Folha de S. Paulo
Ao impor reforma da Previdência aos
franceses, presidente adiciona pólvora a cenário potencialmente explosivo
"Trabalhar e morrer." A frase
fatalista, vista em cartazes nas
manifestações que levaram milhões às ruas da França contra a controversa
reforma da Previdência de Emmanuel Macron, exagera um sentimento comum
entre os franceses, que pode, segundo analistas, jogar o país no colo da
ultradireita.
Ao elevar a idade mínima para a
aposentadoria de 62 para 64 anos, a
reforma imposta pelo governo mexe em um sistema de segurança social que é
motivo de orgulho nacional e reduz o horizonte dos franceses de
usufruir do benefício com qualidade em uma terceira fase da vida.
"A proteção social francesa é relativamente generosa na comparação internacional, assim como o nível das pensões", explica Anne-Marie Guillemard, especialista em trabalho e previdência da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS), em Paris, e professora emérita de sociologia da Universidade de Paris Cité. "E os franceses são muito apegados a esse sistema, que permite aos aposentados manter um nível de vida similar ao de quando estavam ativos."
A
França sustenta o maior gasto público do planeta, de cerca de 55% de seu
Produto Interno Bruno (PIB), e tem a terceira maior despesa global com
aposentadorias (14,7% do PIB). O imaginário da "melhor idade" na vida
pós-trabalho, no entanto, deriva em boa parte de um outro número: 60. Foi essa
a idade mínima para o benefício previdenciário estabelecida pela reforma de
1982, do então presidente François Mitterrand, do Partido Socialista. Até então,
os franceses só podiam se aposentar aos 65 anos.
Essa mudança radical concedeu aos franceses
cinco anos a mais de benefício e um novo panorama de aposentadoria,
impulsionado pelos discursos de Mitterrand sobre um tempo em que os
trabalhadores poderiam "enfim, viver" e finalmente "considerar
as pessoas que amam e conhecer a França e o mundo".
Oito anos depois, diante de um relatório
técnico sobre dificuldades que rondavam o sistema de pensões, impactado pelas
mudanças demográficas e pelo aumento do desemprego, a
medida começou seu longo caminho de reversão.
"Estamos onde estamos hoje porque
cometemos erros que outros países não cometeram", disse Éric Ciotti, presidente
do Republicanos, partido que apoiou Macron na sua jornada pela aprovação do
texto.
Diante da falta de apoio à reforma na
Assembleia, na última quinta (16), a primeira-ministra Elisabeth Borne
anunciou, sob vaias e protestos de deputados, que
o governo utilizaria um dispositivo constitucional para prescindir da votação
parlamentar e aprovar a medida impopular.
Ao evocar o artigo 49.3, apelidado de
"número maldito" pelos franceses, o governo atropelou os deputados e,
junto com eles, o próprio eleitorado, majoritariamente contrário tanto à
reforma quanto ao uso do dispositivo que forçou sua aprovação.
"O ressentimento social criado com
essa reforma é muito forte", explica a socióloga Guillemard à Folha.
"É uma reforma injusta porque utiliza parâmetros de idade, e não de tempo
de contribuição, o que faz com que os grandes perdedores das mudanças previstas
sejam as classes mais modestas."
Para ela, ao prejudicar os trabalhadores
mais pobres, "sem demandar nada aos aposentados ou aos trabalhadores
melhor qualificados, a reforma chocou as pessoas, levando até mesmo aposentados
e jovens para as ruas, que agora acham que vão perder a vida trabalhando sem
ganhar nada no final".
Esse ressentimento não só é uma
pólvora num cenário social já explosivo como pode ter consequências
políticas perigosas para a França, afirma o cientista político Bruno Palier,
diretor de pesquisas do Instituto de Estudos Políticos de Paris (SciencePo).
"Muitas pessoas vão se vingar no voto", diz.
Segundo Palier, ao afetar de maneira
desproporcional, e sem compensação, as classes médias pouco qualificadas, que
já se sentem os grandes perdedores das mais recentes mudanças econômicas
globais, a reforma age diretamente no principal reservatório de votos dos
partidos populistas da ultradireita, como o Reunião Nacional (RN), de Marine Le Pen —derrotada
por Macron no segundo turno da última eleição.
"O governo tem também usado argumentos
falaciosos para justificar a reforma ou suas consequências, o que alimenta a
retórica antielite e antissistema dos populistas de direita, que se baseiam na
ideia de que 'eles mentem para nós'."
Soma-se a isso o fato de o governo ter
aprovado a medida sem legitimidade democrática e
a despeito das mobilizações, argumenta Palier, o que alimenta o sentimento
de que esses trabalhadores não são ouvidos pelas autoridades que estão no poder
e ecoa discursos típicos de partidos como o de Le Pen.
"Sabemos que Marine Le Pen obteve, nas
eleições presidenciais de 2022, 57% dos votos dos assalariados e 67% dos votos
dos trabalhadores braçais. E sabemos que 33% dessas categorias se abstiveram de
votar. E esse estoque de votos pode ficar disponível e se engajar nas próximas
eleições num contexto de maior ressentimento social", explica.
Para se desviar desse ressentimento, diz o cientista político, a esquerda francesa teria de superar dificuldades, entre elas sua própria divisão interna. "Foi o que fizeram Joe Biden e Lula ao entenderem que precisavam falar diretamente com os trabalhadores."
Um comentário:
C'est une évaluation presque parfaite attribué ao RN, provoqué pour les concurrents électorales à présidence, le dérroulement est inconservable.
Postar um comentário