maior problema: o desequilíbrio crônico na área fiscal.

 

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