Políticos precisam cumprir exigências da Lei das Estatais
O Globo
Liminar do ministro Lewandowski dispensou
de quarentena líderes de partidos e campanhas eleitorais
O plenário do Supremo Tribunal Federal
(STF) tem a missão de rever a suspensão, pelo ministro Ricardo Lewandowski, de
obrigações impostas pela Lei das Estatais. Em liminar feita sob medida para
atender aos interesses do Planalto, Lewandowski dispensou lideranças de
partidos e campanhas eleitorais de cumprir a quarentena de três anos antes de
assumir cargos de direção nessas empresas.
Trata-se de um retrocesso evidente, por
enfraquecer a legislação que tenta manter a gestão das empresas estatais imune
à interferência de interesses políticos. Toda vez que políticos as subordinam a
seus desígnios, estão dadas as condições para escândalos que resultam em
prejuízos à sociedade e ao contribuinte — quando não em cadeia.
O interesse dos partidos em obter cargos para apaniguados nas estatais é evidente. É grande a pressa para indicar nomes neste início de governo. Daí o PCdoB — partido da base governista que entrou com o processo contra a Lei das Estatais — ter solicitado uma liminar sobre o assunto sem esperar o pedido de vista feito na semana passada pelo ministro André Mendonça no plenário virtual, onde tramita a ação. Para que a decisão de Lewandowski seja examinada também com rapidez, Mendonça decidiu então devolver o processo ao plenário físico.
Em sua decisão, Lewandowski argumentou que,
ao procurarem, por meio da Lei das Estatais, evitar o aparelhamento político
das empresas públicas, os legisladores “acabaram por estabelecer discriminações
desarrazoadas e desproporcionais — por isso mesmo, inconstitucionais —, contra
aqueles que atuam legitimamente na esfera governamental ou partidária”.
A imposição da quarentena é, ao contrário
do que diz Lewandowski, não apenas razoável, como necessária. Não há, da parte
dele, nenhuma preocupação com o efeito deletério das indicações políticas na
gestão das empresas, que deprecia o patrimônio público e prejudica o serviço
prestado à população. O objetivo parece ser apenas facilitar o desejo do
governo de encontrar uma boquinha para os seus.
Tome-se um entre inúmeros exemplos que
tornam isso evidente: o ex-governador de Pernambuco, Paulo Câmara, foi indicado
para dirigir o Banco do Nordeste num acerto político com o Planalto. Até
janeiro ele era vice-presidente do PSB, portanto teria de cumprir a quarentena.
Lewandowski decidiu sozinho que agora não precisa mais. Também suspendeu o
impedimento a que ministros e secretários de estado, sem vínculo permanente com
o serviço público, sejam diretores ou conselheiros de estatais. Está liberada,
portanto, a rotina de indicar ministros e outras altas autoridades para o
conselho de empresas públicas como forma de complemento salarial. Um absurdo.
A Lei das Estatais, que também exige
qualificações profissionais para cargos de direção em empresas públicas, foi
aprovada em 2016 quando ainda reverberavam os casos de corrupção desvendados
pela Operação Lava-Jato. No seu texto original, reflete o anseio da sociedade e
a necessidade de disciplinar a relação entre as empresas públicas e o mundo da
política, com o objetivo de reduzir o risco de roubalheira como a que houve na
Petrobras nas gestões do PT. Não faz sentido que a anulação de condenações da
Lava-Jato por questões processuais sirva de pretexto para o retrocesso numa das
conquistas legislativas que ela legou ao país.
Imposição de visto para americanos deve
mais à ideologia que à realidade
O Globo
Argumentos usados pelo governo para
justificar a decisão se chocam com a resistência no setor de turismo
O governo brasileiro anunciou que voltará a
exigir visto de visitantes de Estados Unidos, Canadá, Austrália e Japão. A
decisão foi tomada com base em dois argumentos. Primeiro, nenhum desses países
deixou de exigir visto dos brasileiros depois que, em 2019, o Brasil dispensou
unilateralmente seus cidadãos da obrigação. Segundo, o governo afirma que a
mudança não cumpriu o objetivo de aumentar o turismo no Brasil.
Ambos os argumentos são ruins. O primeiro,
embora sedutor por invocar o valioso princípio da reciprocidade nas relações
diplomáticas, esquece o óbvio: jamais foi interesse brasileiro impor
dificuldades à entrada de cidadãos desses países. O visto sempre lhes foi
imposto como meio de pressão para que um dia os brasileiros pudessem ser
isentados. É um meio legítimo, mas a relação nunca foi equilibrada. Se ele
tivesse algum poder de convencimento, a exigência aos brasileiros já teria
acabado faz tempo. O poder de decidir se acabaria sempre esteve lá fora, com
americanos, canadenses, japoneses e australianos. Exigir visto deles nunca
mudou isso.
Vários países consideram a imposição do
visto uma forma de coibir a imigração ilegal, visão considerada superada por
outros. Cabe à diplomacia brasileira convencer quem faz a exigência de que ela
se tornou descabida. Quando o governo Jair Bolsonaro anunciou a suspensão para
americanos, abortou negociações em curso para o fim da exigência nos dois
países, na expectativa de que os Estados Unidos fizessem o mesmo. Deu errado.
No recente encontro entre os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Joe Biden,
o assunto nem entrou na pauta. Deveria ter entrado, até para permitir que a
decisão de voltar a impor visto aos americanos tivesse sido mais qualificada.
Que ela deve muito à ideologia e pouco à
realidade, fica claro ao analisar o segundo argumento do governo: o impacto no
turismo aquém do desejado. Ora, em 2019, o Brasil recebeu 590.520 americanos,
quase 10% acima de 2018. As visitas de australianos (56.158), canadenses
(77.043) e japoneses (78.914) também aumentaram (33%, 8,3% e 24%,
respectivamente) — evidentemente, a partir de 2020, com a pandemia, todos os
números despencaram. Não é difícil, portanto, entender por que a reviravolta do
governo Lula provocou uma rebelião no setor de turismo. Empresas aéreas,
aeroportuárias e de hotelaria enviaram ofício a vários ministros e à Embratur
pedindo a manutenção da isenção de visto.
É verdade que Estados Unidos, Canadá, Austrália e Japão não agiram segundo o princípio da reciprocidade. Mas é preciso levar em conta os prejuízos que a mudança trará. Claro que dispensar americanos, canadenses, japoneses e australianos de visto não terá, por si só, o condão de recuperar o desempenho tíbio do turismo no Brasil, resultado de problemas de violência, infraestrutura, profissionalismo, competitividade e promoção no exterior. Mas são esses problemas que o governo deveria tratar de resolver, em vez de criar um novo.
Lição da Lava Jato
Folha de S. Paulo
Operação completa nove anos com extensa
lista de processos arquivados
Há pouco mais que melancolia no aniversário
de nove anos da Lava Jato. A operação, que um dia galvanizou o país, é hoje
lembrada mais pelos inúmeros erros do que pelos incontestáveis acertos, e
ninguém contribuiu mais para isso do que seus próprios protagonistas.
O ex-juiz Sergio Moro e o ex-procurador
Deltan Dallagnol, por exemplo, atropelaram garantias processuais no intuito de
assegurar o combate à corrupção. À luz do dia, a dupla mobilizava a opinião
pública para secundar heterodoxias jurídicas; às escondidas, ensaiava jogadas
que mandavam às favas os escrúpulos constitucionais.
A estratégia funcionou por bom tempo, mas a
reiteração dos abusos reduziu a tolerância a eles, enquanto o vazamento de
mensagens trocadas entre Moro e procuradores revelou a inaceitável parcialidade
dos condutores da operação.
Tamanho foi o abalo de credibilidade da
Lava Jato que o Supremo Tribunal Federal, após anos endossando as decisões de
Moro, acabou considerando o então juiz federal suspeito para julgar Luiz Inácio
Lula da Silva (PT) e anulou as condenações do atual presidente da República.
O STF ainda decidiu que os processos de
Lula não deveriam ter corrido em Curitiba, abrindo uma avenida processual para
deleite dos advogados de muitos outros réus.
Também nos fóruns fluminenses a Lava Jato
sofreu revés com o recente
afastamento do juiz Marcelo Bretas,
outrora conhecido como "o Sergio Moro do Rio de Janeiro".
Embora o processo administrativo ainda
esteja em curso, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) detectou indícios
suficientes de irregularidades na condução dos casos sob sua guarda.
Bretas, assim como Moro, não esconde sua
proximidade com o campo bolsonarista —comportamento legítimo para políticos,
mas não para juízes, de quem se exige independência e imparcialidade.
Não admira, portanto, que a Lava Jato
ostente extensa lista
de processos arquivados em todas as instâncias do Judiciário. Só
Lula, que chegou a ser condenado em terceira instância, conta 23 investigações
que não devem prosseguir.
É triste a ironia desse quadro: o
punitivismo parcial de certos membros do sistema judicial resultou na
impunidade a que muitos políticos sempre aspiraram.
Triste, mas também didática. Não se
enfrenta a corrupção com vedetismo e parcialidade, muito menos ao arrepio da
lei. Tampouco existe mágica nesse tema. O necessário combate a desvios na
máquina pública toma tempo e deve acontecer de maneira incremental, com ganhos
de controle e transparência dentro das esferas de poder.
Vergonha mundial
Folha de S. Paulo
Índice de mortalidade materna brasileiro
piorou com a pandemia, mas já era ruim
O Brasil é um país de contrastes. Ao mesmo
tempo em que há bolhas sociais de riqueza voluptuosa, metade da população nem
sequer tem acesso à rede de esgoto. Outra área na qual a desigualdade extrema
fica patente é a da saúde, notadamente a materna. Nesse quesito, temos números
similares aos da África subsaariana.
Pelo indicador de razão de mortalidade
materna (RMM), que computa óbitos relacionados a complicações na gravidez e em
até 42 dias após o parto, a cada 100 mil nascidos vivos, houve 110 mortes de mulheres
em 2021 no país.
Em Roraima, a RMM foi de incríveis 281,7,
índice similar ao de Moçambique —que, segundo o FMI, tem um PIB per capta em
torno de US$ 1.200, enquanto o do Brasil é cerca de US$ 15.000. O estado com
menor taxa de óbitos foi Pernambuco, e mesmo assim atingiu 61. Nos países
desenvolvidos, a média é de apenas 10.
A mortalidade
materna no Brasil aumentou durante a pandemia de Covid-19, que
impactou o sistema de saúde. Gestantes enfrentaram dificuldades para conseguir
vagas para internação ou em UTIs.
Se, em 2020, a taxa de mortes foi de 71,9,
em 2021, chegou-se a 100, ante 57,9 em 2019, antes da crise sanitária. O
impacto foi generalizado.
De acordo com dados do Ministério da Saúde,
entre 2018 e 2021, a RMM entre brancas passou de 49,9 para 118,6. Entre as
negras, foi de 104 para 190,8 mortes por 100 mil, a maior entre todos os grupos
étnicos. Há ainda, portanto, desigualdade
social e racial patente no atendimento à saúde das brasileiras.
Segundo especialistas, 90% dessas mortes
seriam facilmente evitáveis com atendimento pré-natal, já que a maioria dos
óbitos deve-se a problemas cardiovasculares e à hipertensão. Mas o
Brasil falha nessa tarefa mesmo antes da pandemia.
Levantamento do Instituto de Estudos para
Políticas de Saúde mostra que, em 2014, 52,9% das gestantes negras do Norte do
país não tiveram acesso ao pré-natal, ante 21,7% entre brancas do Sudeste.
A Covid-19, assim, piorou o que era ruim.
Em 2015, o país já havia assinado com a ONU acordo de redução do RMM para 30
até 2030.
Mas, segundo relatório do Ministério da
Saúde obtido pela Folha, há 95% de probabilidade de que essa meta não seja
alcançada —a razão projetada para 2030 é de 55,6 mortes por 100 mil nascidos
vivos.
Incrementos na oferta de pré-natal, considerando disparidades por região e raça, pelo menos contribuiriam para diminuir esse índice de mortalidade vexatório.
STF precisa respeitar a Lei das Estatais
O Estado de S. Paulo.
Assim como a população tem de cumprir
decisões judiciais das quais discorda, ministros da Corte precisam respeitar
leis constitucionais que divergem de suas preferências políticas
Tem horas que o Supremo Tribunal Federal
(STF) se esforça por ser parte do problema, e não da solução. Em vez de
rejeitar liminarmente uma ação inepta – a Ação Direta de Inconstitucionalidade
(Adin) 7331, contra a Lei das Estatais (Lei 13.303/2016) –, a Corte, por
decisão liminar do ministro Ricardo Lewandowski, suspendeu, no dia 16 de março,
trechos da lei. Trata-se de afronta ao Congresso e à Constituição.
Proposta pelo PCdoB, a Adin 7331 questiona
os dispositivos que restringem as indicações, para empresas estatais, de
conselheiros e diretores titulares de alguns cargos públicos ou que tenham
atuado, nos três anos anteriores, na estrutura de partido político ou em
campanha eleitoral. A Adin 7331 constitui caso paradigmático de judicialização
da política. Tendo perdido no Congresso, o PCdoB foi ao Judiciário tentar
reverter a derrota.
Na Lei das Estatais, não há nada que fira a
Constituição. O Congresso tem competência para definir critérios e restrições
para os cargos nas estatais e empresas de economia mista. É matéria que cabe ao
Legislativo decidir. No caso da Lei 13.303/2016, foi a própria política quem
definiu os limites para a política. Como dissemos neste espaço (Cabe ao STF
rejeitar a judicialização da política, 20/2/2023), “mais legítimo e constitucional,
impossível”.
Pode-se discutir se o Congresso estabeleceu
os melhores critérios, se eles são adequados às atuais circunstâncias, se a
experiência de quase sete anos de vigência da Lei das Estatais recomenda manter
as restrições originais ou alterá-las. Há todo um vasto campo de estudo, debate
e negociação sobre o tema. No entanto, em razão do princípio da separação dos
Poderes e, principalmente, do próprio princípio democrático, cabe ao
Legislativo, e não ao Judiciário, realizar esse debate. Questões políticas
devem ser resolvidas pelos representantes eleitos, e não por juízes.
Defender a Constituição não é apenas
impedir que leis inconstitucionais continuem vigentes. É também assegurar que
as leis constitucionais produzam, sem obstáculos e entraves, todos os efeitos
que o Congresso estabeleceu. Por isso, a Lei 9.868/1999, que disciplina o
processamento das Adins e da Ação Declaratória de Constitucionalidade (Adc),
determina que “a petição inicial inepta, não fundamentada, e a manifestamente
improcedente serão liminarmente indeferidas pelo relator”. No entanto, não
satisfeito em não rejeitar liminarmente a ação, o relator ainda deu liminar
contra a lei.
O caso explicita um ponto importante, que
afeta diretamente o funcionamento do Estado Democrático de Direito. Assim como
existem decisões do STF perfeitamente técnicas e corretas que desagradam
profundamente a parte considerável da população – e faz parte do regime
democrático exigir que todos respeitem essas decisões –, há também leis
perfeitamente constitucionais que desagradam profundamente às opiniões e opções
políticas de ministros do Supremo. E também faz parte do Estado Democrático de
Direito exigir que todos, também os integrantes do Judiciário, respeitem essas
leis.
O juízo sobre a constitucionalidade de ato
do Legislativo ou do Executivo não tem nenhuma relação com o exercício de
escolhas políticas. São outros critérios, outros fundamentos e outros
procedimentos. É por isso que este jornal tem profundas ressalvas, por exemplo,
ao “controle de constitucionalidade” baseado em negociações políticas mediadas
pelo Supremo. É muito positivo que haja composição entre as partes em disputas
judiciais sobre bens e direitos disponíveis. Mas o respeito à Constituição não
é um valor que se negocia.
Em conformidade com sua missão de defender
a Constituição, cabe ao plenário do STF rejeitar a liminar do ministro
Lewandowski. Ao contrário do que possa parecer à primeira vista, a decisão não
fortalece o Supremo. Ao invadir as competências do Congresso, ela torna o STF
submisso às vontades do Executivo e de quem perdeu na política. Em respeito à
sua própria autoridade, o Judiciário tem o dever de devolver a palavra ao
Legislativo.
Persistente, desigualdade não é insuperável
O Estado de S. Paulo.
Estudo da FGV mostra encolhimento da classe
média e abismo socioeconômico mesmo em regiões ricas; é possível reduzir esse
desnível, mas não com as velhas fórmulas demagógicas
O Brasil é um dos países mais desiguais do
mundo. Com a pandemia, ficou mais. Não pelo distanciamento entre os extremos,
mas pelo encolhimento da classe média. Segundo pesquisa da FGV Social (O Mapa
da Riqueza), em 2020 a queda nos rendimentos dos 10% mais ricos foi de 1,2%.
Entre os 40% mais pobres, houve até um ganho marginal de 0,2%. Para os ricos, o
choque foi amortecido por seus ativos e patrimônio; para os pobres, por
programas assistenciais. Sem riqueza privada nem proteção pública, a renda da
classe média – já em corrosão desde a recessão de 2014 – desabou 4,2%.
Há outros cortes elucidativos. As
localidades mais ricas estão associadas ao poder público federal ou à produção
de commodities. O município de Nova Lima (MG), rico em minérios, tem a maior
renda média: R$ 8.897 por mês. Entre os Estados, é o Distrito Federal que
concentra os mais abastados. Mesmo nas zonas ricas, há brutais disparidades. Os
habitantes do Lago Sul de Brasília, por exemplo, têm renda média de R$ 23.241 –
três vezes a de Nova Lima – e um patrimônio médio de R$ 1,4 milhão – nada menos
que 1.000 vezes o dos moradores do bairro brasiliense de Itapuã.
Ao acentuar problemas crônicos, a pandemia
alerta para a necessidade de abandonar velhos remédios que, na melhor das
hipóteses, aliviam momentaneamente sintomas, mas não atacam o mal pela raiz, e,
na pior, são um veneno que o aprofunda.
Não há soluções mágicas. Nem por isso há um
enigma insolúvel. O Banco Mundial, por exemplo, sintetizou quatro focos para
esforços de longo prazo: investimentos em capital humano, em infraestrutura e
acesso a ativos produtivos (como terra e ferramentas digitais), em reformas modernizantes
(como a administrativa ou a tributária) e em modelos estatísticos para avaliar
e corrigir políticas públicas. São fins relativamente consensuais. A
divergência está nos meios.
No início dos anos 2000, o País deixara
para trás uma sucessão de crises. Engrenagens forjadas no governo FHC
controlaram a inflação, liberalizaram o comércio, consolidaram marcos de
governança, ampliaram o acesso à educação e aperfeiçoaram políticas sociais. Em
seu primeiro mandato, o governo Lula adotou esse maquinário. Turbinado pelo
superciclo das commodities, ele viabilizou a primeira queda sensível da
desigualdade em décadas. Finda a bonança, lançou-se mão de uma série de
políticas exasperadas e imediatistas que desencadearam um novo ciclo de
retrocessos.
Em 2022, o economista Marcos Mendes
compilou uma coletânea de artigos em um livro cujo título diz tudo: Para não
esquecer – Políticas públicas que empobrecem o Brasil. Como explica Mendes, as
evidências são abundantes: o crescimento sustentável é basicamente fruto do
aumento de produtividade. Fazendo mais e melhor, uma economia gera mais valor e
renda. Em outras palavras: trata-se de aumentar a capacidade da oferta. Mas
recorrentemente prevalece a opção artificial e demagógica do crescimento pela
demanda. Remédios emergenciais para choques excepcionais (como o de 2008), como
gastos públicos para incentivar o consumo e capitalizar empresas, reduções
forçadas de juros, subsídios ou barreiras protecionistas, tornam-se regra. Os
benefícios restam concentrados em enclaves políticos e econômicos poderosos,
mas diminutos, e os custos são dispersados para a população. A produtividade e
a previsibilidade caem, e com elas o crescimento que se supunha estimulado.
Há uma correlação entre igualdade,
civilidade e prosperidade. Em geral, países mais igualitários são mais ricos e
democráticos. A desigualdade persistente, por sua vez, corrói o tecido civil e
corrompe as instituições públicas, em uma espiral de degradação. Como tudo na
vida humana, a evolução social se faz por tentativas e erros. Mas, como diz a
sabedoria popular, errar uma vez é humano; duas, é burrice. O PT inicia seu
quinto mandato no Executivo em 20 anos. Se – como tudo indica – persistir nos
mesmos erros, já será perversidade. Nem por isso a sociedade civil organizada,
os governos regionais ou o Congresso precisam seguir pelo mesmo caminho.
A trapalhada do crédito consignado
O Estado de S. Paulo.
Governo implode linha de crédito de
aposentados e pensionistas ao fixar juro máximo na base da canetada
O presidente Lula da Silva começou a se dar
conta de que a falta de coordenação de seu governo pode ter efeitos desastrosos
e, muitas vezes, contrários aos imaginados. A mais recente trapalhada se deu no
âmbito do Conselho Nacional de Previdência Social (CNPS), que, na última
segunda-feira, decidiu reduzir o teto da taxa de juros cobrada em empréstimos
consignados de beneficiários do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) de
2,14% para 1,70% ao mês. O colegiado, formado por representantes do governo,
aposentados, pensionistas, centrais sindicais e empregadores, aprovou o ato por
12 votos a 3. Para o ministro da Previdência Social, Carlos Lupi, que preside o
CNPS, a taxa anterior era abusiva.
Com a Selic em 13,75% ao ano, que
corresponde ao custo de captação dos recursos no mercado, a maioria das 27
instituições que operavam linhas de crédito consignado já trabalhava com
margens apertadas e próximas de zero. A decisão do Conselho, no entanto,
ignorou a lógica econômica, e o que se seguiu a essa canetada não surpreendeu
ninguém. Como o corte dos juros inviabilizaria os empréstimos, os bancos
optaram por suspender novas operações por tempo indeterminado.
Ninguém gosta de pagar juros altos, mas não
havia nada no ambiente macroeconômico a justificar tal anúncio – a não ser uma
mistura de voluntarismo e pensamento mágico, infelizmente muito comum em se
tratando de governos populistas. Assim, eivado de boas intenções, Lupi
conseguiu o exato oposto do que queria e implodiu a linha de crédito mais
barata e acessível a aposentados e pensionistas, sobretudo os mais pobres e
mais idosos.
Como muitos políticos, o ministro parece
não ter refletido sobre a consequência de sua atitude. Se é verdade que o
governo pode fixar o juro máximo da modalidade de crédito, também é fato que
nenhum banco é obrigado a operar essas linhas – prova disso é que mesmo as
instituições públicas, como o Banco do Brasil e a Caixa, deixaram de
ofertá-las.
Embora as parcelas do consignado sejam
descontadas na folha, não se trata de uma operação sem custos ou riscos. Para
ficar em poucos exemplos, há uma rede de correspondentes bancários que empregam
milhares de pessoas, bem como uma controvérsia legal e jurídica sobre o que
acontece com a dívida em caso de morte do beneficiário.
Na guerra de versões que sucede a toda
decisão estapafúrdia, o Ministério da Previdência disse que a redução dos juros
teve apoio de Lula e do ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Não parece. Na
mesma semana, o presidente pediu a seus ministros que se abstivessem de
anunciar “genialidades” que não tivessem aval de todo o governo. Já a Fazenda
estuda formas de apagar esse incêndio.
Do total de 31,6 milhões de beneficiários
do INSS, 14,5 milhões têm contratos de empréstimo consignado, e 42% deles estão
com o nome sujo na praça. Até que a confusão seja resolvida, restará aos mais
endividados acessar as linhas ofertadas para negativados, em torno de 20% ao
mês, ou recorrer a agiotas. Espera-se que essa história sirva de lição a todo o
governo.
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