quarta-feira, 3 de maio de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Linha de crédito para Argentina desperta ceticismo

O Globo

É difícil enxergar as vantagens para o Brasil — e muito fácil vislumbrar o risco de calote

O presidente argentino, Alberto Fernández, saiu ontem de Brasília com um bom motivo para demonstrar apreço pelo parceiro Luiz Inácio Lula da Silva. Em meio a abraços e cumprimentos calorosos, entrou na pauta o financiamento do BNDES ao comércio entre os dois países, por meio de um mecanismo que evite pagamento em dólar. Para a Argentina, a linha de crédito aliviaria a pressão num momento de inflação em disparada e escassez de divisas. Para o Brasil, é difícil enxergar as vantagens — e fácil vislumbrar o risco de calote.

É verdade que não faltam motivos para nos preocuparmos com a situação do país vizinho, terceiro maior mercado para exportações brasileiras. No ano passado, as vendas somaram US$ 15,3 bilhões, grande parte produtos industrializados (um diferencial na comparação com outros países para os quais exportamos produtos primários). Várias empresas, em especial multinacionais, mantêm produção integrada nos dois países de olho no Mercosul. Diferentes componentes cruzam a fronteira nos dois sentidos. Por isso qualquer solavanco na Argentina afeta o Brasil.

Há, porém, várias dúvidas sobre o plano anunciado ontem. A mais óbvia é se Lula teria aceitado a ideia do crédito camarada caso o presidente argentino fosse de centro ou de direita. Nos governos petistas anteriores, a ideologia falou mais alto, e o resultado foi desastroso. Desde 1998, o BNDES aportou US$ 10,4 bilhões numa linha de apoio à exportação de serviços de engenharia. Os dois países que mais deram calote foram Venezuela (US$ 682 milhões) e Cuba (US$ 238 milhões). Juntos, ainda devem US$ 52 milhões. Justamente aqueles cujos empréstimos foram ditados por critérios mais ideológicos que econômicos.

Outra dúvida diz justamente respeito à sensatez financeira da iniciativa. A inflação anual argentina supera 100%, e o peso está em franco derretimento diante das demais moedas, inclusive o real. O contrato de financiamento da exportação é fechado num momento, mas a venda na Argentina ocorre depois. Com a inflação em disparada, é certo que haverá descasamento entre os valores. O pagamento ao exportador brasileiro estará garantido, mas o BNDES não tem como saber se receberá as parcelas do financiamento. O plano não apresenta detalhes das garantias oferecidas pelo governo argentino. Levando em conta que as reservas cambiais do país estão esgotadas, será preciso usar a criatividade para apresentá-las.

Defensores da linha de crédito para a Argentina argumentam que o Fundo de Garantia à Exportação (FGE), vinculado ao Ministério da Fazenda, cobrirá eventuais calotes. Mas ter um seguro não é o mesmo que não ter risco. Nesse caso, a conta será transferida para todos os exportadores, e qualquer socorro caberá ao Tesouro. Vale a pena? O simples fato de a nova linha de crédito começar com tal preocupação é mau sinal. É verdade que os argentinos nunca deixaram de pagar o BNDES, mas já estão na 13ª renegociação com o FMI, depois de incontáveis moratórias.

O secretário executivo do Ministério da Fazenda, Gabriel Galípolo, afirma que a China tem financiado suas exportações para a Argentina e conquistado mercado. Pelas suas contas, o Brasil perdeu cerca de US$ 6 bilhões em cinco anos. Só faltou acrescentar que a China é uma potência global, com PIB equivalente a 11 vezes o brasileiro, e pode se dar ao luxo de correr riscos que nossas agruras fiscais não permitem.

Demissão de Cuca é sinal de recuo no machismo que contamina o futebol

O Globo

Torcida não aceita mais o sucesso nos gramados como salvo-conduto para cometer crimes fora de campo

Não durou uma semana no cargo de técnico do Corinthians o paranaense Cuca, apelido de Alexi Stival. Ele sucumbiu à repercussão tardia, mas necessária, da acusação de estupro de uma menina suíça de 13 anos num hotel em Berna em julho de 1987. Cuca dividia com três jogadores o quarto onde a menina disse ter sido violada por meia hora. Seu sêmen foi encontrado na vítima. Os quatro ficaram presos por um mês, mas foram soltos mediante fiança. Nem bem Cuca fora demitido, seu substituto, Vanderlei Luxemburgo, enfrentava outra denúncia, de assédio sexual. Casos assim mostram que enfim o futebol brasileiro começa a reagir para afastar, ainda que de modo tíbio, o espectro do machismo.

A demissão de Cuca não é um caso isolado. Há três anos o Santos não pôde trazer de volta ao time Robinho, ex-jogador da Seleção, em virtude da pressão da torcida e de patrocinadores. Acusado de tomar parte no estupro grupal de uma albanesa em Milão em janeiro de 2013, ele foi condenado na primeira instância em 2017. “Estou rindo porque não estou nem aí, a mulher estava completamente bêbada, não sabe o que aconteceu”, escreveu Robinho em conversas reveladas pelo Globoesporte.com. A segunda instância confirmou a pena de nove anos de prisão. A defesa apelou à terceira e última instância italiana, mas o recurso foi rejeitado. Ele ainda corre o risco de cumprir a pena no Brasil, a depender do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Mais velho, o lateral esquerdo Daniel Alves, jogador com mais títulos do futebol brasileiro, está preso desde 20 de janeiro em Barcelona, acusado de cometer estupro numa boate local. Nem Neymar escapou: foi acusado de agressão sexual por uma funcionária da Nike, segundo o jornal The Wall Street Journal (ele já tinha enfrentado processo pelo mesmo motivo envolvendo a ex-modelo Najila Trindade).

Durante muito tempo se fazia vista grossa para ídolos dos gramados que se comportavam como criminosos fora do estádio. Não mais. A realidade tem mudado velozmente em razão da evolução da sociedade brasileira. Diante dos fatos que pesavam contra Cuca, torcedoras protestaram no dia da apresentação do novo técnico com as faixas “Time do Povo?” e “Fora Cuca”. Sua contratação entrava em contradição com a própria campanha do clube em defesa da torcida feminina, batizada Respeita as Minas.

Passou o tempo em que a fama no futebol servia de álibi para jogadores e técnicos se sentirem acima da lei. Continuará a haver estupradores e criminosos entre os jogadores, infelizmente, mas o torcedor não esquece mais os abusos. A própria imprensa esportiva evoluiu, profissionalizou-se e trata de lembrar a quem esqueceu. Jogador de futebol, como qualquer cidadão, precisa ser punido com o devido rigor caso cometa crimes. O machismo está em baixa também no futebol. E não há prova mais eloquente disso que o sucesso do futebol feminino, atraindo torcidas cada vez maiores. Não pode haver retrocesso.

PL da discórdia

Folha de S. Paulo

Debate açodado de texto das fake news ameaça liberdade de expressão, inegociável

Um paradoxo notável acompanha as discussões sobre o projeto 2.630/2020, que institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, apelidado de "PL das Fake News": o debate transcorre de forma tardia e açodada ao mesmo tempo.

Tardia porque as chamadas "big techs" há muito entregam riscos e desafios de monta para a sociedade. Ameaças à democracia, ataques a escolas e danos à saúde mental de crianças são capítulos recentes e eloquentes nessa história.

E açodada porque uma regulação complexa como essa não se resolve de afogadilho. Não são poucos os dilemas em tela. Para ficar num só caso, nunca foi fácil limitar a liberdade de expressão sem resvalar na censura —e não se imagina que os congressistas resolvam o impasse numa votação a toque de caixa.

Ainda que o projeto de lei date de 2020, mais de um terço dos artigos ora em exame entrou no texto recentemente. Sem que os legisladores e a sociedade possam analisar e debater os dispositivos, são grandes as chances de serem aprovadas regras sustentadas em hipóteses fantasiosas ou voltadas à defesa de interesses particulares.

Exemplo disso está na exceção que os políticos querem abrir para si próprios, conferindo imunidade às postagens de parlamentares. Vale dizer, as novas regras, se sancionadas, incidirão sobre todos, menos quem as aprovou.

Por razões diferentes, a pendenga em torno do órgão regulador também sugere cautela. É mais que razoável o receio de que o lusco-fusco normativo faculte a criação de um aparato estatal com as pavorosas atribuições de um Ministério da Verdade, quando o poder de decidir o que é ilegal nas redes deveria caber apenas ao Judiciário.

Em uma frente mais assentada, o projeto incorpora a ideia, já experimentada em outros países, de remunerar conteúdo jornalístico que aparece nas buscas e nas redes sociais, como defende a Associação Nacional de Jornais (ANJ), integrada por esta Folha.

Ao longo da tramitação, outras questões menos sedimentadas precisarão ser enfrentadas, como a regulação de algoritmos, o ingresso de dispositivos como o Discord e a proibição do anonimato —vedado, aliás, pela Constituição. Nada recomenda enfrentar tantos dilemas sem a devida reflexão.

O debate, ademais, está contaminado por suspeitas como a de que o Google usa seu serviço de busca contra o PL —e as reações exageradas de Flávio Dino, ministro da Justiça, e Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal.

Entre os interesses dos políticos e os das "big techs", quem pode sair perdendo é a sociedade. O projeto de lei acerta ao propor um tripé: liberdade, responsabilidade e transparência. Que os congressistas saibam aplicá-lo integralmente.

Outro gigante asiático

Folha de S. Paulo

Ainda pobre, Índia torna-se país mais populoso e pode virar potência econômica

De acordo com estimativas da Organização das Nações Unidas, é provável que, em abril, a Índia tenha superado a China como país mais populoso do mundo, ao atingir a marca de 1,425 bilhão de habitantes —o momento da ultrapassagem é impreciso porque o último censo local foi feito em 2011.

Essa distância aumentará, mesmo que a taxa de fertilidade já tenha convergido para o nível de reposição. De acordo com a ONU, o país atingirá o pico em torno de 1,7 bilhão por volta de 2070, quando terá cerca de 550 milhões de pessoas a mais que a China.

Com população proporcionalmente mais jovem, o desafio indiano é gerar empregos de qualidade, aproveitando o bônus demográfico (quando a parcela ativa cresce mais do que a de dependentes).

Os prognósticos parecem positivos. Com 75 anos de independência, apenas recentemente o país vem ganhando peso no mercado global. Mas, em 2021, conseguiu superar o Reino Unido e tornou-se a quinta maior economia do mundo.

Até 1990, a gestão econômica era ineficiente, dirigista, com pendores socialistas, e não logrou vencer a estagnação. Nessa fase, o país perdeu posições e ficou cada vez mais longe da fronteira tecnológica.

Desde então, houve progressiva liberalização, avanços educacionais, rápida adoção de tecnologia e ampliação de investimentos. Em conjunto, tais avanços aceleraram o crescimento, para uma média próxima a 7% entre 2009 e 2019. Para este ano, após a recessão da pandemia, o Fundo Monetário Internacional projeta alta de 5,9%.

Há muito a percorrer. Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, em 2022 a renda per capita indiana foi de US$ 7,6 mil, o que representa cerca de 40% da cifra chinesa e 15% da média da OCDE.

Mas é possível aumentar os ganhos, a começar pela mobilização do contingente feminino —apenas 20% das indianas trabalham.

Com tecnologia, reformas na área tributária e investimentos em infraestrutura, que têm se mantido em 4% do PIB (o dobro do brasileiro), há espaço para que o país se firme como destino atraente no redesenho das cadeias produtivas.

Polo de liberdade no continente asiático, a Índia flerta com retrocessos sob o atual governo. Será melhor para o mundo que a promissora potência econômica mantenha e aperfeiçoe sua democracia.

Exemplo claro de invasão de competências

O Estado de S. Paulo

Supremo Tribunal Federal agora pretende decidir qual índice deve corrigir o FGTS

Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) esteve envolvido em boa parte das principais controvérsias debatidas no País. Trata-se de um cenário desafiador para um tribunal que, como todo órgão do Judiciário, deve ser rigorosamente imparcial, política e ideologicamente. Sua firme atuação em defesa das instituições democráticas foi muitas vezes entendida como ativismo judicial, o que explicita, entre outras causas, uma grande incompreensão sobre o papel de uma Corte constitucional no Estado Democrático de Direito. A missão do STF não é agradar à maioria, mas fazer valer a força normativa da Constituição em sua plenitude.

Às vezes, no entanto, o próprio Supremo parece não compreender adequadamente seu papel constitucional, invadindo as atribuições do Congresso. Isso se expressa, por exemplo, no recebimento de Ações Diretas de Inconstitucionalidade (Adins) manifestamente ineptas, como a que questiona a Lei das Estatais, como já criticamos neste espaço (ver o editorial Cabe ao STF rejeitar a judicialização da política, dia 20/2/2023).

O grande problema, no entanto, é que a intromissão do Supremo no campo da política tem sido mais do que um desvio esporádico. Tornou-se frequente e vem sendo considerada natural. Já não causa escândalo. No mês passado, por exemplo, o STF começou a julgar a Adin 5090, que discute a constitucionalidade da aplicação da Taxa Referencial (TR) na correção dos saldos das contas vinculadas do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Trata-se de um caso realmente desolador, em que o Supremo corre o risco não apenas de atropelar a competência do Legislativo, mas de menosprezar sua jurisprudência sobre a matéria. O julgamento da ação foi suspenso por pedido de vista do ministro Kassio Nunes.

A Adin 5090 questiona um sistema vigente desde a Lei 8.177/1991, que definiu regras para a desindexação da economia. O tema foi levado diversas vezes ao Judiciário. Em 2014, o STF rejeitou apreciar a matéria. Em 2018, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu que não competia ao Judiciário substituir a TR por outro índice de correção monetária. Um mínimo de estabilidade na jurisprudência é respeito não apenas à segurança jurídica, mas ao próprio Judiciário.

Há motivos razoáveis para criticar a sistemática atual e postular mudanças no modo de correção do FGTS. O ponto é: esse debate deve ser feito no Congresso, e não no STF. A escolha do índice a ser aplicado ao saldo das contas é uma decisão política, com consequências sobre diversos temas políticos, sociais e econômicos. Por exemplo, mudar a forma de correção do FGTS afeta o financiamento imobiliário para a população de baixa renda.

No momento em que o STF toma para si esse tipo de decisão, a Corte passa, na prática, a gerir uma série de questões que não lhe competem, reduzindo a responsabilidade do Congresso sobre temas centrais da vida nacional. Basta ver que, nos dias de hoje, boa parte da equação fiscal, a afetar inúmeras políticas públicas, depende não dos parlamentares eleitos, mas das escolhas que serão feitas pelos ministros do Supremo.

O decurso do tempo não faz com que uma lei inconstitucional se torne constitucional. Mas é preciso um pouco de realismo. No caso do FGTS, por exemplo, são mais de três décadas de vigência de uma sistemática de correção e, até o momento, a Corte não tinha notado nenhuma inconstitucionalidade. Agora, num rompante de iluminação, o plenário do STF vai descobrir que o índice de correção fere a Constituição? Além disso, em julgamentos assim, a discussão sobre o passado tornase, muitas vezes, mais importante do que sobre o futuro, dando aos ministros um poder discricionário absolutamente irrazoável em relação à retroatividade ou não dos efeitos de eventual declaração de inconstitucionalidade.

Para cumprir sua imprescindível missão em defesa da Constituição, o STF precisa ter autoridade. Entre outros fatores, essa autoridade é construída pelo respeito às competências institucionais. A Corte tem de saber onde termina seu papel e onde começa o do Congresso.

Os riscos da inteligência artificial

O Estado de S. Paulo

Relatório da OCDE adverte que o sistema de geração de linguagem, como o ChatGPT, é opaco até mesmo para seus desenvolvedores, o que o torna potencialmente incontrolável

Enquanto assombra o mundo, a inteligência artificial (IA) geradora de linguagem, como o pioneiro ChatGPT, representa também riscos ainda não inteiramente mensurados para cidadãos e para a sociedade, conforme alertou em estudo recente a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A advertência vem em boa hora: o fato de que a inteligência artificial já é uma realidade e tende a se tornar predominante em diversos setores demanda um arcabouço ético e legal específico para essa maravilha tecnológica.

Como se sabe, o ChatGPT, lançado em novembro do ano passado, pode produzir conteúdo e gerar textos, trabalho que até agora apenas seres humanos eram capazes de fazer. E logo despertou reações variadas que vão do entusiasmo com suas possibilidades de uso até o receio de que a nova tecnologia possa sair do controle e representar ameaça real nas relações sociais e no mundo do trabalho.

O documento não chega a pedir a suspensão das pesquisas que permitiram o desenvolvimento do ChatGPT e de produtos similares, como fez recentemente o instituto Future of Life, em carta assinada por milhares de empresários, pesquisadores e acadêmicos − entre eles, o dono da Tesla, SpaceX e Twitter, Elon Musk, e o historiador israelense Yuval Noah Harari. Mas o recém-lançado relatório AI Language Models: Technological, SocioEconomic and Policy Considerations (Modelos de linguagem de IA: considerações tecnológicas, socioeconômicas e políticas, em tradução livre) deixa claro que a nova tecnologia tem pontos obscuros e que é preciso agir para mitigar riscos.

Uma das preocupações diz respeito ao próprio mecanismo de funcionamento da inteligência artificial, o chamado processamento de linguagem natural − que é, em essência, o que possibilita ao ChatGPT escrever e interagir com desenvoltura comparável à de um ser humano. O documento destaca que o mecanismo é “opaco e complexo”, a ponto de que até mesmo seus desenvolvedores não compreendem inteiramente os processos que levam a determinados resultados. Ora, não é preciso ser especialista para perceber o quanto isso pode ser perigoso: o que está em questão, nas palavras do relatório, é a criação de cenários de “imprevisibilidade” e até mesmo de “incapacidade de restringir o comportamento” da máquina.

Outro aspecto sensível diz respeito ao conteúdo gerado pela inteligência artificial. A depender de quem desenvolve os sistemas e, claro, dos dados utilizados, as respostas podem variar enormemente. Isso abre caminho para todo tipo de distorção: desde erros factuais, algo que se verifica no ChatGPT, até a disseminação de preconceitos e desinformação. Corretamente, o relatório observa que tais riscos são agravados, de um lado, pelo fato de que os usuários tendem a confiar nas informações geradas pela inteligência artificial, e de outro, porque a inteligência artificial pode dar escala industrial à produção de notícias falsas.

O potencial de danos é enorme, uma verdadeira ameaça às democracias. Como bem lembra a publicação da OCDE, a inteligência artificial tem capacidade de articular textos de forma convincente, mesmo quando usa dados incorretos − as chamadas “alucinações” dos sistemas de IA. Ora, tal característica potencializa o risco de disseminação de fake news a ponto de pôr em xeque muitos dos esforços até aqui empreendidos para conter a enxurrada de mentiras que se alastram pela internet. O relatório chama a atenção ainda para possíveis violações de privacidade, inclusive com o vazamento de informações confidenciais. “Os modelos de linguagem de IA apresentam riscos para os direitos humanos”, diz o documento.

Tudo o que diz respeito à inteligência artificial geradora de linguagem ainda é muito recente, e seus impactos são desconhecidos, mas isso não impede que, a partir de alertas como o da OCDE, se discuta desde já um arcabouço jurídico e ético sólido para que essa maravilha tecnológica não se torne um pesadelo para a humanidade.

Lá se foi outro banco dos EUA

O Estado de S. Paulo

Colapso do First Republic reforça necessidade de aprimorar a fiscalização dos bancos

A atuação das autoridades monetárias dos Estados Unidos evitou impactos ainda mais desastrosos do colapso de mais um banco regional americano, o First Republic Bank. O banco central (o Fed) “convidou” as maiores instituições bancárias do país a comprar os ativos e os depósitos do banco californiano, e o JP Morgan Chase acabou concordando em ficar com eles. Essa foi provavelmente a melhor solução, nas circunstâncias, pela rapidez com que o acordo entre o Fed e o Morgan foi alcançado.

Como se sabe, porém, esse não foi o primeiro episódio de iliquidez de casas bancárias nos EUA e na Europa neste ano. Dois outros bancos americanos faliram e, de forma emblemática, um dos dois maiores bancos suíços, o Credit Suisse, teve que ser comprado pelo outro, o UBS, para evitar sua derrocada.

A expectativa de muitos era que a crise ficaria restrita a esses episódios. A preocupação voltou a aumentar – e está refletida no comportamento dos mercados financeiros nos últimos dias – com a necessidade de se buscar uma solução para o First Republic, que era o 12.º maior banco no seu país. Uma das razões para que os três bancos americanos tivessem entrado numa situação complicada foi seu modelo de negócios, que não se adaptou bem ao aumento dos juros.

Crises no setor financeiro em geral não são resolvidas rapidamente, e hoje o sistema mostra fragilidades que podem acentuar os problemas, em especial a concentração bancária, como afirmou Jose-Luis Peydró, professor do Imperial College, de Londres, e consultor do Banco Central Europeu, em entrevista ao Estadão. Além disso, lembrou ele, o endividamento global é elevado, o que pode significar risco para os fundos de investimento.

Acende-se, portanto, a luz de alerta no sistema bancário. Renova-se o apelo para que os bancos centrais e os dirigentes das instituições financeiras, além de investidores e especialistas, busquem novas formas de identificar riscos de liquidez. Quanto mais cedo forem apontadas quaisquer dificuldades, será, obviamente, melhor para o setor e para toda a economia. A ansiedade em relação aos mecanismos de acompanhamento e fiscalização dos bancos é cíclica. Dominou os debates durante a crise financeira de 2008, para citar o exemplo mais recente.

A crise poderá chegar ao Brasil? Dirigentes do Banco Central repetiram nas últimas semanas que o sistema bancário por aqui é sólido. O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, assegurou na semana passada que “o Brasil não tem crise de crédito” e que “nós não temos o problema e a fragilidade do sistema bancário americano, como a gente viu com o Silicon Valley Bank”, em referência ao primeiro banco americano a entrar em colapso neste ano.

Infelizmente, se a crise se prolongar ou atingir outros bancos internacionais, ela chegará, sim, ao Brasil pela piora das condições financeiras globais, pela recessão que poderá ser desencadeada e pela redução nos investimentos produtivos vindos de outros países. Governo e todos os participantes do mundo econômico precisam estar em alerta para minorar a contaminação da economia brasileira, como aconteceu em outros episódios.

Planalto terá de ampliar seu esforço para criar base de apoio

Valor Econômico

Sem Lula se engajar nas reformas e no novo regime fiscal, os projetos de governo podem ser derrotados ou desfigurados

O governo e a Câmara dos Deputados ainda não encontraram um modo de convivência que dê segurança para a aprovação aos principais projetos que o Executivo pretende aprovar este ano, e dele dependem tanto o novo regime fiscal como a essencial reforma tributária. Para o todo poderoso presidente da Câmara, Arthur Lira, a relação não é de “satisfação boa”, um sinal de que os aliados governistas têm demandas insatisfeitas, ou difíceis de satisfazer. Lira procurou tranquilizar o Planalto, porém: “Não vou sacanear o governo”, disse em entrevista a “O Globo”.

O governo Lula tem cedido espaços importantes para os partidos aliados, especialmente o PP de Lira, como diretorias na Codevasf, e havia concordado com a substituição do orçamento secreto, proibido pelo Supremo Tribunal Federal, por um esquema em que no fim prevaleceriam as indicações das emendas parlamentares, ainda que sob responsabilidade formal dos ministérios. Parece haver algo de errado, ou alguns curto-circuitos nessa intermediação dessas verbas. “Eu sempre disse que o orçamento é muito mais democrático se decidido por 600 parlamentares do que por dez ministros”, afirmou Lira, insinuando a necessidade de mais agilidade ao ministro Alexandre Padilha, da Secretaria de Relações Institucionais.

A coordenação de apoio político tornou-se um problema enorme para qualquer governo com o crescente domínio do orçamento pelo Congresso. O orçamento secreto dissolveu fidelidades partidárias que nunca foram fortes em prol do recebimento de recursos para deputados ungidos por Lira, pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, e caciques de legendas. Com isso, os rumos do voto no parlamento tornaram-se imprevisíveis, mesmo para um expert em negociação política, como o presidente Lula.

A aparente facilidade com que partidos fisiológicos têm para aderir ao governo deu a falsa impressão de que Lula, vitorioso, os traria para seu lado por gravidade, facilmente. A pequena diferença eleitoral de Lula no segundo turno, a força de partidos conservadores e a fatia minoritária dos aliados de sempre da esquerda colocaram muitos pontos de interrogação sobre o poder de bases governistas. A oferta de cargos nos ministérios e no governo não parecem mais suficientes para amarrar acordos políticos com margem mínima de segurança. Com o Congresso descontente, e com muitos interesses a serem atendidos (e contrariados), o risco que o governo corre é o da negociação permanente, e a formação de apoios parlamentares dependendo de cada projeto a ser votado, ou seja, uma coordenação política “à la carte”.

 

Lira viu dedos do governo na articulação de um bloco de 142 deputados que se formou unindo MDB, o PSD de Gilberto Kassab, Republicanos, Podemos e PSC, que seria uma maneira de rachar os partidos do Centrão e obter maior apoio. Sem dúvida, a divisão poderia beneficiar o Planalto que, no entanto, viu-se diante da resposta imediata da formação de um bloco ainda maior, de 172 deputados, reunindo União Brasil, PP de Lira, Federação PSDB-Cidadania, PDT, PSB, Avante, Solidariedade e Patriota. Lira atraiu até mesmo aliados naturais do PT, como os socialistas e os trabalhistas.

Para piorar a situação para o Executivo, a distribuição de cargos para legendas de centro e direita não funcionou. A ministra do Turismo, Daniela Carneiro, não foi tida como indicada pelo União Brasil e pretende trocar de partido. Juscelino Filho (do União Brasil), foi alvejado por denúncias de uso indevido de verbas públicas. Ou seja, essas nomeações acabaram não sendo reconhecidas pelo União Brasil e foram consideradas na cota de Lula, o que não o beneficiou em nada e provavelmente o obrigará a uma reforma ministerial mais à frente.

Há mais problemas a serem resolvidos. O presidente Lula tem-se dedicado prioritariamente a recompor os laços do Brasil com a comunidade internacional, dinamitada pela política destruidora de Jair Bolsonaro e se ausentado mãos do que o conveniente de Brasília em um momento importante, em que o principal projeto imediato, o do novo regime fiscal, chega ao Congresso.

Lula também poderia e deveria ter um papel mais ativo para respaldar o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, na defesa de sua política fiscal. Ela tem recebido críticas dos mercados financeiros, por ser um projeto que preserva gastos e faz um ajuste impossível pelo lado das receitas. E, pelo lado do PT, por ter gastos de menos e se preocupar em demasia com o equilíbrio fiscal quando, para a legenda, é só por meio de política anticíclicas que o país voltará a crescer.

O presidente Lula parece ter se inclinado para o lado petista na questão. Para além das críticas ao Banco Central e sua taxa de juros, ele anunciou isenção do IR até dois salários mínimos e correção do mínimo acima da inflação para os próximos anos. A sinalização é de que os bancos públicos serão chamados a ampliar o crédito para estimular a expansão da economia.

Os movimentos do PT e de Lula não dão clareza para orientar preferências dos possíveis aliados. Sem se engajar nas reformas e no novo regime fiscal, os projetos podem ser derrotados ou desfigurados, com consequências muito ruins para a economia.

 

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