sábado, 6 de maio de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Manter monarquia intacta será desafio para Charles III

O Globo

Novo rei britânico ascende ao trono com mesma tarefa da mãe: convencer os súditos jovens de que é necessário

Encerrada a festa da coroação marcada para hoje, o rei Charles III terá pela frente o mesmo desafio de sua mãe, a rainha Elizabeth II, ao assumir o trono britânico em 1953: convencer seus súditos de que ainda lidera o melhor regime para o Reino Unido. Não será trivial. Embora 58% dos britânicos se digam favoráveis à monarquia, entre jovens o apoio cai a um terço. A juventude é republicana, e toda a pompa e circunstância associadas à família real lhe parecem apenas desperdício.

O Estado gastou £ 86 milhões em 2022 com a realeza. Charles pode argumentar que rejeitou um aumento de £ 250 milhões na dotação pública, mas é complicado justificar os impostos que ainda recebe dos ducados de Lancastre e Cornualha, as mais de 90 joias da coleção pessoal da rainha avaliadas em £ 533 milhões, os 18 castelos e propriedades — incluindo Buckingham, Balmoral e Sandringham —, além da frota de carros de luxo, da coleção de tesouros artísticos (a maioria recebida como presente) e de um dos maiores portfólios de investimento do país.

Ao longo dos 70 anos de reinado da mãe, Charles sempre foi ofuscado. Em contraste com a rainha que unia o reino em torno de seu perfil discreto e econômico em palavras, ele ficou conhecido por emitir opiniões convictas sobre assuntos variados — das críticas à arquitetura moderna à defesa da caça à raposa (banida no governo Tony Blair), do proselitismo em favor da homeopatia (a Associação Médica Britânica está entre seus maiores desafetos) às provas de carinho pelos criadores de ovinos esquecidos na remota Cúmbria. “Ninguém sabe o inferno que é ser príncipe de Gales”, costumava dizer.

No plano pessoal, a realeza continua a ser tema dileto nas colunas de celebridades, em geral pelos escândalos. As turbulências de Charles com a princesa Diana só foram interrompidas com a trágica morte dela. Embora ele hoje transmita estabilidade ao lado de Camilla, a namorada de adolescência tornada rainha consorte, sua imagem foi abalada pelo casamento do filho Harry com a americana Meghan Markle, que resultou em ruptura na Casa de Windsor, com direito a livro, entrevistas e série de TV. Negra, Meghan acusa o séquito monárquico de racismo e não vai à coroação. O próprio Charles enfrenta dificuldades para lidar com o legado racista e escravista de seus antepassados.

No reinado da mãe, a imprensa o tratava como “príncipe intrometido”, devido aos comentários e memorandos não solicitados a ministros. Agora, sua opinião é exigida nas audiências semanais com o primeiro-ministro, e sua assinatura é obrigatória nas leis aprovadas pelo Parlamento. Estará mais à vontade na certa para falar de meio ambiente, tema que o fascina. “Devemos embarcar numa revolução sustentável”, escreveu em 2010. “A verdadeira riqueza são boas terras, florestas imaculadas, rios claros, animais saudáveis, comunidades vibrantes, comida nutritiva e criatividade humana.”

É uma descrição que contrasta com o Reino Unido que emerge do experimento desastrado do Brexit, economia mais estagnada entre as desenvolvidas, palco de desabastecimento e racionamento, candidato a ficar atrás da Polônia em riqueza per capita. Sem muito poder — afinal, é o proverbial rei da Inglaterra —, Charles se tornou líder da monarquia mais festejada do mundo num momento de crise aguda. Não terá o tempo que sua mãe teve para resgatá-la. Hoje vive instante de glória; em breve talvez não tenha o que celebrar.

Regulação do trabalho por aplicativo não pode repetir clichês sindicais

O Globo

É preciso garantir Previdência Social e proteções a trabalhadores, mas ao mesmo tempo preservar flexibilidade

Quando Luiz Inácio Lula da Silva foi presidente pela primeira vez, não havia Uber, nem 99, nem Rappi, nem iFood. O mercado de trabalho era dividido, grosso modo, entre empregados, desempregados e subempregados. Agora, mais de 3 milhões trabalham como entregadores e transportadores de passageiros por meio de aplicativos, sem carteira assinada, à margem da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Há uma nova categoria de trabalhadores sem nenhuma proteção social.

É, portanto, bem-vinda a ideia da comissão, criada por Lula em decreto, para discutir e trazer propostas para regulamentar o trabalho por aplicativo. Tudo dependerá, claro, das conclusões. O ideal é entender as circunstâncias específicas e a flexibilidade inerente a esse tipo de trabalho, sem deixar de oferecer aos que dependem dele alguma forma de inclusão na Previdência Social. A própria Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia, que reúne empresas de aplicativos, reconhece essa necessidade.

Em março, num encontro com entidades sindicais internacionais, Lula afirmou que “as empresas de aplicativos exploram os trabalhadores como jamais antes na História”. É provável que, na visão de quem militou como sindicalista nas décadas de 1960 e 1970, os aplicativos não passem de uma forma engendrada pelo capital para explorar o trabalho. Mas essa visão é ridícula. A tecnologia digital criou empregos antes inexistentes e trouxe inúmeras oportunidades de trabalho, não só a quem precisa ganhar a vida em momentos de aperto.

Claro que a formulação de regras nesse mercado flexível traz um desafio. Nem os trabalhadores nem as empresas de aplicativos têm experiência nessa negociação. Mas não se deve menosprezar a capacidade de diálogo. Nas conversas, é preciso cuidado para evitar impor dificuldades a uma atividade marcada pela autonomia e pela livre-iniciativa, em que não faz sentido pura e simplesmente aplicar a defasada CLT.

O vínculo empregatício convencional, com jornada diária determinada, impede que os motoristas trabalhem apenas nos horários de maior procura, quando as corridas são mais caras, beneficiando-se da lei da oferta e da demanda. A Espanha impôs a contratação de trabalhadores até então autônomos, mas faltou mão de obra para empresas que cumpriram a determinação, porque entregadores preferiram trabalhar para plataformas concorrentes que não a cumpriram, onde tinham mais flexibilidade.

Será um equívoco se a discussão partir da ideia de que existem patrões e empregados no trabalho por aplicativo. Entregadores e motoristas das plataformas digitais trabalham quando, onde e quanto querem, sem relação com o pessoal das plataformas. Melhor que repetir clichês, portanto, é enfrentar o assunto com um olhar inovador sem esquecer que, a depender do custo trabalhista gerado, o mercado de trabalho ficará na informalidade, sem garantir direitos sociais mínimos a ninguém.

Sem emergência

Folha de S. Paulo

Pandemia continua, mas controlada graças à produção de vacinas em prazo inaudito

Em 1º de maio, a Organização Mundial da Saúde ainda registrava 42.673 casos novos de Covid-19. A pandemia que assola o planeta desde dezembro de 2019 não acabou, decerto, mas se tornou administrável a ponto de a OMS declarar encerrada a emergência de saúde pública de alcance global.

Mais de três anos depois, a pior doença infecciosa surgida após a gripe de 1918 se encontra domada sob o jugo de vacinas desenvolvidas em prazo inaudito. Em que pese o lamentável avanço do negacionismo da ciência, a imunização encurralou o vírus Sars-CoV-2.

Quantas mortes teriam sido evitadas sem as campanhas antivacinação de populistas da cepa de Jair Bolsonaro (PL) e Donald Trump?

As cifras da Covid-19 são portentosas. A enfermidade alcançou 765.222.932 pessoas, de acordo com o registro da OMS de casos confirmados até 30 de abril, e ceifou 6.921.614 vidas. Aplicaram-se 13.344.670.055 vacinas, quase duas doses por habitante da Terra.

A contabilidade macabra pode embutir considerável subestimação. Óbitos não notificados e mortes sob outras condições agravadas por sistemas de saúde em colapso poderiam catapultar o total de vítimas para a casa dos 15 milhões.

O flagelo ensejou a rara circunstância em que expectativas de vida recuam em vez de progredir, algo que só costuma acontecer com guerras. Nos Estados Unidos, que possuem dados confiáveis, a população masculina perdeu dois anos de vida, em média.

No Brasil, até o último dia 26, o Ministério da Saúde contava 37.449.418 notificações e 701.494 óbitos. Ou seja, 10,1% do total mundial de mortes —vítimas demais para um país com menos de 3% da população global.

Esse foi o legado de uma gestão temerária da pandemia, que submeteu a saúde pública ao delírio ideológico de um presidente mendaz. O epidemiologista Pedro Hallal declarou na CPI que até 400 mil mortes poderiam ter sido evitadas com mais distanciamento social e vacinação precoce.

Além da fazer campanha aberta contra o isolamento, Bolsonaro jactou-se de nunca ter tomado vacina contra a Covid-19 —e agora é investigado sob suspeita de fraudar os bancos de dados oficiais antes de viajar aos Estados Unidos. O mau exemplo veio de cima, mas a sociedade brasileira reagiu e aderiu em massa à imunização.

Evitou-se, assim, dano ainda maior. Aqui e em outras partes, porém, observa-se aumento do descrédito na principal ferramenta da medicina para conter novas pandemias —que certamente virão, num planeta cada vez mais conectado e propenso a conhecer zoonoses favorecidas pela destruição de habitats e pela mudança do clima.

Imprensa entre polos

Folha de S. Paulo

Sem Bolsonaro, Brasil melhora em ranking, mas há radicalização e áreas de risco

O Brasil subiu 18 posições no ranking de liberdade de imprensa publicado pela ONG Repórteres Sem Fronteiras, passando do 110º lugar entre 180 países, em 2022, para o 92º neste ano. No relatório, a ONG atribui a ascensão à saída de Jair Bolsonaro (PL) do poder, o que não pode ser considerado exagero.

Pela primeira vez, tivemos um presidente que se recusava a falar com a imprensa, sem contar os ataques frequentes a veículos e jornalistas —como o caso da jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha.

O ex-mandatário estimulava a militância, que perseguia profissionais nas redes sociais e em eventos públicos, por vezes com violência.

Deve-se notar que o comportamento não surgiu quando Bolsonaro chegou ao Palácio do Planalto.

Segundo a RSF, o ataque à imprensa está ligado à polarização política, intensificada nos últimos anos.
Políticos e militantes petistas também têm um histórico de hostilidades contra veículos de comunicação, especialmente após episódios como o escândalo do Mensalão, o processo de impeachment de Dilma Rousseff e a Lava Jato. Luiz Inácio Lula da Silva (PT) flertou com a ideia de "regular a mídia".

Foi sob Bolsonaro, no entanto, que os ataques ao jornalismo profissional e a recusa à prestação de contas se tornaram uma política escancarada da Presidência.

O ranking da RSF também computa casos extremos, quando jornalistas são vítimas de homicídio devido ao exercício da profissão. Em 2022, 59 foram mortos no mundo. No Brasil, foram 3, como o britânico Dom Phillips, assassinado com o indigenista Bruno Pereira quando investigavam a pesca ilegal no estado do Amazonas.

Pelo menos 30 jornalistas foram assassinados nos últimos dez anos no Brasil. A América Latina figura a cada ano como uma das zonas mais perigosas. Dos 59 mortos em 2022, 27 estavam em países da região. O México, com 11 assassinatos, superou a Ucrânia, em guerra, com 8.

Aqui são conhecidas as áreas de grande risco, como a Amazônia, onde o Estado falha em proporcionar a segurança básica para a circulação de informações. Ademais, jornalistas que noticiam corrupção local em municípios de pequeno e médio porte são mais vulneráveis.

Quanto aos governantes, a insatisfação com o trabalho de escrutínio da imprensa é recorrente e, até certo ponto, normal. Os que prezam a democracia saberão respeitar o limite entre o questionamento, legítimo, e a intimidação.

Três anos que nunca acabarão

O Estado de S. Paulo

A emergência da covid oficialmente acabou, mas a próxima pandemia é uma certeza. Por isso, a experiência deve nos guiar para um mundo mais solidário e menos negacionista

“A emergência de saúde pública de preocupação internacional”, declarou o diretor da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Ghebreyesus, “acabou.” Ou seja, estamos a um passo do fim da pandemia, algo que, há três anos, parecia tão distante.

Por três anos as mensagens inspiracionais viralizaram: “Estamos todos juntos!”. Unidos em espírito, mas segregados em nossas casas, tememos juntos por nossas vidas e as de nossos entes; choramos a morte de 7 milhões de pessoas (a OMS estima que possam ser 20 milhões); acompanhamos a batalha dos médicos, enfermeiros e dos que se arriscaram para prestar serviços essenciais; aprendemos a nos proteger do vírus e da desinformação; adaptamo-nos ao trabalho remoto; clamamos aos governos por auxílio aos desvalidos; testemunhamos a aventura da ciência em busca da vacina; e demos os primeiros passos para fora de casa.

Mas, agora que as máscaras caíram em desuso, as portas se abriram e voltamos às ruas e o trânsito caótico das cidades já voltou aos níveis pré-pandêmicos, cabe a pergunta: estamos mesmo todos juntos? A resposta é crucial para enfrentar os danos colaterais – econômicos, sociais e humanos – da pandemia.

As desigualdades aumentaram – saberemos redesenhar os contratos sociais para não deixar ninguém para trás? Os governos assumiram poderes extraordinários – saberão renunciar a eles? Crianças foram impactadas em suas emoções e aprendizagem – saberemos evitar mais uma geração perdida? A digitalização avançou 30 anos em 3 – saberemos construir um mundo virtual livre, inclusivo e que não se preste a explorar à exaustão os trabalhadores menos preparados? A filantropia viveu um surto – saberemos consolidar uma cultura de genuína solidariedade?

Ou deciframos esses enigmas ou eles nos devorarão. As respostas serão decisivas para enfrentar o maior desafio legado pela covid. Estamos todos juntos num mundo ameaçado por novas doenças. É incerto o que virá, quando, onde ou como, mas a única certeza é que virá. Não podemos impedir todas as pandemias, mas podemos nos preparar adequadamente para elas, de três modos: reduzindo o risco do surgimento de um novo patógeno; se ele surgir, impedindo sua disseminação; e, se ele se globalizar, desenvolvendo vacinas e tratamentos o mais rápido possível.

Há cerca de 1,6 milhão de vírus no planeta em mamíferos e pássaros e todos os anos surgem novos. Muito dessa “matéria escura viral” escapa ao nosso controle, mas podemos reduzir os riscos, por exemplo, aliviando pressões ambientais, como o desmatamento ou o tráfico de animais.

O mundo precisa desenvolver um sistema de vigilância viral e um protocolo de isolamento caso um surto seja detectado. Tudo isso deve estar previsto nos orçamentos de todos os países. Se se tornar pandêmico, a Coalizão para Inovações na Preparação de Pandemias, uma parceria entre governos e instituições civis, propõe uma “missão de 100 dias” para desenvolver uma vacina, sustentada em quatro pilares: arquivos de vacinas prototípicas; testes clínicos rapidamente mobilizáveis; busca de marcadores biológicos que indiquem respostas imunológicas; e estabelecimento de instalações de biomanufatura para produzir os imunizantes em escala.

Pandemias são, por definição, ameaças globais. O combate a elas e a seus efeitos só será eficaz com cooperação global. Não há tempo a perder. O próximo patógeno pode ser mais contagioso e letal, e pode estar saltando de um animal ou tubo de ensaio para um humano neste exato momento.

Quem sobrevive ao fim de uma tragédia, diz Aristóteles, é purificado pela catarse do medo e da compaixão. Essa tese será testada em escala planetária. O mundo que emerge da pandemia será mais solidário ou mais egoísta? Saberá mitigar os impactos colaterais da pandemia? Estará preparado para a próxima? Confiará na ciência ou se deixará levar pelo encanto do charlatanismo negacionista? Ninguém pode prever as respostas, mas todos podem fazer sua parte para que o mundo faça as escolhas certas, mitigando os danos econômicos e, sobretudo, poupando tantas vidas quanto possível.

Escândalos drenam a energia do País

O Estado de S. Paulo

É preciso investigar e punir eventuais crimes, mas o País não pode ficar refém da pauta penal suscitada por Bolsonaro. Problemas nacionais não serão resolvidos olhando no retrovisor

Nenhum crime – seja contra o Estado Democrático de Direito, seja a inserção de dados falsos em sistema de informações da administração pública, seja qualquer outro tipo penal – deve ficar impune. Indícios criminosos devem ser apurados. Necessário em todas as situações, esse empenho investigativo se torna ainda mais imperioso quando envolve pessoas que ocuparam altos postos da República ou quando os bens jurídicos relacionados afetam diretamente toda a coletividade. Não é perseguição contra político nem indiferença com o princípio da igualdade de todos perante a lei. É reconhecer, de forma realista, que a resolução desses casos tem especial interesse público. Afinal, a aplicação da lei penal tem também uma importante dimensão comunicativo-pedagógica.

Reconhecida a necessidade de aplicação efetiva da lei penal, sem transigir com nenhum crime, é preciso alertar que o País não pode ficar refém dos escândalos criminais, sejam de que espécie for, envolvam quem envolver. A agenda nacional não pode ser determinada por operações policiais, por buscas e apreensões espetaculosas ou por vazamentos seletivos de áudios, vídeos e outros documentos. Todos esses elementos probatórios devem ser analisados e ponderados pelas autoridades competentes, com vistas à instrução do processo. Mas não podem substituir a pauta do País, que deve estar centrada na resolução dos problemas nacionais: orientada para o futuro, e não presa no passado.

A Lava Jato oferece importante aprendizado. Por maiores que sejam, os escândalos oriundos de delações e de vazamentos seletivos do Ministério Público não asseguram a aplicação da lei penal. Pode existir tudo isso e, mesmo assim, continuar havendo ampla impunidade. Não é o escândalo que faz com que o autor do crime seja identificado e devidamente punido. Isso se consegue por meio do devido processo legal, que não segue a lógica da audiência ou da popularidade, mas depende da apuração sóbria e atenta dos fatos, dentro das regras do contraditório e da ampla defesa.

Não é de estranhar que, depois de quatro anos de Jair Bolsonaro na Presidência da República, exista uma grande lista de indícios a exigir atenção do sistema de justiça penal. Para piorar, o 8 de Janeiro acrescentou uma nova e gigantesca leva de elementos probatórios, que precisam ser investigados. Não cabe impunidade perante tudo isso. Como lembrado várias vezes neste espaço, o caminho da pacificação social não é ignorar os crimes cometidos, mas aplicar sobre eles a lei de maneira técnica e imparcial, sem tom de vingança.

Esse cenário desafia o País em duas frentes: o desafio da efetiva aplicação da lei penal e o desafio de não deixar o País preso à aplicação da lei penal nesses casos. É um equívoco paralisante – que, entre outros danos, custa vidas, afeta empregos, prejudica a educação das novas gerações e freia o crescimento econômico – achar que o País não deve fazer outra coisa senão aguardar o julgamento – ou a prisão ou a inelegibilidade – de Jair Bolsonaro e dos envolvidos no 8 de Janeiro.

Há um País a ser governado. Há questões importantes em tramitação no Congresso Nacional, como, por exemplo, o novo arcabouço fiscal, a reforma tributária e a regulamentação das redes sociais. Por mais que seja preciso investigar eventual adulteração criminosa do cartão de vacinação de Bolsonaro, esse assunto – até certo ponto irrelevante, dado o conjunto da obra bolsonarista – não pode paralisar a agenda nacional. Por isso, entre outros cuidados, é fundamental que as medidas policiais e judiciais sejam realizadas dentro da mais estrita legalidade. O sistema de justiça penal não funciona bem quando gera tensão ou dúvidas na população.

No desafio de não deixar o País refém da pauta penal, dois temas demandam especial atenção. Quanto mais sigilo há sobre os procedimentos judiciais, maior é a possibilidade de manipulação da agenda nacional por meio de vazamentos seletivos. A regra é a publicidade. O segundo tópico são as prisões preventivas. Também excepcionais, elas exigem rigorosa fundamentação. Não convém repetir os erros da Lava Jato.

Câmara saneia Marco do Saneamento

O Estado de S. Paulo

Retrocessos ensaiados pelos decretos de Lula foram tão revoltantes que a própria base se amotinou

Por meio de decreto legislativo, a Câmara votou pela derrubada de parte dos decretos do presidente Lula da Silva que desfiguravam o Marco do Saneamento. A Casa rejeitou os dispositivos literalmente mais insalubres: irregulares na forma – porque ao invés de regulamentarem a lei a subvertiam – e retrógrados no conteúdo – porque davam sobrevida à operação de estatais ineficientes, as maiores culpadas por perpetuar a calamidade humanitária que é o saneamento básico no Brasil.

Com décadas de atraso, o Congresso se propôs, com o Marco de 2020, a reverter esse quadro, sobretudo a partir de duas frentes: desencastelar estatais ineficazes e estabelecer um tratamento jurídico uniforme, para prover segurança jurídica e atrair investimentos privados. O PT se opôs. Mas tão logo Lula empunhou a caneta presidencial, julgou que era preciso mudar tudo (na nova lei) para que tudo permanecesse como está (nos rincões desassistidos do Brasil).

Conforme o Marco, prestadoras que não demonstraram até 31 de março de 2022 capacidade econômico-financeira de atingir a meta de universalização em 2033 teriam seus contratos descontinuados, obrigando os municípios a abrir licitação. Um dos decretos estendeu o prazo de comprovação para 31 de dezembro de 2023. Nesse intervalo podem ser contabilizadas operações irregulares e contratos precários e, caso não atinjam os referenciais mínimos, as empresas podem apresentar um “plano” para atingi-los em até cinco anos. Em bom português: deixa como está, para ver como é que fica – em 2029. O outro decreto desobriga a realização de licitação para companhias estaduais que atuam em microrregiões. Neste caso, o status quo poderá se manter a perder de vista.

Se o governo sofreu mais esse revés, não foi por falta de aviso. Desde a edição dos decretos, no começo de abril, as lideranças parlamentares advertiram que, se não fossem modificados, cairiam. O governo tentou um jogo de empurra, mas o prazo se esgotou e, numa votação relâmpago, os decretos foram rejeitados com o apoio de partidos da base, como o PSD e o MDB.

Se houve “fogo amigo” é porque o PT abriu fogo contra um avanço civilizatório. Os decretos não só traíam a Constituição – que há mais de três décadas estabeleceu como regras da administração pública a prestação de serviços precedida de licitação e o fim do tratamento privilegiado a estatais –, mas traíram os próprios ideais propagandeados pela malfadada “frente ampla”: beneficiar os pobres e atrair investimentos. Ao invés disso, Lula preferiu manter os privilégios das estatais e das elites políticas que delas se aproveitam.

Muito além das disputas na base do governo ou entre ele e a oposição, a rejeição dos decretos mostrou um Legislativo ciente de sua competência para sustar atos normativos do Executivo que exorbitem o poder regulamentar, e zeloso de sua missão de quitar uma dívida histórica para com a população carente, entregando-lhe o básico existencial: esgoto e água limpa. A Câmara cumpriu o seu papel. Cabe agora ao Senado, sem demora, consumar o saneamento do Marco emporcalhado por Lula.

 

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