sábado, 6 de maio de 2023

Maria Cristina Fernandes - A bomba atômica da política

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Livro de Fernando Limongi refuta a tese de que impeachment se deu por pressão das ruas ou fragilidade presidencial e atribui queda de Dilma às fissuras da coalizão de governo que aí permanecem

 “O impeachment é como a bomba atômica, é para dissuadir, não para usar.” Passados sete anos, a radioatividade alertada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ainda paira sobre Brasília. Potencializada com a posse de Michel Temer, cristalizou-se na ascensão do bolsonarismo e formatou a polarização da escolha de Luiz Inácio Lula da Silva.

A frente ampla formada para derrotar Jair Bolsonaro não se reproduziu no ministério. Mas esta é apenas uma das razões pelas quais, quatro meses depois da posse, as pautas do governo não avançaram no Congresso.

As mesmas forças que capitanearam o afastamento de Dilma Rousseff hoje lideram o bloqueio ao governo Lula. Se, lá atrás, o fizeram para conter o avanço da Lava-Jato, hoje se movem para manter o espaço conquistado nos governos pós-impeachment.

Em “Operação impeachment - Dilma Rousseff e o Brasil da Lava-Jato” (Todavia, 2023), Fernando Limongi refuta as teses de que o afastamento de Dilma decorreu da pressão das ruas ou da fragilidade da presidente, ainda que, do pico de popularidade com o qual assumiu, tenha migrado para uma escalada do desemprego e o declínio acentuado da atividade econômica.

O autor atribui sua queda às fissuras na coalizão de governo e na própria operação Lava-Jato e mostra como o sistema político se organizou para derrubar a presidente que o ameaçava. A blindagem a Temer, presidente que governou sob rechaço popular, acaba por respaldar a tese do livro.

Mergulha-se na leitura como o viajante de uma jornada atropelada que se dá conta do que viu, ouviu e viveu com o registro de fotos e filmes. Mais do que uma lanterna de popa, o resgate de Limongi, que se aposentou como titular de ciência política da USP e hoje é professor da FGV-SP e pesquisador do Cebrap, ajuda a navegar pelos sinais trocados da conjuntura.

Permite entender por que o governo Lula não é, como se diz hoje em Brasília, o Dilma III. Se o presidente parece menos conciliador do que o foi nos seus primeiros mandatos e há clones dos personagens que pontificaram no impeachment, são outras as engrenagens que movem e relacionam os Três Poderes. E é outro o Brasil que o impeachment tirou da garrafa.

Tome-se, por exemplo, o resgate feito por Limongi do deputado Bernardo de Vasconcellos, pelo antigo PR, hoje PL, de Minas Gerais. Ao contrário de seu homônimo e conterrâneo, Bernardo Pereira de Vasconcelos, líder escravagista do Partido Conservador no Império, o deputado em questão tinha sido deixado no rodapé da história antes de ser resgatado no livro.

Ele aparece como integrante do bloco que propôs uma CPI para investigar a compra da refinaria de Pasadena, na Califórnia (EUA). A história é conhecida. A Petrobras superfaturou a refinaria. A compra havia sido aprovada pelo conselho da estatal a quem foram sonegadas as cláusulas do contrato que explicavam o prejuízo

Como a presidente candidata à reeleição integrava o conselho à época, estava pronta a armadilha armada por aqueles que Dilma queria afastar da Petrobras. Mas a presidente reagiu de pronto com uma nota de esclarecimento sobre o que havia acontecido e matou a CPI. A reação desagradou a petistas, como o então vice-presidente da Câmara, André Vargas (PT-PR), e deputados do Centrão, como Bernardo de Vasconcellos, que, juntos, puxavam o coro do “volta Lula”.

A proximidade de Vargas com Cunha não difere muito daquela mantida entre o atual líder do PT, José Guimarães (CE), e Lira. A diferença é que Vargas, que seria cassado, preso e condenado por envolvimento com o doleiro Alberto Youssef, nunca teve proximidade com Dilma, ao contrário do que acontece entre Guimarães e Lula.

Dilma, com as dificuldades crescentes em sua coalização, foi obrigada a ceder não apenas à corrente majoritária do partido, Construindo Novo Brasil, como ao PT da Bahia, com a posse de Jaques Wagner na Casa Civil. Lula já franqueou o poder aos petistas baianos desde a campanha, com a entrega da Comunicação ao marqueteiro do governo da Bahia, Sidônio Pereira, em detrimento de Franklin Martins, e da Casa Civil ao ex-governador Rui Costa.

A presença de três representantes da finança e do empresariado no governo (Joaquim Levy, Armando Monteiro e Katia Abreu), a exemplo do que fez Lula em seu primeiro mandato, não facilitou a relação de Dilma com o PIB. Ao contrário, como ministra, Katia Abreu potencializou a artilharia da JBS contra seu governo. Lula III não reprisou seu governo nem o de Dilma. O único empresário do governo, Carlos Fávaro, já tinha passagens pelo Executivo (vice-governador do MT) e pelo Senado antes de assumir a pasta da Agricultura.

Ao contrário de Dilma, porém, Lula tem um aliado na Fiesp, Josué Gomes, mas tem mais dificuldades no agronegócio do que nos oito anos em que governou, em grande parte, pela capitulação do campo ao bolsonarismo. O presidente da Câmara de hoje, por outro lado, conservou, com personagens paradigmáticos como André Esteves, relações tão ou mais próximas do que aquelas mantidas pelo banqueiro do BTG Pactual com Eduardo Cunha.

Se próceres do Centrão, como Bernardo Vasconcellos, alimentavam o “volta Lula” no primeiro governo Dilma, o bloco hoje exibe suas insatisfações e alimentam as barganhas do atual presidente da Câmara. O deputado Arthur Lira (PP-AL) arrancou, de Bolsonaro, o enterro da Lava-Jato que Cunha havia fracassado em obter de Dilma e o sustentou no cargo a despeito de 158 pedidos de impeachment.

Com Lula, Lira prosseguiu na ocupação do orçamento público e da máquina de governo que o ex-presidente lhe franqueou. Com os 464 votos amealhados para sua reeleição, adentrou o governo Lula mais preocupado em manter os espaços conquistados do que em combater um lava-jatismo que, capitulado ao bolsonarismo, perdeu tração.

As 15 assinaturas de seu partido ao pedido de abertura da CPMI dos atos do 8 de janeiro em seu formato original, antes que o governo cedesse à sua instalação, não existiriam sem o aval de Lira. Demonstram que o intuito de recuperar os espaços perdidos ainda não foi alcançado.

Além dos cargos, Lira, como Cunha, também quer a cabeça do ministro da Justiça. Se José Eduardo Martins Cardozo se opunha ao desarme da Lava-Jato, Flavio Dino resiste aos espaços almejados por Lira nas superintendências estaduais da Polícia Federal.

A dubiedade de Lira decorre, em grande parte, da disputa local com Renan Calheiros. Como o senador do MDB de Alagoas é aliado do governo, Lira resiste a perder ainda mais espaço na política alagoana para seu rival, que colocou o filho no ministério. Por isso equilibra-se entre respaldar o arcabouço fiscal e fomentar a CPMI.

Não há dúvida, porém, de que os blocos capitaneados pelo PP de Lira e o PSD de Rodrigo Pacheco tomaram os espaços que, no governo Dilma, eram majoritariamente do MDB com Cunha, na Câmara, e Renan, no Senado. Não faltaram articulações do MDB para ocupar a vice de Lula, mas a escolha de Geraldo Alckmin, lembrado por Limongi como um dos últimos tucanos a aderir à bomba atômica e um dos primeiros a dela se arrepender, acabou por oferecer ao presidente a blindagem de que Dilma não pôde desfrutar.

Por mais que os personagens do impeachment encontrem clones na conjuntura política, nenhuma mudança institucional é mais marcante do que aquela operada no Judiciário. Se o Supremo, por meio de uma liminar do ministro Gilmar Mendes, que o plenário não se apressou em julgar, manteve Lula longe do ministério de Dilma e, com isso, afastou qualquer chance de o governo se apetrechar para a batalha final, hoje Lula e a Corte se aliançaram contra o bolsonarismo.

Parece outro o país em que os ministros se juntaram sob a liderança de Mendes para pressionar o Congresso por uma emenda constitucional que estendesse a aposentadoria dos ministros para 75 anos. A PEC da Bengala evitaria que presidentes petistas fizessem 9 dos 11 ministros.

O ministro nomeado graças ao impeachment, Alexandre de Moraes, acabaria por ser o fiador da investida contra Bolsonaro. Moraes devolveu ao Supremo o voluntarismo que, em grande parte, marcou o lava-jatismo, mas respalda sua atuação no vácuo da Procuradoria-Geral da República

Se a ofensiva final da PGR de Rodrigo Janot sobre as cúpulas partidárias, como mostra Limongi, levou a coalizão a jogar as cargas ao mar - junto com a ex-presidente - para salvar a embarcação, o PGR hoje não ameaça o sistema político. Tanto que o Congresso - e uma parte do PT - pressiona pela manutenção de Augusto Aras, o PGR que encaçapou toda a ficha corrida de Bolsonaro sem pressioná-lo com uma denúncia nem mesmo na pandemia.

A radioatividade do impeachment não apenas condenou à inanição o PSDB, partido que armou a bomba com o pedido inicial de recontagem dos votos, como rearranjou o sistema partidário. A aprovação da cláusula de barreira e do fim das coligações deu início a um enxugamento do quadro partidário. A engorda dos fundos eleitoral e partidário potencializou os incentivos à concentração.

A bomba que explodiu no impeachment levou a Bolsonaro - “uma outra história, tão ou mais trágica do que a que se acaba de contar”, conclui Fernando Limongi. O ex-presidente só não renovou seu mandato porque a Lava-Jato não alcançou seu objetivo de abreviar a vida política de Lula.

O Judiciário vai cuidar de manter Bolsonaro longe das urnas e o mais próximo possível da cadeia. Só o desempenho deste governo, porém, poderá livrar o país da ameaça do populismo de direita que o impeachment tirou da garrafa.

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Que barafunda!