domingo, 12 de fevereiro de 2023

Muniz Sodré* - Inferno a céu aberto

Folha de S. Paulo

Nos regimes de ultradireita, isso é aberto e não raro com consequências devastadoras para minorias

Populismo não é fenômeno homogêneo. Mas um paradoxo interno a quase todos é o desprezo latente pelo povo.

Nos regimes de ultradireita, isso é aberto e não raro com consequências devastadoras para minorias. A tragédia dos yanomamis, revelada em toda a sua brutalidade, é o flagrante da desumanidade dos quatro anos de bolsopopulismo. Nesse período, centenas de crianças morreram de malária e desnutrição por criminosa falta de assistência, com cumplicidade de grupos financeiros (compradores de ouro ilegais, bancada legislativa garimpeira etc.). Agora fica patente que a ameaça pesava sobre milhares de indígenas.

Muitas décadas atrás, San Tiago Dantas, notável tribuno brasileiro, declarou que "o povo é melhor do que as elites". Deixava implícito que o desapreço era apenas de cima para baixo. Mas um líder populista, por derramamento afetivo, é capaz de "amar" abstratamente o povo e dele impostar-se como uma espécie de parente divino. Dessa demagogia brota sempre uma alusão hipócrita a valores de família e, por extensão, de pátria, que leva ao patriotismo qualificado pelo escritor britânico oitocentista Samuel Johnson como "último refúgio dos canalhas". Às vezes, é o primeiro. Na realidade, enquanto ideia de organização liberal das massas, povo é uma forma dinâmica: mais do que ser é tornar-se, processo autônomo, sem agente externo, sem demagogo populista.

O quadriênio da infâmia, que resume o bolsopopulismo, foi marcado pelo desígnio de extermínio de indígenas, negros, mulheres, gays. Apenas sobre a campanha física contra os yanomamis, haverá provavelmente uma discussão jurídica para determinar o dolo governamental. Mas é inequívoco o registro histórico da extinção deliberada dos povos originários.

Para o Inominável, a questão deveria ter sido resolvida no passado, a exemplo da cavalaria americana, que dizimou populações nativas. Como parlamentar, insistia no desmonte da reserva yanomami. Já presidente, autorizou garimpeiros a desmatarem, estuprarem, drogarem, transmitirem doenças e contaminarem os rios, extinguindo possibilidades de existência.

Desmobilizado o controle, choveu dinheiro para ONGs evangélicas. Uma delas, com o lema "a serviço do índio pela glória de Deus", recebeu quase R$ 1 bilhão, sem contrapartida. O lado real da narrativa sobre o ouro que faria emergir cidades é a desertificação da floresta e o envenenamento da vida pelo mercúrio: dolo de lesa-humanidade, um inferno. Isso é o que os tupis-guaranis sempre chamaram de "Abaçaí", um espírito mau, perseguidor. Já o povo yanomami, do qual se sabe que jamais esquece os matadores de seus mortos, está hoje a par do nome jurídico para o crime de que foram vítimas: genocídio, inequívoco.

*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de "A Sociedade Incivil" e "Pensar Nagô"

 

Um comentário:

Anônimo disse...

Abaçaí repousa hoje na Flórida, recuperando-se dos esforços entre uma motociata e outra! Centenas de cúmplices da raia miúda foram recolhidos pra prisões... Os grandes canalhas cúmplices estão no Congresso: senador Mourão, senador Astronauta, senadora Damares, deputado Pazuello, deputado Ricardo Salles, senador Moro, deputada Zambelli, senador Flávio Bolsonaro, deputado Eduardo bananinha, deputado Lira, ...