quarta-feira, 3 de maio de 2023

Luiz Gonzaga Belluzzo* - De Ponte Preta aos Campos dos Robertos

Valor Econômico

Campos foi um desenvolvimentista sem saber, a despeito de suas preferências intelectuais e ideológicas

No dia do aniversário de 23 anos de nosso valoroso Valor presto uma homenagem ao jornal: dou início à minha peregrinação nos labirintos da economia guiado por um conto de Sergio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, uma figura excelsa da literatura brasileira. Esse conto está publicado no livro Febeapá - O Festival de Besteiras que Assola o País. O título não deixa dúvidas a respeito do “espírito da época”: “ O General Taí”.

Com seu estilo irreverente, Ponte Preta nos apresenta o personagem Genésio e suas peripécias na posteridade do golpe de 1964. “Genésio adaptou-se à nova ordem com impressionante facilidade e chegou a ser um dos mais positivos dedos-duros no ministério. Com isso, Genésio conseguiu certo prestígio junto à administração. Quando veio a tal política financeira do dr. Campos (o avô do Neto), foi dos primeiros a aplaudir a medida.

Num desses coquetéis de gente bem, onde foi representando o diretor do departamento, aproveitou um hiato na conversa, para falar bem alto, a fim de ser ouvido pelo maior número possível de testemunhas:

- A política de contenção do dr. Roberto (o avô do Neto) é simplesmente gloriosa! Breve até as classes menos favorecidas estarão aplaudindo a medida. Todos ouviram e, como tava todo mundo com o traseiro encostado na cerca, naqueles dias (e muitos estão até hoje), ninguém contestou.

O que eu sei é que o Genésio deu o grande durante uns quatro ou cinco meses. Depois, como era um filho de jacaré com cobra-d’água, caiu de novo no seu chatíssimo cotidiano e só ficou elogiando a “redentora” por vício ou talvez por causa de uma leve esperança de se arrumar ainda. Mas teso é teso, é ou não é? O tempo foi passando e o boi sumiu; o leite é isso que se vê aí; o feijão anda tão caro que, noutro dia, num clube da Zona Norte, promoveram um jogo de víspora marcando as pedras com caroço de feijão e foi aquela vergonha alguém roubou os caroços todos para garantir o almoço do dia seguinte. Genésio começou a desconfiar que tinha entrado numa fria.

Aquilo não era revolução pra quem vive de ordenado. Em casa, a mulher dava broncas ciclópicas, porque o ordenado mensal dele estava acabando mais depressa do que a semana. Houve um dia em que botou sua bronca: - Você é que não sabe fazer economia - disse para a mulher. - Pode deixar que eu vou fazer a feira. Ah, rapaziada, pra quê! Genésio foi à feira e só via gente balançando a cabeça; todo mundo resmungando, dizendo coisas tais como “assim não é possível”, “desse jeito é fogo”, “como está não pode ser”. Em menos de cinco minutos do tempo regulamentar, ele também estava praguejando mais que trocador de ônibus”.

A releitura do conto magnífico de Sérgio Porto - o Stanislaw - trouxe-me à memória um episódio protagonizado pelo ministro do Planejamento da ditadura, o insigne Roberto Campos, avô do Neto.

Em maio de 1964, o ritmo de crescimento dos preços prometia uma inflação anual de 144%. O chefe da missão do FMI, Jorge del Canto, clamava por um tratamento de choque para combater a inflação. Campos respondeu:

“Entre a alternativa de um tratamento de choque do processo inflacionário e a de uma contenção progressiva da taxa de aumento dos preços, o governo opta pela segunda, porque: a) o êxito de um tratamento de choque dependeria, basicamente, do congelamento geral dos salários, indesejável do ponto de vista social; b) dependeria, primordialmente, da imediata eliminação dos déficits públicos, virtualmente impossível de alcançar-se sem considerável mutilação dos investimentos públicos; c) a expansão demográfica e a insuficiente criação de empregos produtivos no biênio 1962-1963 tornam essa fórmula também socialmente indesejável...”.

Entre tantos talentos, Campos passou a vida aperfeiçoando o de espicaçar tudo o que se assemelhasse à heterodoxia. Ex-seminarista e conhecedor de grego, sabia da importância da palavra doxa.

Campos chegou ao delírio, lançando boutades de grosso calibre contra todo tipo de socialismo, nacionalismo e outros partidarismos que considerava irracionais. Dizia, por exemplo, que “no socialismo, as intenções são melhores que os resultados e, no capitalismo, os resultados são melhores que as intenções”. Achincalhou a “bazófia nacionaleira que substitui a organização pela emoção e confunde a energia intrínseca da onda com o farfalhar frívolo da escuma”.

Ministro do governo Castelo Branco, foi protagonista, juntamente com Otávio Gouveia de Bulhões e Mário Henrique Simonsen, das reformas econômicas e financeiras que prepararam o “Milagre Brasileiro” do fim dos anos 1960 e começo dos 1970.

Como M. Jourdain, personagem de Molière no Burgeois Gentilhomme, Campos foi um desenvolvimentista sem saber. Isso é o que diz a sua biografia de homem de Estado, a despeito de suas preferências intelectuais e ideológicas. Entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o começo dos anos 1950, participou de todos os empreendimentos e reconstruções institucionais que alicerçaram o surto desenvolvimentista. Depois de concluir o mestrado em Economia na Universidade George Washington, integrou a delegação brasileira na Conferência de Bretton Woods, em 1944. Em 1950, participou da II Conferência da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), foi conselheiro da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos e teve papel preponderante na fundação do BNDE.

Ao assumir a direção do banco, ensejou a criação do grupo misto Cepal-BNDE, um valhacouto de desenvolvimentistas que espalharia (e continua espalhando) suas ideias malignas, por muito tempo, Brasil afora.

Campos, tal como outros que o sucederam na corrente conservadora, escrevia uma coisa e fazia outra. Sua vantagem é que a maré do capitalismo estava na enchente, enquanto os pósteros pegaram a vazante.

Episódios recentes da vida brasileira estão prestes a comprovar o julgamento do filósofo italiano Franco “Bifo” Berardi. Ele assegura que a humanidade levou mil anos para converter o bárbaro em burguês, mas poucas décadas para reconverter o burguês no bárbaro. Saudades dos liberais de antanho, como Roberto Campos, o avô.

*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp e professor emérito da Universidade Federal de Goiás.

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Eu também prefiro o avô,que se tivesse vivo não teria apoiado o Lula e muito menos Bolsonaro.